[Gabriel Santana[1]e Paula Mariana Entrudo Rech[2]]
Ricœur, filósofo francês cuja trajetória inicial foi influenciada pelo existencialismo de Gabriel Marcel (1889-1973) e pela fenomenologia de Edmund Husserl (1859-1938), enxerta a hermenêutica em sua filosofia. Na década de 1960, investigou exaustivamente a consistência epistemológica do discurso psicanalítico de Sigmund Freud (1856-1939). Sua investigação resultou na obra Da Interpretação – Ensaio sobre Freud (1977), publicada em 1965. Em nossa argumentação, não utilizaremos o Da Interpretação, mas um ensaio posterior, “Uma interpretação filosófica de Freud”, resultado de sua comunicação realizada na Sociedade Francesa de Filosofia em 1966.
Antes de apresentarmos sua interpretação filosófica da psicanálise, é preciso dizer em que consiste a hermenêutica ricoeuriana. Para Ricoeur, a hermenêutica comporta uma tripla definição: i) método, porque envolve regras estruturais rigorosas; ii) reflexão, pois encara a natureza, a condição e o funcionamento da compreensão; iii) interpretação, como uma espécie de filosofia da inteligibilidade de si mesmo a partir do outro (RICOEUR, 1995).
O ensaio “Uma interpretação filosófica de Freud” é dividido em três seções, a partir de duas etapas. A primeira etapa, que contém a primeira seção, refere-se à leitura de Freud. A segunda etapa inclui as seções dois e três e refere-se à interpretação filosófica de Freud. A segunda seção trata de uma interpretação reflexiva da psicanálise, enquanto a terceira busca apresentar a reinterpretação reflexiva dos conceitos psicanalíticos. Nosso foco aqui será apenas nas duas primeiras seções do texto ricoeuriano. Portanto, qual a contribuição da hermenêutica ricoeuriana para a interpretação filosófica da psicanálise freudiana?
Em seu texto, Ricoeur distingue duas posturas que um filósofo pode assumir diante da obra de Freud: a leitura e a interpretação. A leitura pauta-se pela reconstituição arquitetônica da obra, conforme o termo empregado pelo historiador Martial Gueroult (1891-1976), que denota a apreensão a partir de um esquema de temas que o entendimento capta e articula para estruturar e reconstruir a obra. Nesse sentido, Ricoeur reconstitui a obra freudiana reposicionando o discurso de seu autor, isto é, tomando uma posição crítica relativa a ela, sem perder de vista a objetividade original do discurso psicanalítico.
No entanto, para o filósofo francês, além da obra escrita de Freud, a experiência analítica também pode ser lida e compreendida, pois o significado daquilo que é vivido na prática psicanalítica é essencialmente comunicável. Assim, porque a experiência analítica é comunicável, pode ser transposta pela doutrina para o plano da teoria, com o auxílio de conceitos descritivos que dependem de um segundo nível de conceitualidade, encarados como textos oníricos ou textos sintomáticos. Isso constitui inicialmente a leitura e a interpretação filosóficas da psicanálise, tanto em sua dimensão prática, da experiência comunicável transposta em doutrina, quanto em sua dimensão teórica, do texto sistemático interpretável. Conforme Ricoeur:
É essa pertença, tanto da experiência analítica como da doutrina freudiana, à ordem dos signos que legitima fundamentalmente, não só a comunicabilidade da experiência analítica, mas o seu carácter homogéneo, em última instância, à totalidade da experiência humana que a filosofia tenta refletir e compreender (RICOEUR, 1978, p. 163).
Na primeira etapa de desenvolvimento de seu texto, Ricoeur afirma que o objeto da investigação freudiana é sobretudo o desejo numa relação conflituosa com a cultura, pois, quando Freud escreve sobre a arte, a moral e a religião, não estende à realidade cultural uma ciência que teria primeiro encontrado seu lugar na biologia humana ou na psicofisiologia, ao contrário, sua ciência e sua prática se mantêm no ponto de articulação do desejo e da cultura. Portanto, a leitura que Ricoeur faz da psicanálise considera o discurso freudiano como um discurso misto, o qual pretende explicar a ligação das questões de sentido com as questões de força numa semântica do desejo. Vale dizer: questões de sentido referem-se ao significado dos sintomas, do pensamento e das palavras dos sonhos; enquanto as questões de força referem-se à dinâmica dos conflitos (como o recalque, por exemplo) e a todo o vocabulário econômico-energético de Freud (investimento, desinvestimento, sobreinvestimento etc.). Segundo Ricœur (1978), essa chave de leitura – “semântica do desejo” –, ao articular sentido à força e força ao sentido, preserva o naturalismo do freudismo.
