“Eu queria ter feito um estágio na Biblioteca Suspensa da Babilônia…”.
Quando ela revelou essa fantasia, eu achei que aquele armanhaque era o melhor da França. Ela estava num embalo acelerado, falando pelos cotovelos – o epicurismo, as tragédias, a música de Theodorakis, o Império Otomano… Tantas coisas e tantos episódios e tantas anedotas e tantos fatos, que eu pensei:
“Há muito tempo que a Grécia faz bem pra essa mulher, espero que a França torne-a ainda mais sagaz.”
O nome dela era Mièke, uma grega de Atenas. Eu acabara de conhecê-la no café que frequentava no bulevar Saint-Michel. Era o meu primeiro outono em Paris. Naquela estação, sentada ali à minha frente, eu a via com uma echarpe jogada negligentemente sobre os ombros. Havia nela uma agressividade elegante e casual. Estimulados pelos cigarros e pelo armanhaque, nós dois estávamos ali, naquele café – e isso valia a pena, pois a conversa seguia por caminhos imprevisíveis. Em Paris, você encontra o mundo. Naquele outono, eu descobri por acaso a Grécia.
Sem mais nem menos, enquanto escrevia, a cabeça baixa, comecei a sentir a emanação de um perfume que logo me envolveu, como se começasse a flutuar. Esse atordoamento obrigou-me a erguer a cabeça para respirar, uma vez que o aroma causava-me uma espécie de vertigem. Nesse momento, eu a vi e tive uma visão – a dona do perfume estava lá, diante de mim, um livro aberto e longos cabelos derramados, a mão esquerda apoiada na cabeça.
Mulher feliz em Paris, que riscava os seus fósforos num único gesto, enquanto lia e movimentava discretamente os ombros, acomodando de vez em quando a sua echarpe. Eu interrompi o meu trabalho – e fiquei admirando-a, um tremor no espírito, sem saber como me ajustar na cadeira. Continuei assim um tempo, agora perturbado pela sua imagem. Após certo instante, o quadro que eu olhava criou vida – a mulher levantou a cabeça e vi o Mediterrâneo em seus olhos.
O meu corpo – tive essa impressão – ficou instável, como o tempo no período chuvoso. Eu fixei os seus olhos – olhos enormes, na cor oliva, com cílios revoltos, os quais, afinal, mesclaram-se ao tom que eu tinha efervescente dentro de mim: o sentimento de estar diante de algo inusitado me extasiava. Por causa da vastidão que se abrigava nesse olhar, calibrei o meu foco e consegui perguntar, tentando apreender o deslumbramento:
“Se não sou impertinente, qual livro você está lendo?”
Ela não respondeu de imediato, como se estivesse analisando-me. Naquele dia, eu não era grande coisa: um lápis, um caderno, uma mochila e uma capa do Exército norte-americano dobrada sobre a cadeira, fora o meu olhar apalermado: um estudante pobre da América Latina, que ainda não conhecia todas as estações de metrô. Parecendo que ia voltar à sua leitura, sem me dar atenção, ela levantou de repente mais ainda a cabeça, numa pose altiva, e perguntou-me seriamente:
“E você, o que está escrevendo?”
Sem tirar os olhos um do outro, sorrimos – e isso foi tudo. Assim, nos encontramos e nos conhecemos nesse café de Saint-Michel, um armanhaque após outro. A conversa entusiasmada sobre a vida; os encontros que o acaso tece; os corpos sem pressa; o depois, aquele que fica – o paraíso das palavras. Pra acompanhar o seu embalo, também anunciei depois a minha fantasia: “Eu gostaria de ter decifrado a escrita cuneiforme.” Depois dessa blague, perguntei se podia sentar-me à sua mesa.
Foi assim que passei a nadar regularmente nas águas do Mediterrâneo.
Toda vez que ia ao seu encontro, antes de sair, enquanto tomava um armanhaque, adorava ouvir “I’m a fool to want you”, na voz de Chet Baker, pensando no que poderia acontecer depois que chegasse ao clube O Chapeleiro Maluco, onde haveria um aglomerado de pessoas de toda estirpe – os mais descolados e pirados da cidade, todos juntos, como se apenas naquela cidade fosse possível reunir, num mesmo lugar, as discrepâncias urbanas. A mulher com quem iria encontrar-me estaria lá, esperando-me.
