Felinos aparecem na poesia de Luís Araujo Pereira desde que, em Ofício fixo (1968), ele pintou “Tela 3”: “Pelos elétricos/ espinhos de tétano/ tigre de centésimos/ reduzido à paz doméstica/ Feito para a sensibilidade/ dos telhados tépidos/ digere vazios noturnos/ e quadros de mistério”. À época, ao escritor vanguardista importava redimensionar a arte poética segundo a Instauração Práxis, e Mário Chamie, prefaciador do livro, o considerou um dos mais atentos instauradores da geração.
Ocorre que Chamie também percebeu o “painel vivo de uma evolução sensível. Se o título sugere fixidez, os poemas comprovam uma considerável mobilidade criativa”. É notável que o poeta conserve, 55 anos depois, a característica parisiense que descreve em “Quartier Latin”, do vindouro Pegadas de gato (martelo casa editorial), melhor dizendo, seja capaz de entrelaçar o estático ao dinâmico. É que, num pungente volume, a natureza, a escrita, o luto, as paixões e outros assuntos atemporais se amalgamam a uma realidade muitíssimo delimitada.
Assim, a morte de Daiane, uma gatinha preta de olhos amarelos, dá azo a tocante diálogo com o livro predecessor, não só porque a ela fora dedicado Garatujas (2016). A carinhosa esfinge que protegia Luís Araujo Pereira do abismo do outro lado da janela o acalenta na nênia que inaugura a nova obra. Como antes, motivos naturais servem profundas reflexões em saborosa dicção: um pirilampo quase ilumina o lago, pássaros e borboletas são metáforas açucaradas e latidos distantes prenunciam a solidão.
Cumpre anotar que, após o début à testa dos movimentos literários e o subsequente desencanto das vanguardas, foram lançados Linhas (1994) e Minigrafias (2009). Nesses apanhados, o autor, respectivamente, concebeu e aperfeiçoou a concisão de sua linguagem, o efeito talhante das palavras certas nos lugares certos. Tal domínio de estilo propicia, em Pegadas de gato, versos acerca do fazer poético. “Miss” estabelece que escrever é “riscar o veneno das frases/ pra não se intoxicar/ com semantemas” e “Bum!” ecoa o estrondo metalinguístico de um poema do segundo título mencionado no parágrafo, exempli gratia.
No momento seguinte, conforme dito, os textos são circunscritos a espaço e tempo, a justificar o subtítulo da obra, “Poemas da quarentena”. O colapso sanitário experimentado pelo Brasil durante a pandemia é representado com assombro. Aqueles que contribuíram para o estrago são monstros e demônios, já que apenas “ogros e orcs” seriam capazes de eleger “Belzebunaro” e banalizar a morte. É preciso, todavia, caçoar do negacionismo, sobretudo para espantá-lo: “Um bolsominion amarelou/ quando viu santa Cloroquina/ cagando/ sobre as ruínas”, diz “Balada”. Sim, a poesia, via de mão dupla, reconforta e opõe resistência. Trata-se do ponto nevrálgico da obra, indicativo de que, na situação mais extrema, quando o obscurantismo fascista parecia incontornável, a lira dissecou o cotidiano para resgatar a vida.
A morte dá tom pesaroso a outra face de Pegadas de gato – enfrentar, compreendendo-a, a finitude da existência. Em “Elegia”, o autor presta homenagem aos genitores e, figurativamente, morre com mère e père sempre que os rememora. “Rua Mouffetard”, por sua vez, sentencia que “A sutileza/ entre mourir et être/ é tão melancólica/ quanto um final de tarde/ aos domingos”. “Rumor” indaga: “será que mais/ à frente encontrarei o verdadeiro vazio?/ para atingi-lo, talvez deva morrer primeiro,/ antes que a flor se abra – e seu perfume s’en va”. Demais exemplos, como “Carcaça”, mostram que a questão povoa o pensamento do eu lírico. A honestidade consigo permite um poema feito “Corpo”, que arrebata pelo que tem de sincero e corajoso. Por vezes, o idioma francês identifica cifradamente a nostalgia que envolve o passado.
Se a consciência do fim parece atemorizante, o poeta acessa outro ponto de vista ao término do livro. Em “Oh, baby”, a uma interlocutora recomenda nunca andar para trás, sob pena de levar um tombo, e, em “Trapézio”, confessa não se importar com as quedas que o derrubaram “pra baixo”, pois “só me lembro/ das que/ me jogaram/ pra cima”. Significa dizer que o caminho da vida está sendo trilhado, ainda há bastante lenha por queimar e grandes remorsos são prescindíveis.
Portanto, em Pegadas de gato, o leitor criterioso encontrará alimento fino à fome de poesia, em que o experiente escritor e seu país estão despidos e encaram-se com rara justeza. Por óbvio, estas linhas não substituem a leitura da obra, cujas camadas – a plêiade de referências, a inter-relação com a biobibliografia, a aplicação de formas e rimas – merecem análises dedicadas. O permanente dialoga com o mutável num dos melhores livros de Luís Araujo Pereira, que será lançado nesta quinta-feira, dia 5, na Livraria Nobel do Shopping Bougainville.
Serviço
Lançamento do livro: Pegadas de gato – Poemas da quarentena [2020-2023]
Data: 5 de dezembro, quinta-feira
Local: Livraria Nobel, no Shopping Bougainville (Rua 9, nº 1855, Setor Marista, primeiro piso)
Horário: das 18h30 às 21 horas
Ficha técnica
Livro: Pegadas de gato – Poemas da quarentena [2020-2023]
Autor: Luís Araujo Pereira
Ilustrações: Vinícius Yano
Editora: martelo casa editorial
Páginas: 128
Preço: 72 reais