[Curadoria de Luís Araujo Pereira; tradução de Antón Corbacho Quintela]
[1]
La musa
Yo la quiero cambiante, misteriosa y compleja;
Con dos ojos de abismo que se vuelvan fanales;
En su boca, una fruta perfumada y bermeja
Que destile más miel que los rubios panales,
A veces nos asalte un aguijón de abeja;
Una raptos feroces a gestos imperiales
Y sorprenda en su risa el dolor de una queja;
En sus manos asombren caricias y puñales!
Y que vibre, y desmaye, y llore, y ruja, y cante,
Y sea águila, tigre, paloma en un instante,
Que el Universo quepa en sus ansias divinas;
Tenga una voz que hiele, que suspenda, que inflame,
Y una frente que erguida su corona reclame
De rosas, de diamantes, de estrellas o de espinas!
El libro blanco (1910)
A musa
Eu a quero oscilante, misteriosa e complexa;
Com dois olhos de abismo que virem faróis;
Na sua boca, uma fruta perfumada e encarnada
Que destile mais mel que os dourados panais,
Que às vezes nos assalte um ferrão de abelha;
De arrebatamentos ferozes a gestos imperiais
E surpreenda em seu riso a dor de uma queixa;
Em suas mãos fascinem carícias e punhais!
E que vibre, e desmaie, e chore, e ruja, e cante,
E seja águia, tigre, pomba em um instante,
Que o Universo caiba em suas ânsias divinas;
Tenha uma voz que gele, que suspenda, que inflame,
E uma testa que erguida a sua coroa reclame
De rosas, de diamantes, de estrelas ou de espinhos!
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[2]
El intruso
Amor, la noche estaba trágica y sollozante
Cuando tu llave de oro cantó en mi cerradura;
Luego, la puerta abierta sobre la sombra helante,
Tu forma fue una mancha de luz y de blancura.
Todo aquí lo alumbraron tus ojos de diamante;
Bebieron en mi copa tus labios de frescura,
Y descansó en mi almohada tu cabeza fragrante;
Me encantó tu descaro y adoré tu locura.
Y hoy río si tú ríes, y canto si tú cantas;
Y si tú duermes, duermo como un perro a tus plantas!
Hoy llevo hasta en mi sombra tu olor de primavera;
Y tiemblo si tu mano toca la cerradura,
Y bendigo la noche sollozante y oscura
Que floreció en mi vida tu boca tempranera!
El libro blanco (1910)
O intruso
Amor, a noite estava trágica e soluçante
Quando a tua chave de ouro cantou na minha fechadura;
Depois, a porta aberta sobre a sombra gelante,
Tua forma foi uma mancha de luz e de brancura.
Tudo aqui o alumbraram teus olhos de diamante;
Beberam em meu cálice teus lábios de frescura,
E descansou em meu travesseiro tua cabeça fragrante;
Encantou-me teu descaro e adorei tua loucura.
E hoje eu rio se você rir, e canto se você cantar;
E, se você dormir, durmo como um cachorro aos teus pés!
Hoje levo até a minha sombra o teu cheiro de primavera;
E tremo se a tua mão tocar a fechadura,
E abençoo a noite soluçante e escura
Que floresceu em minha vida a tua boca temporã!
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[3]
Lo inefable
Yo muero extrañamente… No me mata la Vida,
No me mata la Muerte, no me mata el Amor;
Muero de un pensamiento mudo como una herida…
¿No habéis sentido nunca el extraño dolor
De un pensamiento inmenso que se arraiga en la vida,
Devorando alma y carne, y no alcanza a dar flor?
¿Nunca llevasteis dentro una estrella dormida
Que os abrasaba enteros y no daba un fulgor?…
Cumbre de los Martirios!… Llevar eternamente,
Desgarradora y árida, la trágica simiente
Clavada en las entrañas como un diente feroz!…
Pero arrancarla un día en una flor que abriera
Milagrosa, inviolable!… Ah, más grande no fuera
Tener entre las manos la cabeza de Dios!!
Cantos de la mañana (1910)
O inefável
Eu morro estranhamente… Não me mata a Vida,
Não me mata a Morte, não me mata o Amor;
Morro de um pensamento mudo como uma ferida…
Vocês nunca sentiram a estranha dor
De um pensamento imenso que se arraiga na vida,
Devorando alma e carne, e não chega a dar flor?
