A Todavia publicou neste ano a edição brasileira do romance Seul, São Paulo, do escritor boliviano Gabriel Mamani Magne (traduzido para o português por Bruno Cobalchini Mattos). A obra é vencedora do Prêmio Nacional de Romance da Bolívia, em 2019, e pode ser resumida como um romance de formação protagonizado por dois primos adolescentes: Tayson Pacsi, nascido no Brasil, e o narrador, paceño. Ambos na reta final do ensino médio, cursando o “pré-militar” (espécie de substituto para o serviço militar obrigatório), os personagens perambulam pelas ruas de La Paz (e El Alto, na região metropolitana), lidando com questões como identidade, vida escolar, carreira profissional, família, sexualidade, amor, sonhos e tantas outras. Enquanto precisam se decidir sobre o próximo grande passo do início de suas vidas adultas, lidam com questões familiares, namorada (ou ausência dela) e buscam compreender sua própria “bolivianidade”, muitas vezes em conversas regadas a álcool e maconha com o amigo Dino, que vive de vender livros nas ruas.
O autor Gabriel Mamani Magne nasceu em La Paz, em 1987. É formado em Sociologia e Direito, fez mestrado em Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atualmente vive em Goiânia, onde cursa doutorado em Letras na Universidade Federal de Goiás (UFG). É autor de Tan cerca de la luna [Tão perto da lua] (2012) e El rehén [O refém] (2021), ambos ainda inéditos no Brasil. Aqui, você confere uma entrevista exclusiva concedida ao jornalista e escritor Adérito Schneider, realizada especialmente para a Ermira.
Acredito que o principal tema de Seul, São Paulo é identidade, especialmente pelo viés da dicotomia entre nacionalismo e sua relação com o estrangeiro, da questão da migração. Por que você escolheu abordar essa(s) temática(s) por meio de um romance de formação?
Grande parte dos temas apareceu aos poucos, sozinhos, sem a minha intervenção. Quando você fala de adolescência está falando de portas que se abrem para a sexualidade, as ideologias e outras ideias abstratas nas quais você não tinha reparado antes. Então, para os personagens, foi normal ter que lidar com tudo isso. Acho que podia ser muito injusto não abordar os temas da identidade, pois o livro corria o risco de somente ser uma coletânea de anedotas simples.
Como foi a sua experiência do pré-militar e de que maneira isso reverberou no seu romance e na forma como o personagem do narrador lida com o militarismo, o patriotismo, o nacionalismo, a masculinidade?
Fiz o serviço pré-militar na Força Aérea da Bolívia. No entanto, a minha experiência lá foi bem simples comparada à experiência dos personagens. O que lembro com muita nitidez é estar olhando a bandeira numa tarde de céu bem azul e escutar um militar dizendo que a gente tinha que dar a vida por esse pedaço de tecido. Aí, me perguntei: por que é tão importante uma bandeira? O que é essa abstração chamada Bolívia? Não poderia dizer que desenvolvi uma noção específica sobre a ideia de pátria naquele momento, mas tudo o que eu vivi lá serviu para me questionar um monte de coisas.
Num determinado trecho do romance, o narrador diz: “Dino me contou que tinha lido num livro que não importa sua idade, os quinze anos sempre serão a metade de sua vida. Para mim, a metade da minha vida estará sempre neste último ano [do ensino médio]. Daqui em diante, tudo o que me acontecer será uma imitação atenuada de todas as minhas primeiras vezes” (p.122). Por que a adolescência é tão marcante e tão literariamente rica?
Sentia que tinha uma dívida com a adolescência. Tem tanta coisa sobre aquele tempo que eu sempre quis contar. Estou falando das sensações, do sentimento de estranheza, das descobertas. A adolescência é a época das primeiras vezes. Considero que aquelas primeiras vezes mereciam um livro. Somos produtos da materialidade e do imaginário de uma época. Cada livro só poderia ser escrito pelo autor que o escreveu. A gente é consequência da música que curtiu quando tinha 15 anos. Essa música chegou por um motivo. E quando falo de motivo não falo de algo subjetivo; estou falando de um contexto, de uma economia, até de um suporte (o cassete, o computador etc.). A gente aprendeu a processar muitas emoções a partir de um ensino afetivo específico. Isso tem um espelho na escrita: nos temas e nas palavras que você escolhe como autor.