Esse clube ficava no subúrbio. Por isso, teria de andar até a estação mais próxima de casa, passando por ruas, onde, muito tempo atrás, um carolíngeo degolou mais de um inimigo. A voz sussurrada, quase um gemido melancólico, Chet Baker foi um dos inventores do estilo cool. A bossa nova assimilou essa tristeza que nos comove até hoje nas canções de Tom e Vinicius. A voz e o trompete anunciavam uma sensação de vazio que tentaria preencher a noite inteira, assim que deixasse o apartamento para trás – em direção a mais uma noite parisiense. Os armanhaques, como anjos, esperavam-me no altar.
Depois de ouvir Chet Baker, que me causava consideráveis atrasos em meus compromissos, eu gostava de jogar sinuca.
“Um taco não é um enfeite, muito menos um fetiche” – disse-me certa vez um inglês. Em outra ocasião, ele acrescentou:
“Parece que, em certas mãos, torna-se a melhor parte do braço.”
Na mesa treze, eu tinha certeza de que encontraria Mièke. Ela estaria lá com o seu taco batendo nas bolas, tendo sobre a beirada da mesa um cigarro espiralando e, bem próximo, um copo com a sua bebida preferida. Era o seu jeito de demonstrar que estava à vontade e que ainda tinha um lugar privilegiado no mundo. Ela me esperava.
A essa altura, já teria afugentado todos os maus elementos, aqueles que, por terem perdido a mãe, não conseguem ver uma mulher sozinha. Certos homens, você sabe, os que julgam liderar a matilha – são esses babacas de pelúcia que costumam voltar sozinhos para casa. Ela sabia que eu estaria a caminho, ansioso para encontrá-la, transpondo obstáculos. Enquanto não chegava, dava um tempo com as bolas ímpares, as suas preferidas. Bem distante de onde ela estava, corria atrás de todas as conexões de metrô, tentando ser rápido, para não me atrasar mais.
Àquela hora, o clube estaria repleto, as velhas personagens da noite. Além do jazz, haveria garotas com roupas transparentes, frívolas e bonitas, cafajestes, turistas e homens que tinham uma só cantada – a previsível galeria dos híbridos noturnos, o que incluía michês com roupas de couro, rapazes muito alegres e moças de batom escandaloso.
Assim que me aproximei, ela levantou os olhos, fixou-me – e, em seguida, deu uma estocada na bola branca que, num baque surdo, empurrou direto para a caçapa a bola três. Um toque profissional – e a bola sumiu, como um rato no sorvedouro.
Murmurei algo próximo de um elogio, no mesmo instante em que ela, ao me ver inteiro, depositou o taco sobre o forro verde, aproximou-se e me disse, agarrando a frente da minha jaqueta, os olhos semicerrados – a flor carmim que eu ansiava beijar e que era a minha tontura noturna:
“Bandido, você nunca se atrasa!”
Naquela noite, ela não sabia que, antes de sair, tinha ouvido Chet Baker.
Algum tempo depois, pelo atraso considerável, de mais de uma hora, deduzia que Mièke talvez estivesse em alguma mesa de bilhar entusiasmada com o seu jogo. Eu a esperava no café La Choppe, próximo de onde morava. Era a primeira vez que ela se atrasava.
Nos anos em que vivi em Paris, o Quartier Latin era o meu bairro preferido. Nessa época, ainda não havia as reformas das fachadas nem a proliferação de restaurantes. Era um setor tranquilo, com os seus agradáveis cafés, pequenas e simpáticas livrarias, ruas limpas e calmas, a feira da Mouffetard, adorável aos domingos, a pâtisserie à côté. Três vezes por semana, saindo de casa, passava pelo Panthéon e, depois, pelo Luxembourg e chegava finalmente ao meu destino: a escola onde frequentava alguns seminários na rua de Thournon. Nesses dias, como em outros, sentia um prazer imenso de andar a pé, deixando o ônibus ou o metrô para os trajetos mais longos. Durante esses anos, sempre morei na rua Thouin, uma rua curtinha que ficava ao lado da Place de la Contrescarpe. Construída por volta de 1852, essa praça tem um relógio instalado no alto de um poste, na esquina do café no qual estava. O estúdio onde morava ficava na mesma quadra desse bar, porém no lado oposto. Do meu estúdio, ouvia à noite o burburinho de vozes que se expandiam pelas ruas desertas. Algumas vezes, por estar sem sono, descia e dirigia-me para o bar.