Vocês nunca levaram dentro uma estrela dormida
Que abrasava vocês inteiros e não dava um fulgor?…
Cume dos Martírios!… Levar eternamente,
Desgarradora e árida, a trágica semente
Cravada nas entranhas como um dente feroz!…
Mas arrancá-la um dia em uma flor que abrir
Milagrosa, inviolável!… Ah, maior não seria
Ter entre as mãos a cabeça de Deus!!
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[4]
Nocturno
Fuera, la noche en veste de tragedia solloza
Como una enorme viuda pegada a mis cristales.
Mi cuarto…
Por un bello milagro de la luz y del fuego
Mi cuarto es una gruta de oro y gemas raras:
Tiene un musgo tan suave, tan hondo, de tapices,
Y es tan vívida y cálida, tan dulce que me creo
Dentro de un corazón…
Mi lecho que está en blanco es blanco y vaporoso
Como flor de inocencia,
Como espuma de vicio!
Esta noche hace insomnio;
Hay noches negras, negras, que llevan en la frente
Una rosa de sol…
En estas noches negras y claras no se duerme.
Y yo te amo, Invierno!
Yo te imagino viejo,
Yo te imagino sabio,
Con un divino cuerpo de mármol palpitante
Que arrastra como un manto regio el peso del Tiempo…
Invierno, yo te amo y soy la primavera…
Yo sonroso, tú nievas:
Tú porque todo sabes,
Yo porque todo sueño…
…Amémonos por eso!…
Sobre mi lecho en blanco,
Tan blanco y vaporoso como flor de inocencia,
Como espuma de vicio,
Invierno, Invierno, Invierno,
Caigamos en un ramo de rosas y de lírios!
Los cálices vacíos (1913)
Noturno
Fora, a noite em veste de tragédia soluça
Como uma enorme viúva presa aos meus vidros.
Meu quarto…
Por um belo milagre da luz e do fogo
Meu quarto é uma gruta de ouro e gemas raras:
Tem um musgo tão suave, tão fundo, de tapetes,
E é tão vívida e cálida, tão doce que acho que estou
Dentro de um coração…
Meu leito que está em branco é branco e vaporoso
Como flor de inocência,
Como espuma de vício!
Esta noite faz insônia;
Há noites escuras, escuras, que levam na testa
Uma rosa de sol…
Nestas noites escuras e claras não se dorme.
E eu te amo, Inverno!
Eu te imagino velho,
Eu te imagino sábio,
Com um divino corpo de mármore palpitante
Que arrasta como um manto régio o peso do Tempo…
Inverno, eu te amo e sou a primavera…
Eu purpureio, você neva:
Você porque sabe tudo,
Eu porque tudo sonho…
..Amemo-nos por isso!…
Sobre meu leito em branco,
Tão branco e vaporoso como flor de inocência,
Como espuma de vício,
Inverno, Inverno, Inverno,
Caiamos em um ramo de rosas e de lírios!
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[5]
En el camino
Yo iba sola al Misterio bajo un sol de locura,
Y tú me derramaste tu sombra, peregrino;
Tu mirada fue buena como una senda oscura,
Como una senda húmeda que vendara el camino.
Me fue pródiga y fértil tu alforja de ternura:
Tuve el candor de pan, y la llama del vino;
Mas tu alma en un pliegue de su astral vestidura,
Abrojo de oro y sombra se llevó mi destino.
Mis manos, que tus manos abrigaron, ya nunca
Se enfriarán, y guardando la dulce malla trunca
De tus caricias ¡nunca podrán acariciar!…
En mi cuerpo, una torre de recuerdo y espera
Que se siente de mármol y se sueña de cera,
Tu Sombra logra rosas de fuego en el hogar;
Y en mi alma, un castillo desolado y sonoro
Con pátinas de tedio y humedades de lloro,
¡Tu sombra logra rosas de nieve en el hogar!
Los astros del abismo (1924)
No caminho
Eu ia sozinha ao Mistério sob um sol de loucura,
E me derramaste a tua sombra, peregrino;
Teu olhar foi bom como uma trilha escura,
Como uma trilha úmida que bandasse o caminho.
Foi-me pródigo e fértil o teu alforje de ternura:
Tive a candura do pão, e a chama do vinho;
Mas tua alma em uma dobra da sua astral vestidura,
Abrolho de ouro e sombra levou o meu destino.
Minhas mãos, que tuas mãos agasalharam, já nunca
Esfriarão, e guardando a doce malha truncada
De tuas carícias, nunca poderão acariciar!…
Em meu corpo, uma torre de lembrança e espera
Que se sente de mármore e se sonha de cera,
Tua Sombra alcança rosas de fogo no lar;
E em minha alma, um castelo desolado e sonoro
Com pátinas de tédio e umidades de choro,
Tua sombra alcança rosas de neve no lar!
