[Coautor: Flávio Amorim da Rocha[1]]
Quando você pensa na ciência, possivelmente vem à mente a ideia do progresso, das engenharias ou da automação. Para as pessoas mais conectadas, talvez as inteligências artificiais e os computadores quânticos. Mas, dificilmente, associa-se a ciência a medidas governamentais eficientes e abrangentes, inclusão de novos atores na história brasileira ou até mesmo discussões éticas. Essa imagem aparentemente inofensiva da ciência sob a noção do progresso e da tecnologia esconde um problema estrutural no conceito base do fazer científico na sociedade brasileira: a falta de apoio e a desvalorização das ciências denominadas “humanas”.
Inicialmente, essa falta de apoio pode ser vinculada ao mau estado da ciência, de forma geral, no Brasil. É possível observar isso a partir de dados organizados pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), a partir de relatórios do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o qual mostrou que o orçamento disponibilizado para esse órgão caiu cerca de 58% de 2015 até 2021 (ELOS – UEPG, 2021). Essa queda na verba disponível afetou e ainda afeta de forma negativa a pesquisa científica no Brasil, amplificando o processo de sucateamento de instalações de pesquisa, descontinuando estudos e gerando a desmotivação dos pesquisadores, que precisam trabalhar com cada vez menos recursos. A situação gerada pela falta de investimento nas ciências acaba por criar cada vez mais dificuldades para a condução de pesquisas que impactam a sociedade brasileira, tanto pelos efeitos citados quanto pela “fuga de cérebros”, fenômeno crescente que compreende a saída de pesquisadores do país em busca de melhores oportunidades. É notável que esse cenário contribui, em última instância, para a precarização tanto da ciência quanto da confiança que a população deposita nela.
Contudo, mesmo com uma situação ruim da ciência de modo geral, as ciências humanas sofrem ainda mais cortes, como as restrições impostas para o recebimento de bolsas de pesquisa em 2020 (IMPRENSA APUFSC, 2020). Situações como essa demonstram que o cenário para essa área do conhecimento tende a ser mais complexo, o que se explica pelo juízo de valores estabelecido para as humanidades. Como é evidenciado pelo professor João Paulo Garrido Pimenta (COSTA, 2020), um dos efeitos dessa desvalorização é a substituição do conceito de sociedade por aqueles cada vez mais próximos de uma “lógica de mercado”, em um processo de “mecanização social”. Com isso, a discussão começa a englobar a sociedade brasileira, especificamente as camadas dominantes, que demandam cada vez mais a submissão das pessoas, especialmente as que compõem as grandes massas, a essa “hierarquia social”. Essa demanda é articulada em oposição às humanidades, é claro, considerando que são essas ciências que se encarregam de promover o pensamento crítico em face das organizações sociais, políticas e do discurso dominante, o que acaba colocando em perigo as ferramentas vitais para a manutenção desse poder e do processo de mecanização social.
Portanto, percebemos que a desvalorização das ciências humanas decorre, em grande parte, das relações de poder na sociedade brasileira. Também é possível concluir que o valor atribuído à ciência como um todo resulta dessas relações de poder e da composição e dos objetivos da camada dominante, da elite brasileira. Essa falta de apoio, premeditada, influencia diretamente na composição, no desenho da nossa sociedade e, consequentemente, no papel desempenhado pelo indivíduo, que é, constantemente, afastado dos espaços de reflexão. É preciso, portanto, resistir para que esses espaços continuem existindo e possam ser ampliados visando a uma integração de ser humano, sociedade, progresso e ciência que seja acessível e passível de diálogo entre os atores que compõem nosso grupo social.
[Revisão de Flávio Amorim da Rocha. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
COSTA, Claudia. A sociedade não evolui sem as ciências humanas. Jornal da USP, São Paulo, 15 Mai. 2020. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/a-sociedade-nao-evolui-sem-as-ciencias-humanas/>. Acesso em: 9 mar. 2024.
IMPRENSA APUFSC. SBPC e ABC reagem à exclusão das ciências humanas da Iniciação Científica – Apufsc-Sindical. Disponível em: <https://www.apufsc.org.br/2020/04/30/sbpc-e-abc-reagem-a-exclusao-das-ciencias-humanas-da-iniciacao-cientifica />. Acesso em: 9 mar. 2024.
