Entre tantos conselhos que ouvi do meu pai, os quais, com o passar do tempo, muitos foram incorporados ao meu manual de sobrevivência e expertise, eu preservava os básicos: não levar tiros e procurar, a todo custo, ter êxito na investigação. Como todo bom pai, ele insistia, porém, num ponto, para ele cabedal:
“Se você quer mesmo seguir esta carreira, mais vale uma boa teoria do que um lance de dados” – dizia, junto com outras tiradas, algumas espirituosas, outras que tinham a sabedoria inútil das frases que vêm dentro dos biscoitos chineses.
Quem conheceu o meu pai sabia que ele era durão – o mais irônico, temido, imprevisível e respeitado de todos os detetives. Ele sabia farejar o Mal, onde ele estivesse, naquela cidade violenta e corrupta. Quando contratado, segundo o seu interesse pelo caso, nunca desistia de levar a cabo uma investigação, sempre conduzida com deduções brilhantes e critérios rígidos – e ai de quem se atrevesse a ser um obstáculo! Como bom investigador, resolvia o caso, e os malfeitores eram punidos.
Na nossa profissão, não existe moleza nem lugar para gestos nobres, embora às vezes seja necessário um gesto de galhardia com as mulheres, se isso, no final das contas, rendesse uma boa informação. Na maior parte do tempo, no entanto, a nossa atividade era alimentada pela sordidez – e não pela bondade ou pela cortesia. E estávamos sempre à beira da perdição.
Ele só me chamava de Júnior, talvez como uma espécie de reverência ao seu próprio nome, que preservava com devoção quase religiosa. Nunca foi fácil para mim ler o nome “Sam Spade – Detetive”, que estava gravado, em letras atraentes, na porta de sua agência. Porque não se tratava apenas de um nome – mas de um conjunto de regras pessoais que estavam associadas a uma lenda que circulava no meio policial e entre os delinquentes mais chinfrins.
Toda vez que eu abria aquela porta era como se estivesse entrando num templo onde estratégias eram montadas e hipóteses, formuladas. Ali, naquele lugar sagrado, era iniciado nos mistérios mais insolúveis da natureza humana. Quando abria a porta, a sua secretária, uma loura voluptuosa, punha os olhos em mim e dizia sempre o mesmo gracejo:
“Ora, ora – o Colt Baby veio atrás da mamadeira!”
Em seguida, indicava com a cabeça a sala onde o meu pai se encontrava e retornava à sua máquina de escrever, as teclas batendo desafinadas.
Sam Spade, júnior. Em qual ombro o filho carrega o estigma do pai?
Vocês, simples mortais, não fazem a mínima ideia do que tive de suportar por ter sido batizado com o nome dele. Não era só a pressão psicológica a que me submetia para não decepcioná-lo na minha iniciação ao submundo – eram sobretudo as piadas que tinha de ouvir nas delegacias e, entre os seus colegas, penava ao ouvir as mais nefandas.
Em razão de seu estilo reservado e lacônico, mas sempre direto, falava pouco sobre a minha mãe, que tinha sido uma mulher especial, mas que havia desaparecido quando eu era criança, e coisa e tal. Por causa dos anos que pesavam e da mão que tremia, ele, por sua vez, desapareceu também numa tarde imprevisível – e nunca mais deu notícias.
Essa lenga-lenga toda é só para dizer que estou numa enrascada dos diabos em virtude de um caso intrincado. Hoje à noite, num lugar suspeito, deverei encontrar um informante, um sujeito deveras ordinário, que prometeu vender-me uma informação vital para o caso do qual me ocupo. Suponho que seja uma armadilha, uma forma vulgar de vingança – matam o filho no lugar do pai. Até agora, não sei qual decisão tomar, não sei o que fazer, nem sei mesmo se deveria comparecer a esse encontro maldito.
Sou muito novo pra levar tiros.
Por causa desse beco sem saída, imagino o que o meu pai diria, no seu jeito malicioso de falar:
“Eu bem que desconfiava, filho. Você nunca levou jeito pra coisa. Neste vale lágrimas, só há lugar para um Sam Spade.”