Olha, eu teria muito. Uma mulher que enche os bolsos do casaco de pedras e se enfia no Rio Ouse, sem pensar que poderia se arrepender no meio do processo, é tremendamente assustadora. Porque não tem volta, não há dúvidas, não há dubiedade de sensações, como aconteceu com a Gloria Maria quando foi fazer uma reportagem na Noruega. Pois então: saiu de um lugar quentinho, cheio de vapor, tirou o roupão e mergulhou numa piscina congelante. Constatou: É horrível! Mas é bom!
Como assim?! Aquilo deve ter causado uma pane mental momentânea, um curto-circuito, um negócio estranho, uma morte neural congelante. No caso da Virginia, é horrível e é horrível mesmo. Sem nenhuma sensação de prazer. Acredito mesmo que a Virginia sabia o que era uma enchente, sabia que a enchente passa por cima, não se detém nos obstáculos e vai só crescendo, se avolumando, arrastando tudo, fatal. Bem assim. É, e não adianta se arrepender no meio do processo, não. Não dá para mudar o rumo, escolher outro caminho, sair pela tangente, não.
E a enchente, em Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, começa meio sorrateira, mas irrefreável. Quem está atento percebe que a Martha/Elisabeth Taylor não está para brincadeira, que ela está disposta a tudo, que ela não teme se expor e não tem nem um tiquinho de medo do George/Richard Burton, que também é peso pesado naquele relacionamento tóxico/simbiótico. As visitas estão ali só para assistir, para tomar partido, para serem atingidas e entrarem na onda. E sério, quem é que podia com aquele casal, na vida real ou na tela? Se você não se cuidasse, eles podiam atravessar a tela e cuspir na sua (nossa) cara!
Como é que começa? Mais ou menos como aquelas mosconas que zumbem, que ficam dando voltas e zumbindo e, por mais que você abra as cortinas, as janelas, as portas, quebre as paredes… elas não saem, continuam ali, enlouquecedoras, elas não encontram uma saída, não. Como em Um Dia de Fúria, em que o personagem começa a pirar com o barulho de um inseto dentro do carro. A coisa só vai crescendo, a irritação vai aumentando, todos os motivos para a raiva/fúria, os passados, presentes, futuros, imaginários, estão ali. Junte a frustação, as injustiças, a incompreensão, os desacertos, o fracasso, aí o caldo desanda, ferve, escorre do caldeirão e vira avalanche.
Daí, quando um jogo verbal criado pela raiva começa, ele flui num pingue-pongue espontâneo, como se os diálogos já estivessem prontinhos, só esperando a boca abrir para tomar um fôlego para se materializarem no ar, sólidos, inabaláveis. Quem tem raiva já espera (com prazer!) a deixa para surfar na gigantesca onda havaiana. Há também os quase monólogos, nos quais a pessoa verbaliza, se responde internamente, e até o que não se fala é ouvido. Há alguns anos, uma conhecida se sentou à minha mesa, brava, falou minas e caroços do marido quase ex (e nunca, de fato, ex). Daí que me escapou um “esquisito”, pequenininho, quase inaudível. E VOCÊ AINDA QUER QUE EU VOLTE COM UM HOMEM DESSE?! Amenizei: eu não quero nada, longe de mim querer alguma coisa. Esclarecendo: voltaram, juntinhos até hoje.
É, às vezes nem é pra valer. Nada. É aquela coisa: o zumbido, a mosca, a palavrinha, um ruído comunicacional, um tique, um truque. Sei lá. Acho que ninguém está imune. Mas que cansa, cansa. Exaure. E não é que apareceu a Nina?! Que, aliás, nem era Nina. Esse nome ela ganhou já velha, depois de perambular muito pela rua, passando por muitas e más (imbatível Millôr!), tomando muita chuva, muito sol e passando fome e sede, tipo nome de guerra mesmo, sobrevivente. Arisca até hoje. Escapole para a rua e late com quem passa, um latido alto e rouco, descontando desacerto e desconfortos. Aí, né? Eu estava na sala de jantar, de olho na minha mãe, a porta de entrada no nível mais baixo da sala de estar (que living, que nada!), quando ela entrou, cismada, olhando para os lados. Pulou no sofá e se acomodou na manta. Cheguei pertinho, pulou do sofá e andou até a porta aberta. Recuei para a outra sala. Voltou de mansinho e pulou desajeitada no sofá. Sentei do lado e fiquei passando a mão naquele pelo grosso, sujinho.
Ela, quieta. Primeira e uniquíssima vez que aceitou um carinho. Desistência. A Martha, idem. Ela foi tecendo a teia, aprisionando o George, humilhando mesmo. O George, então, furou a teia, escapuliu e acabou com o que restava da Martha. Nem lembro direito, mas parece que chovia naquela noite, ou dia, ou madrugada, em alguma hora. Cansaram e foram dormir, exaustos, cuidadosos um com o outro. O gozado é que a Nina, mesmo tendo vivido brabinha, corajosa, desassombrada e descoberta no tempo, também se encolhe na chuva. E como é que tem chovido tanto assim nessa primavera?!