[Coautores: Raphael Vicente da Rosa[1] e Pedro H. C. Silva[2]]
Nietzsche é, sem dúvida, um dos críticos mais ferrenhos aos ideais de certeza, objetividade e, em última instância, verdade, tão caros às ciências. Sabemos igualmente que tal postura assumida pelo filósofo é resultado de seu embate contra a metafísica. Essa imagem de um pensador iconoclasta e irracionalista – por vezes, resultado do modo como Nietzsche se posiciona –, todavia, não se sustenta se buscamos investigar aquilo que está nas entrelinhas de sua argumentação. Não por acaso, desde que Alwin Mittasch (1950) lançou sua famosa monografia Friedrich Nietzsche Naturbelassenheit, outras sendas puderam ser abertas para a Nietzsche-Forschung (Pesquisa Nietzsche). Isto, sobretudo, porque Mittasch chamou atenção para a variedade de fontes científicas com as quais Nietzsche entrou em contato e que, em maior ou menor grau, tiveram alguma influência sobre sua produção filosófica.
Do estudo dessas fontes emergiu um Nietzsche “naturalista”[3], leitor de Darwin, Mach, Boscovich e Riemann, que ganhou corpo, principalmente, no contexto da filosofia analítica. Esse Nietzsche redescoberto pelos filósofos anglófonos apresenta um programa de pesquisa no campo da epistemologia que não somente se opõe à tradição filosófica moderna, mas supera a mera desmitificação redutora. Nietzsche não procura apenas destruir os ídolos da razão, seu intuito vai no sentido de propor uma filosofia que se coloque não “como dogma, porém como um regulamento provisório da pesquisa” (FP 26 [432] Verão-outono de 1884).
Nesse sentido, Nietzsche entende que a função do filósofo seria experimentar hipóteses até o limite, pois o conhecimento seria um meio de aumentar a capacidade humana, não um fim em si mesmo. Tendo isto em vista, nos propomos a discorrer brevemente sobre as estratégias usadas por Nietzsche para avaliar o modo humano de produzir conhecimento. Defendemos que, ao empreender sua crítica, Nietzsche constrói o que hoje pode ser considerado um tipo particular de antirrealismo metaepistemológico. Em outras palavras, o filósofo admite a possibilidade de conhecimento verdadeiro desde que seja compreendido como indissociável da forma de vida que o produziu.
Desse modo, é possível dizer que o perspectivismo nietzschiano pressupõe uma atitude naturalista, na medida em que o filósofo intenta demonstrar o lugar a partir do qual as normas e os valores epistêmicos são engendrados e estabelecidos. Para Nietzsche, importa expor quais são as condições formadoras da tendência humana ao conhecimento. De acordo com Paul Slama (2019), ao fazer esse movimento, Nietzsche estaria radicalizando a atitude kantiana através do recurso à biologia. O que significa dizer que o filósofo buscou expor as origens orgânicas daquilo que, para o neokantismo, seria o transcendental. Ou seja, ao invés de se deter numa investigação acerca das condições formais da percepção – o que, de certo modo, o manteria numa especulação apartada da imanência –, ao se aproximar da teoria da evolução das espécies e da seleção natural, Nietzsche estaria buscando os fatores biológicos da cognição humana. Não por acaso, seu recurso a uma psicofisiologia: “a fisiologia e o estudo dos animais nos colocam neste começo de entendimento” (FW/GC, §354) (grifo nosso).
Ao se debruçar sobre a maneira como os órgãos dos sentidos operam e produzem as representações do mundo circundante, Nietzsche sustenta que nossa cognição é fundamentalmente voltada para realizar simplificações. O conhecimento é resultado de uma falsificação. Se, por um lado, os sentidos nos permitem que nos orientemos de forma intuitiva a partir das noções de causa e efeito, por outro lado, esta seria apenas uma parte do processo, porque o “gênio da espécie”, isto é, a necessidade de comunicação intragrupo, teria levado ao desenvolvimento do comportamento verbal como uma maneira de tornar homogêneas as experiências, isto é, igualar o desigual: “com ‘fins’ e ‘meios’ domina-se o processo (– a gente inventa um processo que seja tangível!), mas, com conceitos, dominam-se as coisas que constituem o processo” (FP 26 [61] verão-outono de 1884). Assim, o conhecimento conceitualmente mediato necessitaria do desenvolvimento da consciência como uma espécie de “filtro” das metáforas fisiológicas.
À guisa de conclusão, seria importante ressaltar algumas questões pertinentes relacionadas à noção de conhecimento na filosofia de Nietzsche. Em primeiro lugar, como tivemos a chance de ver, Nietzsche não se contrapõe às ciências mesmas, mas à tendência dogmatizante oriunda do pensamento moderno. Na medida em que as ciências procuram elaborar esquemas interpretativos que permitem instrumentalizar o mundo à nossa volta, elas são celebradas por Nietzsche e pelo homem do conhecimento, visto como “mestre de cerimônia da existência” – pois estaria empenhado em aumentar o sentimento de poder do animal humano. Quando o conteúdo metafísico dos valores epistêmicos é subtraído, os “fatos” deixam de subsistir por si mesmos e se convertem em construções conceituais. Todavia, não sendo dissociados de uma base empírica, eles permitem que novas possibilidades de interpretar a realidade venham à tona.
Nietzsche parece mesmo ter uma visão otimista em relação ao conhecimento e às oportunidades que este oferece ao ser humano quando é produzido para além de instâncias moralizantes. É por isso que o filósofo afirma enfaticamente que “o conhecimento há de ter, entre entes de espécie mais elevada, também novas formas, às quais hoje ainda não são necessárias” (FP 26 [236] verão-outono de 1884). O que pressupõe que, se quisermos superar as noções epistêmicas limitadas e limitantes, seria igualmente preciso superarmos o próprio homem em favor do além-do-homem.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
LEITER, Brian. Moral psychology with Nietzsche. Oxford, Oxford University Press, 2019.
MITTASCH, Alwin. Friedrich Nietzsches Naturbelassenheit. Heidelberg: Springer-Verlag, 1950.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Versão digital das Edições Críticas Alemãs das Obras Completas editadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke Briefe (eKGWB). Edição e organização: Paolo D’Iorio. Disponível em: http://www.nietzschesource.org/. Acesso em: 15 abr 2024.
SLAMA, Paul. Le kantisme biologique de Nietzsche: L’héritage de Lange à propos de la perception. Nietzsche Studien, 48 (1), p. 220-243, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1515/nietzstu-2019-0012. Acesso em: 15 abr 2024.
[1] Graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: vicente.raphael@ufms.br
[2] Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. E-mail: pedro.h.c.silva@ufms.br
[3] Entendemos que a conceituação usada por Brian Leiter (2019) para caracterizar o tipo de naturalismo presente na filosofia de Nietzsche é mais adequada. De acordo com Leiter, em Moral psychology with Nietzsche, o autor de Zaratustra teria praticado um naturalismo metodológico (M-naturalism), uma vez que admite a validade dos resultados obtidos pelas ciências naturais como plataformas suficientemente seguras para a investigação filosófica, sem, contudo, recair na crença em uma realidade última por detrás das mistificações da linguagem e da moral, nem tampouco defender um cientificismo.
O artigo é o 14º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.