[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
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1
Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
– em silêncio e lisura –
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.
A suave pantera (1962)
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VIII
O ar que respiro
é tão tranquilo
aqui nestes campos de esmeralda,
nesta velha fazenda,
onde nem casa
mais existe,
e livre anda o gado pela terra,
e as novilhas se espalham
quentes ao sol,
virgens ainda.
Alto capim medra em toda parte.
Não há cheiro de estábulo
nem de alecrim.
O ar nem tem cheiro
por estas paragens silenciosas:
o ar se respira apenas.
Nestes gerais
vive-se mais,
eu penso comigo olhando o campo,
toalha desdobrada.
A vida natural (1967)
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XXXII
O amor não se desnuda ou se desvenda
com a luminosidade de um diásporo,
a fria fonte, o claro
mover-se de ondas para dentro e longe;
o inatingido, súplice oferenda
de quem precisa e quer desse imediato
viver como nos altos
feéricos cimos de distantes montes;
o solitário, esse andrajoso, o monge
do incognoscível, servo do absoluto,
que flui perenemente num obscuro
tempo fora do tempo e todavia
à nossa mão, por ser presente, e via.
O amor não se descobre, o imanifesto,
a cor além da cor, o cinabrino,
o sangue, a seiva, o vivo
zarcão, irredutível ao começo,
ao nunca ousado, ao antes de um deserto;
o não pensado, o talo fino e frio
da planta, o sem declínio
do perecível, chama, fonte, avesso
da calma luz que emana do arvoredo
ou de mim quando penso deleitada
nas coisas que estão vivas, templos, arcas,
onde a imaginação dá com o invisível
que anima a pedra e a flor e não divide;
o fogo do diamante, a força, o brilho
subaquático, crivo do que vive
em angustiosa espera,
imóvel tecelão do que se tece
com fios não de seda, de infinito,
maleáveis fios do que é incompreensível,
no barro cabe, na erva,
amor, que todo o múltiplo convertes
ao indiviso, ao alto, puro cerne,
espelho que se vai esmerilhando
à proporção que se elimina o quando
das geadas, anêmonas submersas,
e as florações do efêmero dispersas.
A vida natural (1967)
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I
A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranquilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso:
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.
O sangue na veia (1967)
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IV
Uma gema que fosse toda fria,
mas na aparência, e toda quente dentro,
e que tivesse a lisa superfície
do que se usa com grande atrevimento,
mas no íntimo; uma gema toda calma,
quase uma água esse fogo nos doendo,
um silêncio que fosse uma cascata,
mas de que o próprio fogo fosse o centro
e de que o próprio fogo fosse a água.
Assim o amor, assim o que se espalha
e não entorna, e vive do que vive,
e é móvel e capaz de ter limite;
assim o que se adentra e se dilata
como o sangue na veia, e é todo livre.
O sangue na veia (1967)
Marly de Oliveira nasceu em Cachoeiro de Itapemirim (ES) em 11 de março de 1935 e morreu no Rio de Janeiro em 1º de junho de 2007. Formou-se em Letras Neo-Latinas na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). Contemplada com bolsa de estudos, cursou História da Língua Italiana e Filologia Românica na Universidade de Roma, onde conheceu Giuseppe Ungaretti, que deu acolhida aos seus poemas escritos em italiano. No período de 1962 a 1967, tornou-se professora de Língua, Literatura Italiana e Literatura Hispano-Americana. Viveu alguns anos em Buenos Aires, Genebra e Brasília. Foi casada com o diplomata Lauro Moreira, com quem teve duas filhas, e mais tarde com o poeta João Cabral de Melo Neto, de quem organizou a obra completa, publicada em 1994 pela Nova Aguilar. Publicou os seguintes livros de poemas: Cerco da primavera (1957, Prêmio Alphonsus de Guimaraens-INL), Explicação de Narciso (1960), A suave pantera (1962, Prêmio Olavo Bilac-ABL), A vida natural e O sangue na veia (1967), Contato (1975), Invocação de Orpheu (1978), Aliança (1980), O banquete (1988), O deserto jardim (1990), O mar de permeio (1997, Prêmio Jabuti), Uma vez, sempre (1999), Um feixe de rúculas (2023, póstumo). Antônio Houaiss expressou-se assim na publicação de A vida natural e O sangue na veia (Editora Leitura): “A aventura poética, aqui, atinge um estado único no Brasil e quiçá na língua portuguesa: um fluir sonoro de completo mas imanifesto domínio dos apoios fonéticos; um artesanato de formas fixas que se embebe no mais acurado conhecimento do passado; uma temática que leva, ao mesmo passo, ao quinhentismo e antes, e aos amanhãs e depois, pertemporizando-se.”