[Coautor: Jonathan Postaue Marques[1]]
Quando pensamos na inteligência artificial, tratamos do assunto como se falássemos de algo recente. Entretanto, o tema é abordado por cientistas da computação desde meados do século XX. Ademais, o filósofo Pierre Lévy (1956) nos oferece uma interpretação que vai além dessa datação, para ele, a inteligência artificial existe há mais de dois milhões de anos. Segundo essa perspectiva, as pinturas rupestres e a escrita são aparatos que estendem nossa memória. Posto isso, para o pensador, a definição de inteligência artificial não se restringe a máquinas conscientes ou autônomas, mas refere-se a ferramentas que têm a capacidade de agir como uma extensão do aparato cognitivo humano.
Além de Lévy, outros autores exploraram a relação entre a inteligência humana e a artificial e disso originam-se questões como: podemos recriar a mente humana em um objeto a ponto de conferir-lhe a capacidade de pensar? Esse questionamento abre um debate ainda sem resposta e, como veremos adiante, filósofos e cientistas da computação propõem experimentos e desenvolvem pesquisas para fazer avançar o tema.
Estimulado por essa questão, o cientista da computação Alan Turing (1912–1954) escreveu o artigo “Computing machinery and intelligence” (1950), publicado na revista de filosofia Mind. Em seu texto, Turing propõe um teste de verificação, cujo objetivo é confirmar se as máquinas podem ou não pensar. Chamado de Jogo da Imitação, o teste é composto por um participante humano e um participante artificial (computador). Durante o experimento, ambos devem conversar com um juiz humano por meio de um terminal.
Nesse diálogo, que poderia ser sobre poesia, matemática, experiências de vida e diversos outros assuntos, os participantes devem persuadir o juiz e provar sua humanidade. Dessa forma, caso o juiz não consiga determinar quem é o participante não humano, o computador vence o jogo. O Jogo da Imitação foi um dos primeiros estudos realizados sobre o tema no século XX, todavia, recebeu muitas críticas, pois a capacidade de mentir e se passar por humano não parece ser prova suficiente para sustentar a hipótese de que máquinas podem pensar.
Anos mais tarde, o filósofo John Searle (1932) desenvolveu um experimento mental que buscava demonstrar a inexistência de cognição relevante em máquinas. O chamado Argumento da sala chinesa (1980), de Searle, consiste em um experimento no qual o filósofo está preso em uma sala com apenas uma janela, por onde são entregues três folhas: um papel com questões em chinês, uma folha em branco e uma folha redigida em inglês. Searle não fala chinês, mas deve escrever na folha em branco uma resposta às perguntas em chinês. Para isso, deverá utilizar em seu auxílio a terceira folha, composta por regras de resposta, redigidas em sua língua nativa. As regras não ensinam mandarim ou explicam o significado dos caracteres, elas apenas indicam quais caracteres do alfabeto chinês devem ser redigidos, quando determinados símbolos da língua chinesa aparecerem. Ao seguir as regras e responder à mensagem, Searle deverá devolver a folha respondida pela janela. Do outro lado, uma pessoa receberá uma mensagem em chinês escrita por Searle.
Para o sujeito que recebeu o papel com texto redigido, Searle parece ser fluente em chinês, mas ele realmente sabe chinês? É evidente que não, já que apenas está seguindo as orientações que lhe foram passadas em sua língua nativa, isto é, ele desconhece o significado dos símbolos que observou e escreveu. De maneira análoga, para Searle, as máquinas exibem a mesma conduta, seguem regras e respondem símbolos com outros símbolos sem que entendam o seu sentido.
Além desses autores, o filósofo Thomas Nagel (1937) também contribuiu para a discussão sobre o pensar em máquinas. No artigo “What is it like to be a bat” (1974), Nagel questiona a tese materialista que sugere que todo fenômeno mental pode ser reduzido a um fenômeno físico (objeto de investigação composto por princípios compreensíveis mediante análise racional e observação empírica). Em geral, a ciência busca transformar os fenômenos – quaisquer que sejam – em fenômenos físicos, por exemplo, quando um químico afirma que a água pode ser reduzida a dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, ele sintetiza toda substância para a estrutura molecular H₂O, um modelo que se torna a representação de um objeto real, tornando o elemento um fenômeno físico. Desse modo, assim como o exemplo da água, Nagel questiona a possibilidade de sintetizar os fenômenos mentais, transformando-os em fenômenos físicos, de modo que a mente seja apenas um fenômeno reduzido fisicamente.
Com efeito, Nagel desenvolve um experimento mental no qual o leitor deve imaginar-se como um morcego, percebendo o mundo por meio de um sonar de ecolocalização. Entretanto, é claro que essa experiência sensorial não pode ser fidedignamente imaginada por nós. Da mesma forma, seres extraterrestres desprovidos de percepção visual não podem experienciar a sensação de cor dos humanos. Posto isso, é evidente que a luz visível pode ser reduzida a fenômenos físicos (fótons), contudo, a sensação que temos ao olhar um lindo jardim colorido e a ecolocalização dos morcegos são experiências irredutíveis. Mas, afinal, como o artigo de Nagel acerca da impossibilidade da redução da consciência a fenômenos físicos se relaciona com o tema da inteligência artificial?
Uma das metas da ciência da computação é: desenvolver redes neurais artificiais que simulam a mente humana, com o objetivo de compreender melhor seu mecanismo de funcionamento. Todavia, segundo Nagel, ainda que uma inteligência artificial simule a consciência humana, nossas experiências de mundo são compostas por fenômenos mentais irredutíveis, portanto, as máquinas não poderiam pensar como seres humanos. Por fim, ao explorarmos esses experimentos, concluímos que a questão ainda permanece aberta. Não sabemos – de modo indubitável – se é ou não possível desenvolver máquinas que pensam como humanos, contudo, o trabalho conjunto de cientistas da computação e filósofos continua avançando na busca de respostas.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
DOIS MILHÕES de anos de inteligência artificial – Pierre Lévy, 2018. (4 min.). Fronteiras do Pensamento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=796fI61AtlE. Acesso em: 7 abr. 2024.
NAGEL, T. What Is It Like To Be a Bat? The Philosophical Review, v. 83, n. 4, p. 435-450, out. 1974. Disponível em: https://www.sas.upenn.edu/~cavitch/pdf-library/Nagel_Bat.pdf. Acesso em: 07 abr. 2024.
SEARLE, J. R. Minds, brains and programs. Behavioral and Brain Sciences, v. 3, n. 3 p. 417-424, set. 1980. Disponível em: https://web-archive.southampton.ac.uk/cogprints.org/7150/1/10.1.1.83.5248.pdf. Acesso em: 7 abr. 2024.
TURING, A. M. Computing Machinery and Intelligence. Mind, v. 59, n. 236, out. 1950. p. 433-460. Disponível em: https://academic.oup.com/mind/article/LIX/236/433/986238. Acesso em: 07 abr. 2024.
[1]Graduado em Filosofia pela UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o sexto texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.