Num determinado momento, o personagem Dino pergunta a Tayson: “você se considera brasileiro ou boliviano?” (p.53). Tayson responde: “Não sei. Meu problema é esse.” (p.53). Posteriormente, o próprio Dino concluirá que “Nem boliviano nem brasileiro. Você, Taysinho, é que nem a gente: aimará” (p.54). Qual é a especificidade de ser indígena na Bolívia (ou na América Latina) e de que forma isso molda uma identidade?
O termo “indígena” abre um debate muito grande. Que é ser indígena? Como você define isso? Definir não é igual a limitar? A história boliviana está marcada pela cultura indígena (manifestada na língua, no folclore, nos costumes). No entanto, a influência do colonialismo criou uma sociedade que ainda hoje, no século 21, rejeita aceitar a importância das nações indígenas na construção do país. Considero que isso é um fenômeno muito latino-americano. Sob a ideia de que todos somos mestiços em termos étnicos e políticos, os debates que surgem em torno dos temas de identidade ficam apagados. Falar de mestiçagem e da ideia de que “todos somos bolivianos”, “todos somos brasileiros”, “todos somo chilenos” é uma desculpa para não mencionar as imensas injustiças relacionadas à pele. Mesmo assim, não importa que uma pessoa rejeite sua herança quéchua ou aimará, esta vai surgir nos costumes, na fala etc. A América Latina e, em especial, a Bolívia, tenta fugir das discussões étnicas, mas a identidade e os assuntos estruturais relacionados a ela brotam involuntariamente em todos os aspectos de ser latino-americano.
Num trecho bonito e marcante do romance, o narrador descreve: “Tayson sorri daquela forma tão sua, tão brasileira, inimitável: a única vez no dia em que sua felicidade não parece contaminada por aquilo que faz do seu rosto uma imagem incompleta, um rosto pela metade” (p.24-25). O que existe de tão especial no sorriso dos brasileiros?
Quando eu saio do Brasil e vou para outro país, dá para perceber que tem uma forma brasileira de olhar o mundo bem bacana. Sei que o país é muito diverso e complexo, mas, sendo estrangeiro, observo uma alegria e um otimismo muito presentes no olhar brasileiro. Existe uma amabilidade e um calor que você não encontra em outra parte do mundo e isso se manifesta no sorriso.
Você acha que isso, de certa forma, é uma contraposição ao famoso e tão discutido “ethos pessimista” dos bolivianos, um país que por muitos anos foi (e, em alguma medida, ainda é) mais pobre (economicamente) do que muitos de seus vizinhos latino-americanos; que amargura a perda de parte de seu território e o acesso ao mar para o Chile após uma guerra (e que “lamenta” essa perda anualmente, em calendário oficial, com direito a desfile militar, com especial destaque para a Marinha boliviana); que, diferentemente de muitos de seus vizinhos, tem raras oportunidade de ver sua seleção de futebol em Copas do Mundo ou com chances reais de vitória em campeonatos internacionais como a Copa América?
Totalmente. Eu nasci nas montanhas, em La Paz. A minha paisagem desde criança sempre foram morros marrons nos quais as casas escalavam e tentavam se manter em pé. A minha cidade não tem floresta. Os invernos são cruéis. Tudo isso condicionou nossa forma de olhar o mundo. Ao mesmo tempo, valorizo muito a calma andina, o jeito parcimonioso de existir. Com o tempo você vai percebendo que o mundo é muito barulhento, que existe uma competição por falar alto, atropelar o outro. Em La Paz, aprendi a ser um observador mais do que alguém que opina. Quando cheguei no Brasil, percebi que muitos me consideravam calado demais. Ao início, vi isso como um defeito. Mas, com os anos, valorizo ter desenvolvido uma capacidade de observação e escuta que não existiria se eu não tivesse crescido em La Paz.
E qual a relação disso com a emigração de bolivianos pelo mundo, muitas vezes sujeitos a trabalhos precários (ou mesmo análogos à escravidão), algo que aparece tão forte em seu livro, inclusive em disputas (brigas) entre irmãos (os pais e tios dos protagonistas), numa competição entre quem é mais ou menos bem-sucedido (economicamente), mais ou menos patriota ou boliviano?