RATHSAM, Luciana. A política de desvalorização da ciência tem custo que ultrapassa o Teto de Gastos. Disponível em: <https://unicamp.br/unicamp/noticias/2021/04/26/politica-de-desvalorizacao-da-ciencia-tem-custo-que-ultrapassa-o-teto-de-gastos />. Acesso em: 9 mar. 2024.
ELOS – UEPG. Orçamento de Ciência, Tecnologia e Inovações tem redução de 58% desde 2015. ELOS – UEPG, 22 jun. 2021. Disponível em: <https://elos.sites.uepg.br/posts/orcamento-de-ciencia-tecnologia-e-inovacoes-tem-reducao-de-58-desde-2015 />. Acesso em: 9 mar. 2024.
[1] Professor de Língua Inglesa, Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Campo Grande – flavio.rocha@ifms.edu.br
O artigo de hoje é o 18º texto da sétima edição do Projeto Ensaios, chegamos ao centésimo texto publicado do projeto, desde o seu início. O Projeto Ensaios é um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Efígie, de Paola Dias Bauce, disponível em: https://ermiracultura.com.br/2024/06/01/efigie/.
- “Van Filosofia”: um passeio pelas ruas de Campo Grande, de Herma Aafke Suijekerbuijk, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/08/van-filosofia-um-passeio-pelas-ruas-de-campo-grande/
- Superação e retorno à metafísica, de Cristian Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/15/superacao-e-retorno-a-metafisica/.
- Distopia do capital: o realismo capitalista e a devastação ambiental, de Anthony Franklin Prates Carvalho e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/22/distopia-do-capital-o-realismo-capitalista-e-a-devastacao-ambiental/
- Vínculo e psicanálise, de Caroline S. dos Santos Guedes, Weiny César Freitas Pinto e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/06/29/vinculo-e-psicanalise/.
- Máquinas podem pensar como humanos?, de Kauê Barbosa de Oliveira Lopes e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/06/maquinas-podem-pensar-como-humanos/.
- Qual é o lugar da literatura?, de Maria Clara Barcelos e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/13/qual-e-o-lugar-da-literatura/.
- Ricoeur: leitor e intérprete de Freud, de Pedro H.C. Silva, Gabriel Santana e Paula Mariana Entrudo Rech, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/20/ricoeur-leitor-e-interprete-de-freud/.
- As profissões imperiais no Brasil: uma majestade inabalável, de Guilherme Giovane Ribeiro de Moraes e Flávio Amorim da Rocha, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/07/27/as-profissoes-imperiais-no-brasil-uma-majestade-inabalavel/.
- Freud convida Schopenhauer e Nietzsche, de Iolene Aparecida Seibel e Natasha Garcia Coelho, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/03/freud-convida-schopenhauer-e-nietzsche/.
- Psicogênese e educação infantil, de Giovana Santos, Lucas Aguiar e Amanda Malerba, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/10/psicogenese-e-educacao-infantil/.
- O devir do escritor filósofo, de João Pedro da Silva e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/17/o-devir-do-escritor-filosofo/.
- Quem pode ser considerado “o pai” de uma teoria científica?, de Davi Barbosa Ferreira e Weiny César Freitas Pinto, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/24/quem-pode-ser-considerado-o-pai-de-uma-teoria-cientifica/.
- Nietzsche e a naturalização do conhecimento, de Francisco de Paula Santa de Jesus, Raphael Vicente de Souza e Pedro H. C. Silva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/08/31/nietzsche-e-a-naturalizacao-do-conhecimento/.
- Estaríamos dependentes daquilo que nos adoece?, de Natália Nazário e Alberto Mesaque Martins, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/07/estariamos-dependentes-daquilo-que-nos-adoece/.
- Os sonhos e suas implicações filosóficas, de Jonathan Postaue Marques e Vitor Hugo dos Reis Costa, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/14/os-sonhos-e-suas-implicacoes-filosoficas/.
- Liberdade de expressão: a cultura do cancelamento, de autoria coletiva, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/09/21/liberdade-de-expressao-a-cultura-do-cancelamento/.