[Coautor: Alberto Mesaque Martins[1]]
As reflexões sobre a influência da saúde mental, no contexto social, não são uma questão da atualidade. Os sintomas mentais que se manifestam no corpo têm sido objeto de estudo clínico muito antes do surgimento da medicina contemporânea. A incapacidade de diagnosticar esses sintomas pelos métodos científicos levou, por muitos anos, a interpretações que refletiam uma perspectiva religiosa, associadas a problemas espirituais. No entanto, o desconhecido sempre intrigou a humanidade e fez com que a partir dele se gerassem grandes descobertas para a ciência e para o campo da saúde mental.
Hoje, sabemos que as questões mentais que são expressadas corporalmente têm um nome: doenças psicossomáticas. Conceitualmente, toda doença seria uma manifestação psicossomática, uma vez que anatomicamente corpo e mente são inseparáveis. Ou seja, não há como adoecer o corpo sem afetar a mente. No entanto, na visão da medicina biologicista atual, existe uma fragmentação do ser humano, que é estudado por partes e não como um todo. Dessa forma, a compreensão da relação mente e corpo passa a ser baseada numa visão dualista (Taquette, 2006).
Psicossomatizar é trazer para o corpo aquilo que está reprimido na mente, muito comum no século atual como as ansiedades, a insônia, as enxaquecas e a gastrite. Dispomos de diversas nomenclaturas para descrever o que antes era apenas um completo campo desconhecido para a humanidade. Demos tantos nomes para as sensações que sentimos que acabamos por incorporar a psicopatologização da própria existência. Tratamos todos os sentimentos e sensações como doenças, lidamos com tudo por meio de medicamentos.
Obviamente, os avanços científicos para tratar as doenças do corpo físico ultrapassaram as expectativas de vida da nossa geração e o que antes era uma doença terminal, agora é curável e até prevenido mediante vacinação. Mas a questão não é essa, a medicação não é o “x” da questão, mas sim a medicalização. A medicação é um complemento a um quadro patológico, ou seja, seu uso é importante para que o cuidado seja efetivo. Já a medicalização tem o sentido de banalizar o uso correto do medicamento, transbordando os excessos e fazendo com que a vida seja comandada pelo uso indevido ou inadequado de medicamentos (Nietiedt, 2018). Disseminam-se, assim, o hábito do alívio rápido, a fuga da dor emocional, a identificação com um sintoma.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os anos de 2013 e 2019, ocorreu, no Brasil, um aumento significativo de diagnósticos por depressão, e este aumento teve um percentual de 34% da população diagnosticada, equivalente a 16,3 milhões de pessoas comparadas ao ano de 2013 (Brasil, 2022). Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou sua maior revisão sobre saúde mental desde a virada do século, na qual foi feito um trabalho detalhado, fornecendo um plano para governos, acadêmicos e profissionais de saúde. Segundo essa revisão, em 2019, quase um bilhão de pessoas, incluindo 14% dos adolescentes do mundo, viviam com algum transtorno mental (cf. OPAS, 2024).
Uma pesquisa realizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp, Bauru), dentro do Departamento de Psicologia, expôs que a escolha para as classificações normativas da saúde mental é realizada de maneira estratégica. Este novo modelo formalizado resultou não apenas em um aumento de diagnósticos, mas também na multiplicação de categorias existentes para os tipos de transtornos e síndromes mentais (Bocchi, 2018). Vale lembrar que tais classificações diagnósticas, em seu modo de operar, exprimem, por definição, a necessidade de um tratamento para obtenção de uma cura. Esse método de análise está ligado à objetificação do sintoma mental, ou seja, trata-o a partir de procedimentos que são eficazes nas doenças do corpo físico. O uso dessas classificações no campo da saúde mental resulta em uma padronização e uma normatização exacerbadas do sofrimento psíquico, fazendo com que o sujeito se separe completamente da relação que mantém com sua própria existência.