Tentei não retratar uma realidade miserável. Se você lê o livro com atenção, vai perceber que só em poucos trechos descrevo situações econômicas tristes. Sabe o que é engraçado? Que apesar de eu não ter descrito casas pobres ou decadentes, no imaginário de muitas pessoas, incluídos leitores bolivianos da elite, as personagens eram pessoas em situações econômicas ruins. Isso fala muito sobre o preconceito que se tem de uma realidade. O machismo está muito presente no livro. Eu cresci em um ambiente onde você tinha que atingir uma masculinidade ideal que estava muito relacionada ao vocabulário militar: falar alto, xingar, gritar, ter muitas namoradas, ser o mais forte. Hoje, tudo isso me parece uma piada. Os idiotas que defendem uma ideia fixa de ser homem colocam um modelo de masculinidade inalcançável até para eles. E nós somos criados sob esses parâmetros. O âmbito militar é um lugar interessante para analisar tudo isso.
Em certa passagem do romance, o personagem Dino afirma que “todos os países latino-americanos são a tentativa fracassada de alguma coisa. A Argentina é uma tentativa fracassada da Europa. O Brasil é uma tentativa fracassada de ser os Estados Unidos. A pergunta central é: a Bolívia é uma tentativa fracassada de quê?” (p.139). Posteriormente, ele chega à conclusão de que “a Bolívia é uma tentativa fracassada de não ser a Bolívia.” (p.149). Eu acho esse trecho muito bom, pois enxerguei isso, de certa forma, nas duas vezes em que estive na Bolívia (em especial em 2010, quando vivi por cerca de três meses em La Paz, talvez no auge do governo de Evo Morales). Gostaria que você explorasse mais essa afirmação do Dino.
Muitas das falas dos personagens não refletem exatamente o que o autor pensa. Afinal de contas, os personagens são criações que, num determinado momento, puxam as palavras quase sem a intervenção consciente do escritor. No entanto, essa fala do Dino me faz pensar. Nossos países se protegem com o lençol da mestiçagem para não olhar as reclamações dos grupos racializados. Então, é como se a Bolívia estivesse fugindo o tempo inteiro da raiz indígena. É um país que não quer ser o que é. Acho que acontece a mesma coisa com os vizinhos.
O futebol está muito presente no seu romance. Por exemplo, o Tayson nasceu em São Paulo durante a final da Copa América de 1997, em que a Seleção Brasileira ganhou da boliviana (“Minha tia Corina, a mãe dele, fala sobre o medo que congelou seu corpo quando percebeu que os enfermeiros estavam com fones de ouvido [durante o parto, uma cesariana]” [p.15]). O que significa o futebol para os bolivianos e o que significa o futebol para você? Qual a importância do futebol para essa obra literária?
Para mim, a escrita é uma constante volta à infância. Escrever é tentar recuperar lugares e momentos que nunca mais vão voltar. A literatura pode ser entendida como uma coletânea das primeiras vezes, que a gente rememora infinitas vezes nas páginas. Uma bola de futebol está rodando nessas lembranças. Sempre, sempre. É como se o menino de oito anos tivesse chutado nos anos 1990 e a bola continuasse rolando até agora. O futebol concentra muitas paixões, boas e ruins. No campo, se concentram não somente 22 rapazes jogando, mas também um monte de componentes que concentram o pior de uma sociedade: a homofobia, o racismo. Um campo de futebol é um espelho dos torcedores. No futebol, fervem muitos preconceitos que nós trazemos para a vida real. Ou é que lá na arquibancada a gente se sente livre para ser preconceituoso? Dado que sempre gostei do futebol, não podia evitar colocar o esporte na minha escrita. Ora como paixão, ora como panela onde se ferve o pior da sociedade. A Bolívia é um país que gosta muito da bola. Os campos de La Paz e El Alto estão lotados nos fins de semana com campeonatos locais. Infelizmente, essa paixão não é congruente com o que a Seleção Boliviana faz. Mas o futebol não é somente o que acontece na tela da TV ou no jornal da ESPN. O futebol está nas casas, nos bairros, nas escolas.
O Dino é um personagem muito bom e muito interessante, rico, complexo. Diferentemente dos primos protagonistas, que são meio “apolíticos”, com pouco conhecimento histórico (mal sabem quem é Evo Morales ou o que achar dele), o Dino é uma espécie de paradoxo do intelectual latino-americano “pobre”, de esquerda, mas talvez não da esquerda hegemônica (governista), é boêmio, porém oriundo de uma classe socioeconômica que o limita, que o restringe no acesso a uma formação acadêmica mais “sofisticada”, mais “completa”. Ele precisa vender livros nas ruas, está sempre sem grana e tem sempre algo de uma lucidez melancólica, quase amargurada, como alguém que sabe que vai ser engolido e triturado pelo sistema, que sua luta é utópica e fadada ao fracasso. Gostaria que você comentasse um pouco mais quem é esse personagem e como foi o seu processo de construção.
