“Qual música você quer ouvir?”
Eu me senti como se minhas preferências musicais estivessem sendo sondadas:
“Clarice.”
Caetano não era o músico que animava as nossas contestações mais ferozes, embora, algumas vezes, fosse útil para os dias de paquera nas amenidades do centro acadêmico, quando todas aquelas garotas bonitas e de pernas bem-feitas apareciam, depois das aulas, carregando livros, cadernos e com uma bolsa escorregando do ombro, sorrindo e conversando alto, como se fossem as cinderelas da estação.
As que frequentavam com regularidade o centro não bancavam as difíceis, apesar de uma ou outra, para não fugir à regra, dizer:
“Corta essa, bicho!”, caso a abordagem fosse sem imaginação, despropositada e eivada de clichês.
Essas eram as bravas – elas só defendiam o charme das virgens intocáveis. Para falar a verdade, frescas mesmas eram as que não participavam de nada, tinham jeito de normalistas encalhadas e ficavam na porta do prédio esperando o carro da família buscá-las.
Eu preferia as mulheres – por que não dizer logo? – corajosas, supercabeças e insubmissas e, na maior parte das vezes, bonitas. Além disso, achava que nunca mais as veria na semana seguinte: naquela época, as pessoas tinham a estranha mania de desaparecer involuntariamente de um dia para o outro.
Na faculdade, após as aulas, se não havia reunião política, redação de panfletos e preparação de faixas com frases contra a ditadura, nós íamos para o centro acadêmico ouvir música, conversar e fumar. E, é claro, havia essa canção de Caetano, derramada e entrecortada de ritmos.
Essa música sempre fora uma boa isca, dependendo, é claro, da garota, apesar de eu ter outras preferências, como todas as músicas de Chico Buarque, que soube compor uma canção inesquecível para diversos momentos da minha vida.
Foi para Cristina que respondi então a pergunta, uma estudante de Letras. No instante em que ela colocou certeiramente a agulha no sulco do disco, fiquei impressionado: as mulheres dessa área tinham mais coordenação do que as de Ciências Sociais e História, não obstante estas fossem muito astutas em tantos assuntos e bem informadas. Bom, pra encerrar o lero, essa observação boba é só um rascunho.
Pela primeira vez, na minha convivência no centro, uma garota acertou o sulco de primeira. Ela tinha ainda a seu favor o fato de que todas as faixas do disco eram bastante gastas – umas mais, outras menos.
Cristina era uma burguesinha que nutria a esperança de encontrar um bom partido no curso de Medicina, Engenharia ou, na pior das hipóteses, no de Humanas. Ter lido o Manifesto comunista e correr da polícia nas passeatas não a tornavam uma revolucionária; pelo contrário, ela apenas surfava na onda das contestações, pois pertencia a uma família poderosa cujo pai era senador.
Distraidamente, quando cruzava as pernas, eu via a cor de sua calcinha, mas sabia que esse movimento não tinha intenção sedutora. Ela o fazia só para se posicionar melhor na poltrona, porém servia para os meus olhos se nutrirem de fantasias – esse breve deslumbramento que perturba os hormônios.
Frequentar o centro acadêmico, discutir marxismo e maoismo, ouvir MPB e participar de ações temerárias de rua contra a ditadura davam-nos a ilusão de que o Brasil, dentro de pouco tempo, ficaria livre dos militares, da tirania, da censura, do medo da prisão e da tortura.
Para confirmar a minha escolha, perguntou de novo:
“Você disse ‘Clarice’?”
Eu sorri para ela – e confirmei balançando a cabeça.
De repente, num gesto elegante, a bela mulher abaixou o volume e fez-me outra pergunta – a melhor surpresa daquele fim de manhã:
“Em qual revolução você acredita?” – e, maliciosa, piscou o olho direito, como se quisesse me encabular mais uma vez.