Delmira Agustini nasceu em Montevidéu no dia 24 de outubro de 1886 e morreu na mesma cidade em 6 de julho de 1914, assassinada aos 27 anos pelo ex-marido. Educada em família talentosa e próspera, compôs os seus primeiros versos aos dez anos de idade, estudou francês, que falava fluentemente, e executava ao piano peças de Bach, Beethoven e Chopin, além de se dedicar ao desenho e à pintura. Abandonou a música e as artes visuais para se ocupar exclusivamente da literatura, que considerava sua grande vocação. Entre 1902 e 1903, os seus poemas foram divulgados nas revistas Rojo y blanco, La petite revue e La alborada. Em vida, publicou os seguintes livros: El libro blanco (1907), Cantos de la mañana (1910) e Los cálices vacíos (1913). Após a sua trágica morte, foram reunidos em 1924 os seus últimos poemas sob o título Los astros del abismo. Em 2019, a editora madrilenha Visor Libros, na Colección Visor de Poesía, publicou Delmira Agustini – Poesia Completa (1902-1924), obra organizada pela pesquisadora Mirta Fernández dos Santos, especialista em poesia hispano-americana e professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal). Em seu longo estudo introdutório, aborda diversos aspectos estéticos e sociais de sua poesia. Em suas palavas: “O universo lírico de Delmira Agustini está conformado primordialmente por elementos tomados da estética modernista, ainda que se encontrem em sua obra reminiscências românticas, góticas e inclusive naturalistas e vanguardistas, conforme apontam determinados críticos. A coexistência de todas as influências mencionadas deu lugar a um secular e intenso debate, que ainda segue em aberto, cujo propósito é tratar de enquadrar a poética delmiriana no seio de um movimento literário determinado. Todavia, além da controvérsia suscitada pelas tentativas de categorização unívoca da obra da poeta uruguaia, esforços que até agora se têm revelado infrutíferos, por causa da heterogeneidade de seu legado, o que define a lírica de Agustini é a sua intensidade e, sobretudo, sua particular cosmovisão, através da qual conseguiu expandir os horizontes literários de fim de século até territórios que até então não tinham sido explorados. Nesse sentido, consideramos que a singularidade de Delmira em seu ambiente intelectual está mais mais relacionada com sua condição quase excepcional de poeta-mulher do que com o caráter híbrido de suas influências literárias. Em qualquer caso, trata-se de um erro negar os rastros modernistas na obra de Agustini, já que estes transparecem abertamente tanto nos poemas que publicou em revistas locais no começo de sua carreira literária quanto no El libro blanco (frágil), seu primeiro livro de poemas. No entanto, também é certo que, a partir das composições editadas em sua segunda coleção de poemas, Cantos de la mañana, a marca modernista vai retornando mais tênue, ao mesmo tempo em que novos elementos, em geral mais inquietantes, começam a habitar seu imaginário. De acordo com Margarida Rojas, Flora Ovares e Sonia Mora, Agustini compõe parte da ‘tendência contestadora do Modernismo’, visto que rompe com violência a barreira do pudor religioso e da moralidade burguesa, as quais determinavam na época os limites da presença do erótico na literatura. Esta subversão explicaria o estigma que, durante muitos anos, sofreu a produção poética da autora de Los cálices vacíos, a partir do ponto de vista crítico. Em virtude do exposto, a rebeldia exercida pela poeta oriental é dupla, pois não somente atreve-se a escrever sobre um tema que então resultava indecoroso, como além do mais o faz na sua condição de mulher, em primeira pessoa. E a dita reelaboração da poesia amorosa, além da existência de uma iconografia comum entre seus textos e os de seus coetâneos, seria a verdadeira contribuição de Agustini ao movimento modernista” (“Uma aproximação à poética de Delmira Agustini”, p.7-9. Trad. do Curador).
Antón Corbacho Quintela é graduado em Filologia Hispânica pela Universidade de Santiago de Compostela (1996). Na mesma universidade, obteve o título de mestre (2001) e doutor (2009) em Filologia Galega. Atualmente é professor associado da área de Espanhol da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro do Grupo de Pesquisa Galabra da Universidade de Santiago de Compostela. Tem experiência na área de Estudos Literários, com ênfase em Estudos da Cultura, principalmente tratando dos seguintes temas: Imigração e Aculturação, Sistemas Literários e Identidade e Produção Editorial.