Assim como sempre procuro falar de música e futebol na minha escrita, é inevitável trazer algum elemento do mundo do livro. Gostaria de não ter essa mania, mas é assim. O Dino apareceu como desculpa para vincular o mundo adolescente com o mundo das ideias. Além disso, em El Alto é normal encontrar nas ruas pessoas vendendo livros usados, no chão. Não existem tantos sebos quanto no Brasil. Lá, os comércios são menores e, ao mesmo tempo, abundantes. Eu fiz Sociologia na faculdade e lá encontrei um monte de Dinos. Caras legais com ideias legais que nunca se executavam na vida real. Lembro de muitas reuniões onde escutei a galera falar da Bolívia, de explicar o país para outros enquanto o álcool entrava nas gargantas e a fumaça da maconha flutuava no ar. Era engraçado. Muitas pessoas que se sentem identificadas como esse tipo de intelectual ficaram putas com meu livro. Acho que ganhei uns dez inimigos com esses trechos.
Quando passei uma temporada em La Paz, eu ainda era muito jovem e tinha pouco contato com o Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa época, as cidades grandes que eu conhecia melhor eram Goiânia e Cuiabá, com pouca presença marcante de migrantes estrangeiros. Então, me lembro que achei La Paz muito cosmopolita. Nas ruas do Centro, mochileiros do mundo inteiro compartilhavam o mesmo espaço das cholas. E lembro que foi em La Paz a primeira vez em que fui a um restaurante coreano e a primeira vez que assisti a uma telenovela coreana (dublada em espanhol). Você fala da rivalidade dos bolivianos com os coreanos na indústria e no comércio têxtil em São Paulo, mas no romance não há presença marcante de coreanos em La Paz (você foca mais na rivalidade com os peruanos e, especialmente, com os chilenos). Porém, há a influência da cultura coreana (em especial do K-pop). No evento de lançamento do seu livro, você comentou que, apesar de a Coreia do Sul ser uma potência que de certa forma subjuga a cultura de seus vizinhos asiáticos pela lógica da indústria cultural, você acha interessante como essa nova dinâmica desestabilizou os Estados Unidos e a Europa desse lugar de “centro” da cultura. Qual a importância disso tudo para seu livro, considerando que Seul é uma das cidades que compõem o título do romance, ao lado da brasileira São Paulo?
Um amigo boliviano que mora em São Paulo há vários anos me contou que essa rivalidade existia nos anos 1990. Agora, duvido que siga sendo vigente. A presença da Coreia no livro é como um buraco pelo qual pode ser olhada a bolivianidade e a sua relação com outras culturas do mundo. O k-pop desestabilizou muitas certezas na América Latina: você tem uns caras que dançam e cantam numa língua que você não entende. São pessoas com rostos não hegemônicos. Isso quebra a hegemonia americana e inglesa na cultura popular latino-americana. Quis mostrar como a Bolívia é um país não somente influenciado por sua herança indígena, mas também influenciado pela cultura de outros países, e que esse contato cria uma mistura cultural da qual emerge um discurso, um imaginário, uma estética. A relação da minha geração com a cultura asiática sempre partia do preconceito: quem dançava k-pop não era homem, quem curtia anime era um esquisito. Aos poucos, graças às pessoas que tiveram que apanhar e defender produtos culturais não hegemônicos naquele momento, nossos países se deram conta de que a vida real não acontece somente na Europa e nos Estados Unidos. Hoje, os filmes coreanos, por exemplo, quebraram o monopólio americano da indústria fílmica. O consumo do anime é algo quase natural. Muitos preconceitos foram derrubados.
Você enfrentou da crítica boliviana algum ataque por ser “pouco nacionalista” ou coisa do gênero, por falar de uma Bolívia menos idealizada e mais ligada às questões de um capitalismo globalizado?