Foi nesse café que marquei um encontro com Mièke. Eu estava numa mesa próxima ao balcão tomando um armanhaque e folheando distraidamente um livro que lhe prometera – uma edição francesa dos poemas de Brecht. Sem mais nem menos, uma linda mulher sentou-se ao meu lado, com extrema confiança e delicadeza. Assim que se acomodou, cumprimentei-a com um bonsoir. Ela respondeu – e pediu logo depois uma taça de vinho.
Encabulado, voltei ao livro, folheando-o ainda mais desatento, enquanto levantava um olho para a minha vizinha. A mulher que tinha acabado de sentar-se, examinando discretamente o livro que manuseava, perguntou-me:
“Você é o amigo da Mièke?”
Levantei a cabeça e admirei-a com mais vagar: ela era mais bonita do que fora capaz de perceber. Como um homem pode distrair-se da Beleza? A sua feição não era só grega – havia ainda a profundidade dos olhos cujas sobrancelhas acentuavam a vivacidade; havia por fim o império de seu corpo que me ascendia – eu nunca tinha visto uma mulher tão linda como aquela. Quantas sereias conseguem sair do mar? Depois desse maravilhamento, respondi:
“Sim, eu a espero aqui, há um tempão.”
“Ela me mandou dizer que não vai poder vir. Eu sou a irmã dela.” Naquele momento, agradeci aos deuses gregos. Qualquer coisa que tivesse sucedido a Mièke, a minha querida namorada de Atenas, saberia logo depois. Mas a sua irmã sentada ao meu lado, com aqueles olhos que me cegavam, fazia-me esquecer os melhores mundos. Foi nesse momento que me perguntou:
“Você quer saber a razão de eu estar aqui?”
Absorvi a pergunta e, ainda desorientado, perguntei:
“O que aconteceu com Mièke?”
A mulher que retirara o meu fôlego e provocara-me uma alucinação estava agora à minha frente, tranquila e à vontade. Por mais atraente que fosse, parecia emissária de uma notícia desagradável. Antes de iniciar a conversa, fui ao balcão buscar o vinho.
“Que história é essa? – insisti.
Ela sorriu, acendeu um cigarro e soprou a fumaça em direção a uma fresta da janela. Em seguida, disse, anunciando o imponderável:
“Ela foi chamada de volta.”
Desde que a conhecera, nunca considerei a possibilidade de que Mièke pudesse um dia viajar inesperadamente, sem me comunicar. Quais negócios tão urgentes tinha em Atenas que a obrigavam a retornar de modo repentino?
“Quando ela vai retornar?” – indaguei, atrás de uma resposta que aliviasse a angústia que sentia. Parecendo uma atriz de vaudeville que encenasse um número de revista, as pernas cruzadas, o cigarro deslizando levemente entre os dedos, disse, mais gaiata que colombina:
“Ninguém sabe, mon cher” – e sacudiu as cinzas, que caíram longe do cinzeiro. A decepção cavava fundo, e um curto silêncio tinha se instalado entre nós. Eu só pensava em Mièke.
Não sei em que ela pensava.
Há pouco tempo, tínhamos ido a um show de Moustaki, um músico grego exilado em Paris. No teatro, enquanto ouvíamos as canções que clamavam por liberdade e justiça, apelando à rebelião e ao inconformismo, ela virou a cabeça e sussurrou no meu ouvido:
“As mulheres são outras vítimas das revoluções” – e depois adormeceu, como se os panfletos a entediassem.
Foi a última vez que a vi.
