[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
uma linha que não fecha
aqui o rio é verde, tem o mesmo tom do
gradil da ponte. um dia você
disse que a única coisa verde
dessa cidade
era o rio.
o resto,
disse,
só galho seco.
o resto não apaga, pensei,
e hoje quando cruzei a ponte
lembrei da sua voz
na gravação:
– é uma linha que nunca se fecha.
os anos vão passando
e a gente em cidades
diferentes –
quando vi o rio passando
lembrei dessa linha e do dia em que
nos conhecemos.
você sabe o que se diz para alguém
no primeiro encontro? ele me disse:
– sabia que nessa cidade
quando chega o inverno
a grama entra em repouso?
eu poderia ter dito
– quer ver na ilha em frente
os emus australianos?
mas não disse nada, fiquei
muda olhando a grama em repouso.
ele usava 24 tons de verde
para desenhar, só não via do lado
de fora. quando lembro
dele, não penso no verde das telas.
só penso no buraco:
– como se apaga um buraco?
hoje quando fecho os olhos
penso naquela linha que não fecha
e no primeiro dia, quando ele
disse:
– você ainda vai me ver três vezes
antes do fim. fique atenta
aos sinais.
Câmera lenta (2017)
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[2]
terremoto
um terremoto replicando
por vários dias,
à noite as luzes de néon paradas
e, na manhã seguinte,
a tremedeira outra vez.
você pensa que o futuro
ainda não chegou, mas
de repente o terremoto
replicando faz tremer a língua
os dentes e tudo o que é
matéria.
por mais que use as palmas
para cobrir os ouvidos,
a ternura – o que você quer dizer? –
aliás, a tremura chega
arrastando tudo.
era como um país virando mar
um terremoto replicando
sem parar. se as réplicas consistem
em tremedeiras, e se uma língua é desenhada
fora das linhas,
como conciliar o
inconciliável?, pergunto
no momento de maior
desligamento e
ele responde:
– agora o seu wasabi
tem radioatividade.
essa cor brilhante,
de um verde quase prata,
era como a luz batendo no mar
bem na hora em que o chão –
e tudo recomeça.
quero pedir
silêncio, mas não sei lidar
com o imponderável.
um dia acordo
e não espero
mais resposta.
Câmera lenta (2017)
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[3]
diferenças
a realidade é o que não
desaparece quando
deixamos de acreditar nela,
você dizia com os dedos abertos
tentando afastar aquela névoa dos
olhos.
ali podia quase tocar o real,
mas no fim não entendia o
que ele tentava dizer. Seguiam
pelo rio tentando deixar
a linha de sombra do outro lado.
até hoje ao passar ali lembro do esforço
naquele dia para perceber o que estava
errado.
ele escrevia para contar que lá
tinham um templo dedicado aos gatos,
para contar que ela chorava
todas as tardes no mesmo horário,
para contar que largaria tudo
e cruzaria o oceano.
talvez essa já seja a terceira vez que
ele aparece. só lembro que antes
de ir embora,
parecia um espectro
no meio da poeira.
olhou para fora
e disse conheci alguém.
então, 24 chamadas
perdidas de propósito
e o bilhete
debaixo da porta:
diga alguma coisa pelo menos
diga que o avião não caiu
que não queimaram os carros
e que ainda existe um bulevar periférico ao redor
da sua casa.
a realidade é o que não
desaparece depois de tudo, penso,
mas esta cidade não é real:
o rio fica na parte alta –
como faz para não escorrer
sobre o asfalto?
Câmera lenta (2017)
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[4]
assim se diz está chovendo
enquanto aponto
o lápis
fecho os olhos
e abro a janela do poema – para que entrem
todos os insetos
mas está chovendo
as gotas respingam e molham o chão
uma imensa tempestade cobre a paisagem
eu abro os olhos pego um livro
na estante e
vejo
é um dia de verão
sylvia plath está sentada
diante da janela vendo a chuva que cai
é dia 1º de julho
está quente úmido fumegante
e chove torrencialmente
ela pega uma caneta sem tirar os olhos
do molhado está tentada a escrever um
poema
ela apoia a caneta no papel
e anota: nunca esquecer
da carta de recusa que um dia recebi
contendo três linhas
“após o aguaceiro
poemas intitulados chuva
inundam o país inteiro”
Expedição: nebulosa (2023)
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[5]
perder o chão
você tem dedos
você é uma máquina
o polegar não deve se ouvir
indicador médio anular dedo mínimo ou
auricular
as teclas vão num ritmo que varia
soltar os dedos os punhos engessados
procurar aquela palavra que estava
colada na mão não encontra
onde ela caiu? caminhar num lugar
sem chão
perder o chão
era um ponto vermelho
minúsculo escondido
um cisco
“Trinta dias sem ver você”
“Em silêncio sem saber nem ouvir nada”
escrevi as duas frases
a lápis num caderno
estava no meio de um sonho
depois li e chorei pensando que
ela tinha acabado
saturno não tem superfície
não tem chão é um planeta feito
de gás com um pequeno núcleo de
rocha e metais
não ter onde pisar é estarrecedor
Expedição: nebulosa (2023)
Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 29 de novembro de 1979. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2002, doutorou-se em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além de poeta, é artista performática, tradutora e trabalha com edição. Com Leonardo Gandolfi, foi fundadora da editora Luna Parque.. É autora dos seguintes livros de poemas: 20 poemas para o seu walkman (2007), Engano geográfico (2012), Um teste de resistores (2014), Paris não tem centro (2016), Câmera lenta (2017, Prêmio Oceanos), Parque das ruínas (2018) e Expedição: nebulosa (2023). Seus livros foram publicados na Argentina, Colômbia, no Chile, nos Estados Unidos, em Portugal e na Espanha.