O livro foi muito bem recebido em muitos lugares. Fico muito agradecido com os leitores e a crítica, pois hoje eu não estaria publicando Seul, São Paulo no Brasil se não fosse por toda essa torcida que recomenda o livro. Houve algum grupo político que não gostou do livro pelo fato de eu ser de esquerda, e houve uma esquerda que criticou o livro por não ser suficientemente esquerdista. É engraçado. O livro saiu em um momento político difícil na Bolívia: Jeanine Áñez chegou ao poder com um golpe de Estado. Tem uma foto histórica que retrata as trevas daquele 2019: ela está mostrando para os torcedores dela uma Bíblia grande e, ao lado, está um militar. Assim como aconteceu no Brasil, muitas pessoas falaram que “Evo Morales e seu partido tinham afastado a Bolívia de Deus”. Era um momento de se posicionar. E eu me posicionei. Óbvio que isso trouxe consequências. Mesmo assim, o livro conseguiu andar, foi comentado, resenhado, publicado fora da Bolívia. A parte mais legal foi que o livro terminou criando-me. Ele me levou para muitos lugares, gerou parcerias, amizades. Conheci a Europa graças a ele. Ao mesmo tempo, o romance fez com que muitas pessoas achassem que sou de El Alto, pois eu falo muito dessa cidade no livro. Houve muita confusão. Há poucas semanas, em um podcast brasileiro, uma pessoa que indicava o livro disse que eu era boliviano-brasileiro…. Outras pessoas falaram que eu cheguei ao Brasil quando era criança e até que trabalhei em uma oficina de costura. Acho legal tudo isso. O livro cria outra ficção.
Você mora no Brasil há muitos anos. Viveu no Rio de Janeiro, talvez nossa cidade mais emblemática, conhece relativamente bem São Paulo e hoje vive em Goiânia, no Centro-Oeste brasileiro. Acho que isso lhe dá uma boa ideia do que é o Brasil e o que é ser brasileiro, não é? O que você mais gosta e o que você mais odeia no Brasil e nos brasileiros?
Ter morado no Rio me deu uma imagem importante do Brasil. Rio é uma cidade-chaveiro: é a cara de um país, é um produto para a venda. É uma cidade conhecida no mundo inteiro. Isso não acontece com Cuiabá, Curitiba ou Goiânia. Entrar nessa cidade-chaveiro e me dar conta de que o Brasil não é como apresentado na mídia me fez crescer muito. Abriu a minha mente. Mas a minha experiência carioca é apenas uma pequena parte do que o Brasil pode oferecer. Agora que eu moro em Goiânia, vejo outra dinâmica de vida; os olhos brasileiros do Centro-Oeste são diferentes. O que mais gosto daqui é a frase “tudo bem”. Isso resume muito do espírito relaxado dos brasileiros. Nada é demais, tudo pode ser resolvido. Comparando com outras idiossincrasias, acho que o Brasil sempre tenta ver o lado bom da vida. Ao mesmo tempo, isso pode me perturbar muito. Tem coisas que não são levadas a sério. Sei lá. Uma pessoa pode chegar meia hora atrasada e tudo vai estar bem. Isso me deixa bravo, às vezes. Mas entendi que é parte da cultura.
Você confirma a máxima de que “o Brasil vive de costas para a América Latina”? Que tipo de situações viveu por aqui que mais o incomodaram no sentido de constatar que a maior parte dos brasileiros não sabe nada ou quase nada sobre a Bolívia, seu povo, sua cultura?
O Brasil compartilha com a Bolívia a maior divisa da América do Sul e, apesar disso, o contato entre os países em termos culturais é mínimo. Acho que é responsabilidade da Bolívia e do Brasil. Lá, a gente não liga para o português, mesmo que todo mundo saiba que temos um monte de migrantes em São Paulo. Considero que a gente poderia adotar o português como segunda língua, já que isso ajudaria a muitas pessoas. Percebi que, muitas vezes, o Brasil só tem olhos para a Argentina. Você não acha que é suspeito que o Brasil só tenha olhos casualmente apenas para o país mais branco da América do Sul?
Para finalizarmos, quais são os seus artistas bolivianos preferidos (em especial, os escritores de literatura), clássicos ou contemporâneos?
Em literatura, gosto muito de Wilmer Urrelo, Claudio Ferrufino, Giovanna Rivero, Magela Baudoin e Jesús Urzagasti. Em música, escuto bastante Kalamarka, Oz, Proyección, Awatiñas, Los Tuberculosos, A Pie.