A irmã de Mièke acendeu outro cigarro. Sem prestar muita atenção em mim, pegou a sua taça. Depois, um olhar que envolvia tanto delicadeza como resignação, sorriu de novo, agora mais francamente, e disse a frase, que aquece os meus ouvidos até hoje:
“A minha irmã pediu-me para eu cuidar de você.”
Nesse momento, eu a encarei – aqueles olhos de absinto, que me fitavam tão verdoengos – e agradeci-lhe, do meu jeito brusco:
“Espero que você nunca me deixe esquecê-la.”
Enquanto Mièke cuidava de seus negócios em Atenas, fiquei alguns meses bebendo o absinto cuja cor combinava com os olhos de sua irmã. Um dia, quando eu pensava numa cena de um filme de Pasolini, contou-me que a sua irmã tinha retornado a Paris e deu-me o seu endereço. Ela estava instalada na rua Saint-Jacques.
Diante do número que conferia com o que estava escrito na minha agenda, apertei a campainha admirando os sinais que estavam expostos no painel encravado na parede, cada um gravado em belos traços gráficos no bronze, à altura dos olhos. Havia um toque de artista naquela placa que anunciava os números dos andares e apartamentos, mesmo com um sutil descuido nos contornos das serifas.
Por um momento, no lado de fora, a despeito da buzina de um carro, pensei ter ouvido a sonoridade de um toque que repercutiu em agradável sonido. Se é possível pensar no conjunto, a construção era simples, estava fincada numa esquina e de acordo com o padrão arquitetônico da cidade. No passado, logo saberia, abrigara um convento que protegia poucas e raquíticas irmãs. Elas faziam parte de uma ordem obscura e hoje totalmente esquecida. Por isso, nenhuma virgem dessa ordem chegou à canonização porque, no mundo cristão, há muito tempo, já não acontecem mais milagres envolvendo donzelas. Parece que a época dos milagres passou numa velocidade despercebida. Querubins, anjos, santos, santarrões, profetas, o bagulho que fosse enviado do Céu atrás de um babaca que anda de carrão, poderiam sem dúvida ser confundidos hoje com o homem do microfone que anuncia produtos no supermercado ou então com o marroquino que entrega folhetos na entrada do metrô.
“Um convento pouco comum”, finalizou ela, a velha concierge que abriu a porta da entrada, “mas em todo caso um convento.”
Em seguida, deu-me passagem e continuou o seu crochê. Não sei se foi pelo fato de já ter sido um lugar de sacrifícios e sofrimentos que, afinal, decidi subir. Mièke estava lá em cima e talvez, com a proteção dos deuses gregos, fosse possível a convivência. Por alguns segundos, fiquei em pé diante da porta do apartamento, antes de bater.
“Como você descobriu o meu endereço?” – perguntou-me, ao mesmo tempo em que abria a porta e encarava-me com os seus olhos oliva, banhados de um mar antigo.
“Sua irmã me deu. Aliás, ela cuidou muito bem de mim durante a sua ausência.” Enquanto me apontava o interior, disse:
“Entre, antes que eu me arrependa. Certos assuntos nunca devem ser adiados.”
Depois de tanto tempo, Mièke continuava sendo o dia e a noite, o sol e a lua, o buraco negro da minha vida. Eu desconfiava de que esta seria a última vez em que ficaríamos juntos. Não contei os dias em que permaneci em seu apartamento. Cada momento, porém, serviu para que nós nos entregássemos a um amor feito de silêncio, gemidos, acusações, tristeza. Os amores sem jeito. Quando tive de deixá-la, ela me disse, a voz branda, porém tingida pelo desapontamento:
“Você tem o meu endereço em Atenas, mas não demore muito. Eu não sou uma mulher que lamenta homem perdido.”
Em seguida, Mièke fechou a porta – e eu desci os degraus de madeira, um por um, carregando dores e incertezas, possivelmente parecidas com aquelas que as irmãs sofreram no claustro. E, como pressentia, nunca mais reencontrei Mièke, embora pensasse nela sempre, todos os dias – um ácido corroendo a minha alma enquanto vagava sozinho pelas ruas de Paris, pisando essas calçadas que à noite têm um brilho de estanho e por onde, ao longo do tempo, milhares de pessoas imprimiram suas marcas.