A questão que me proponho a falar é sobre a superação da metafísica como empreendimento filosófico que teve grande força na história das ideias no século XX e como, afinal, as propostas de superação acabaram por retornar a alguma espécie de metafísica, já então com feições diversas e, às vezes, até denegadas.
Esse tema se apresenta de certo modo como algo árduo, principalmente se ainda não sabemos de que se fala quando se fala de metafísica (ou melhor, de que metafísica estamos falando) e, sobretudo, porque parece haver ainda um tom pejorativo em relação a essa palavra. Em geral, o que se pensava, e talvez se pense ainda hoje ao ouvir o termo “metafísica”, é que este significa “abstração vazia”, “reflexões distanciadas da realidade”, “discurso teológico”, “totalitarismo disfarçado”, “fantasia por universais” etc. De toda sorte, se tratava no século XX de superar algo ruim e que nos impedia de falar das coisas-mesmas (seja lá o que isso signifique), ou como apontava Husserl, que nos impedia de falar do corpo, da experiência, da matéria, do mundo físico (KOLAKOWSKI, 1990).
Relembremos, entretanto, que esse ímpeto de “superação” da metafísica não é algo novo, pois é algo que já sempre esteve ligado à história da filosofia – até mesmo, em certo sentido, no próprio termo metafísica, como “para além da física”. Muito já foi escrito acerca de como Aristóteles não aceitava o Mundo das Formas de Platão e, no entanto, foi ele quem apontou para uma Filosofia Primeira – um outro nome associado à metafísica. Assim como os nominalistas medievais criticavam as “essências” de Aristóteles, mas reivindicavam que o conceito não era um universal e sim que apontava certa relação de semelhança entre os particulares (sem nunca dizerem como isso era possível).
Descartes, por sua vez, desdenhou a metafísica da escolástica dizendo que ele nada havia aprendido de útil com ela, e que ofereceria um fundamento seguro lá no ponto mais racional e abstraído dos sentidos: o eu penso (ao menos segundo ele). Kant assegurou que, até chegar a seu trabalho com a Crítica da Razão Pura, a metafísica nunca havia sido “científica”; e sabemos como os empiristas continuaram achando que ela ainda não podia ser considerada “científica”. Afinal, como seria possível ter experiências (aquilo que é empírico) a partir da proposta de Kant, que depende de uma abstração para fundar toda a experiência? Seu trabalho de “colocar em bases seguras” a metafísica buscando quais eram as “condições de possibilidade a priori da experiência” acabava por colocar no lugar da metafísica uma outra “melhor”, uma “metafísica da experiência”.
Outro pensador notório por buscar superar a metafísica foi Heidegger, por razões bem diversas das de Kant. Dizia Heidegger que era preciso superar a metafísica ocidental porque ela foi a história de um discurso sobre um ente de âmbito teológico (HEIDEGGER, 1935). Nos termos dele, era preciso se perguntar pelo ser mesmo, pelo ser enquanto ser não objetificado, como o foi pela teologia e pela filosofia. Para isso, Heidegger dizia em 1929 que uma metafísica do ser e do tempo seria possível somente se recolocássemos a questão pelo ser de tal modo que considerasse o modo de acesso daquele ente que pode compreender o ser mesmo; nesse caso ele falava do Dasein. Não era um movimento de se afastar da metafísica e, sim, mais uma depuração dela, daquilo que a impedia de se perguntar pelo ser enquanto ser. Também sabemos que me remeto aqui ao projeto do chamado “primeiro Heidegger”, pois o “segundo Heidegger” teria se tornado um destruidor implacável do pensamento metafísico, o qual alegava ser incapaz de pensar o ser (STEIN, 1997).
De toda forma, pode-se observar com Heidegger que o sentido de “metafísica” toma novo rumo: se, em Kant, ainda havia uma referência a um conhecimento suprassensível, agora, com Heidegger, a metafísica se referiria mais a um modo de pensar como traço constituinte do pensamento ocidental. A metafísica já não poderia ser um pensamento do ser, pois este é um sem-razão de ser, surge simplesmente – é um evento (HEIDEGGER, 1935). É a isso que ele se refere com o esquecimento do ser pela metafísica ocidental, que encobriu a questão do ser, que visava explicar o existir, podendo assim encontrar segurança para um ser que lida mal com sua finitude e que, em seu desespero, busca algo objetivo e estável, podendo assim aplicar seu domínio técnico.
Enfim, de certo modo, Heidegger criticou, e com razão, a metafísica de ser excessivamente racionalista e propôs um retorno à experiência, que vem a ser aquela do Da–sein, do evento temporal do ser (STEIN, 1997).
Outra dessas propostas de “superação”, a hermenêutica filosófica, foi por diversas vezes louvada e aclamada como um grande passo na direção de tornar obsoleta a metafísica. Alguns pensadores mais entusiastas disseram até que ela se tornava uma koiné da filosofia, isto é, uma língua comum de onde todos partiriam após a morte da metafísica na filosofia. Essa maneira de entender a hermenêutica nunca foi endossada por Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur – notórios filósofos da hermenêutica filosófica. Essa leitura é, na verdade, uma apreensão da hermenêutica feita por autores como Richard Rorty e Gianni Vattimo. Então, por que se diz que a hermenêutica filosófica supera a metafísica? Porque se compreende que a ideia da hermenêutica filosófica conteria já em si uma crítica radical à metafísica (STEIN, 2010).
Mas nem Gadamer nem Ricoeur fizeram uma ontologia no sentido estrito ou formal – o que lhes renderia mais um elemento a favor de que a hermenêutica filosófica não é uma metafísica – e isso porque partiram da compreensão de que a nossa relação com o mundo seria desde sempre hermenêutica, isto é, interpretativa (ROHDEN, 2002). O que significa dizer que nossa relação com o mundo é regida por interpretações e, se é assim, é, portanto, uma questão de interpretação e não de metafísica. Dessa maneira, então, teríamos um acesso ao ser de modo muito mais amplo, ou melhor, não haveria mais necessidade de uma reflexão pelo ser. Não haveria mais necessidade de uma metafísica como empreendimento reflexivo sobre o ser. Contudo, esse ponto de partida de Gadamer e Ricoeur não pode ser demonstrado de outro modo que não pela metafísica, ou seu sub-ramo, a ontologia. E sabemos que, mesmo eles não tendo produzindo uma ontologia, partiram dos achados de Martin Heidegger, do qual falamos acima (Stein, 2002).
Poderíamos continuar desfilando autores aqui que buscaram essa superação da metafísica no século XX e que, no entanto, a recolocaram de outro modo. Todavia, os olhares atentos de filósofos contemporâneos têm nos mostrado que, talvez, a metafísica não tenha perecido, mas apenas tenha mudado de nome.
[Revisão de Ana Tercia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica. Lisboa: Instituto Piaget, 1987 [1935].
KOLAKOWSKI, L. Horror Metafísico. Campinas: Papirus, 1990.
ROHDEN, L. Hermenêutica Filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
STEIN, E. J. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica. Porto Alegre: Edipucrs, 1997.
STEIN, E. J. Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2010.
STEIN, E. J. Da fenomenologia hermenêutica à hermenêutica filosófica. Veritas, Porto Alegre, v. 47, n. 185, p. 21-34, 2002
O artigo é o terceiro texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/