Para o filósofo Byung-Chul Han (2015), a nova forma de organização social em que estamos inseridos produz, no próprio sujeito, uma autoviolência através de repressões contínuas e demonstrações incessantes de resultados cada vez mais rápidos e melhores. E de fato, podemos encontrar uma mudança nas manifestações dos sintomas emocionais vivenciados pela sociedade. Em paralelo a isso, encontramos também em demasia os medicamentos no mercado farmacêutico que anestesiam as dores e potencializam o desempenho.
Devemos ter consciência de que o uso desses medicamentos tem relação com os valores incorporados sócio-historicamente. Um medicamento não contém em si apenas sua funcionalidade objetiva, mas ele vai além de sua função empregada objetivamente. Medicamentos também exercem papéis simbólicos e significativos para a sociedade e para o paciente que os toma (Almeida, 2021). Segundo a resolução atualizada do Compêndio de Psiquiatria, “a cultura pode influenciar a apresentação da doença, a decisão de quando e onde buscar tratamento, a decisão sobre o que compartilhar com o médico e a aceitação do plano de tratamento e a participação nele” (Sadock, B. Sadock, V. Ruiz, P. 2017, p. 209)
Para o médico brasileiro Benilton Bezerra (2007), o uso desses psicotrópicos, dentro da nossa sociedade, desenvolveu uma nova conceituação para caracterizar este novo estilo de vida que estamos levando, o conceito das lifestyle drugs, ou seja, uma vida movida através das pílulas. Nossa cultura atual valoriza tão em demasia o bem-estar que tornou-se uma obrigação vivê-lo todos os dias. Esse modo de tratar a vida vem causando fortes adoecimentos e a dependência daquilo que permanece nos adoecendo. Estamos fadados a buscar o bem-estar e a não lidar com a multiplicidade de emoções que sentimos. Estamos fugindo da responsabilidade de cuidar daquilo que é propriamente nosso e transferindo para as classificações diagnósticas da saúde mental a responsabilidade de organizar e conduzir quem somos.
[Revisão de Ana Tércia e Gabriel Santana. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, L. O uso abusivo dos psicofármacos e o papel do farmacêutico na prevenção da medicalização. Revista Saúde & Ciência, v. 10, n. 2, 2021.
BEZERRA, B. A Psiquiatria no divã. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., nº X, vº 1, p. 182-184, 2007.
BOCCHI, J. A psicopatologização da vida contemporânea: quem faz os diagnósticos. Doxa: Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 20, n. 1, 2018.
BRASIL. Observatório Nacional da Família, Boletim Fatos e Números, Saúde Mental. Brasília, V. 1, 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/observatorio-nacional-da-familia/fatos-e-numeros/5.SADEMENTALLTIMAVERSO10.10.22.pdf> acessado em: 20 de Junho de 2024.
HAN, B. A sociedade do cansaço. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
NIETIEDT, G. Adultos jovens e a medicalização: perspectivas e sentidos a partir do discurso médico. Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia (TCC). Lajeado: Universidade do Vale do Taquari (Univates), 2018.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2024. Disponivél em: <https://bvsms.saude.gov.br/oms-divulga-informe-mundial-de-saude-mental-transformar-a-saude-mental-para-todos/> acessado em: 20 de Junho de 2024.
SADOCK, B. SADOCK, V. RUIZ, P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
TAQUETTE, S. Doenças psicossomáticas na adolescência. Adolescência & Saúde, v. 3, n, 1, janeiro, 2006.
[1] Psicólogo, licenciado em Filosofia e doutor em Psicologia. Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia – E-mail: albertomesaque@yahoo.com.nr
Com o artigo de hoje, o 15º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, chegamos ao centésimo texto publicado do projeto, desde o seu início. O Projeto Ensaios é um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.
- Nietzsche e a naturalização do conhecimento, de Francisco de Paula Santa de Jesus, Raphael Vicente de Souza e Pedro H. C. Silva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/31/nietzsche-e-a-naturalizacao-do-conhecimento/.