Na primeira seção da segunda etapa, Ricoeur desenvolve sua interpretação da obra de Freud a partir da filosofia reflexiva de Jean Nabert (1881-1960). Nabert foi um filósofo francês que enfatizou a reflexão como o aspecto constituinte do conhecimento humano. Segundo Ricoeur, foi em Nabert que ele encontrou a descoberta da formulação da relação entre o desejo de ser e os signos em que o desejo se manifesta. A hipótese ricoeuriana, exposta na obra A simbólica do mal (2013), é de que compreender os signos implica compreender-se a si mesmo. Desse modo, influenciado por Nabert, a proposta ricoeuriana de uma reflexão concreta do sujeito se dá a partir de um cogito mediatizado pela compreensão dos símbolos.
É nesse sentido que a interpretação da psicanálise freudiana se desenvolve. A partir da filosofia reflexiva surge a questão da origem do sujeito no discurso psicanalítico freudiano. Conforme Ricœur (1978, p. 168):
[…] como enunciar a sequência Ics, Pcs, Cs, [Inconsciente, Pré-consciente, Consciente] e a sequência Eu, Isso, Super Eu sem pôr a questão do sujeito? E como pôr a questão do desejo e do sentido, sem perguntar ao mesmo tempo: desejo de quem? Sentido para quem?
Para o filósofo francês, a questão do sujeito é problematizada pela psicanálise, mas não tematizada por ela, muito menos posta apoditicamente. Segundo ele, é a partir do juízo tético, categorizado por Fichte, que a questão do sujeito é posta apoditicamente, isto é, posta como algo evidente e lógico, pois a existência é posta como pensamento e o pensamento como existência: “eu penso, eu sou”. Isso, portanto, consiste em uma filosofia da reflexão concreta, segundo Ricœur.
Desse modo, se, por um lado, a chave de leitura de Freud consiste na hipótese da “semântica do desejo”, por outro, a interpretação filosófica, a partir da reflexão concreta, está situada em uma “hipótese sem começo”, o apodítico do “eu penso, eu sou” e, por isso, é necessária uma arqueologia do sujeito na psicanálise. Arqueologia do sujeito, pois, sendo a análise uma decomposição regressiva, resta refletir sobre um sentido constituído antes de si mesmo. Assim, a interpretação filosófica de Ricoeur sobre o freudismo produz não uma desmistificação da consciência, mas um desvelamento da subjetividade. A consciência, segundo ele, é tanto um problema quanto uma tarefa. Mais do que um ser consciente, essa reflexão implica tornar-se consciente.
Portanto, a contribuição da hermenêutica ricoeuriana para a interpretação filosófica da psicanálise freudiana se dá em dois pontos. 1º ponto: a chave de leitura do freudismo como um discurso misto que consiste na semântica do desejo articulando questões de força (energética) e questões de sentido (hermenêutica). 2º ponto: uma interpretação reflexiva da psicanálise, que visa investigar uma arqueologia do sujeito a partir da concretude da existência, considerando a inadequação da apreensão imediata da consciência.
Comunicação apresentada no X CIFIP (Congresso Internacional de Filosofia e Psicanálise), ocorrido em novembro de 2023, na cidade de Campo Grande, cujo tema foi: “Entre a trama e o movimento: para onde vai a Filosofia da Psicanálise?”
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
RICOEUR, Paul. Uma interpretação filosófica de Freud. In: O conflito das interpretações. Ensaios de hermenêutica. Tradução: Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978. p. 159-174.
RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Tradução: António Hall. Lisboa: Edições 70, 1995. (Biblioteca de filosofia contemporânea).
RICOEUR, Paul. A simbólica do mal. Tradução: Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2013. (Biblioteca de filosofia contemporânea; 45)
RICOEUR, Paul. Da interpretação: Ensaio sobre Freud. Tradução: Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.
[1] Graduando em Letras/Espanhol pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: jhonatan.gabriel@gmail.com
[2] Paula Mariana Entrudo Rech é doutoranda em Filosofia, com bolsa CAPES, na Universidade Federal do Ceará. Email: paula.mariana.rech@gmail.com
O artigo é o oitavo texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.