O médico militar que participou da tortura durante a ditadura e ao mesmo tempo queria ser analista abriu o bico. E o que disse mudou a política e a psicanálise no Brasil.
Só depois que Amilcar Lobo falou é que ainda estamos aqui insistindo contra a amnésia social.
Foi um presente dos deuses o filme de Walter Salles Ainda estou aqui. Oportunidade rara de comprovar que o passado não passa. Está vivo nas tentativas de golpe da extrema-direita brasileira contra o Estado Democrático de Direito, único espaço político para o exercício da clínica psicanalítica com algum grau de liberdade.
Aos que não estavam lá e aos que vierem depois de nós, uma pequena chance de rememoração. Sobre o caso Rubens Paiva pairava um mistério encoberto pela farsa montada pelos militares de que ele teria sido sequestrado por guerrilheiros e que estava desaparecido. E aí Amílcar Lobo detona a versão oficial. Foi a primeira vez que um militar denunciou a prática da tortura nos seus cárceres. A opinião pública foi enganada durante anos pela versão de que não havia tortura, que isso era coisa de comunistas que desapareceram com o corpo do ex-deputado. E, de repente, um militar denuncia o crime. Diz que Paiva foi torturado, morto e desaparecido pelas forças de repressão.
“Era uma equimose só” – Lobo confessa à repórter Martha Baptista, da revista Veja, em 1986. “Eu não sei precisar o dia, mas foi no início de 1971. Eu dava 4 horas de serviço diárias no quartel da Polícia do Exército. Fui chamado às 2 da manhã para ir ao quartel, onde deveria atender um preso. Chamados desse tipo não eram sistemáticos, mas eram comuns. Quando cheguei ao quartel fui à última cela do lado direito do 2º andar, na área que se chamava presídio. Na cela, onde habitualmente ficavam cinco ou seis pessoas, havia um só preso, deitado sobre uma cama. Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. Ele havia sido torturado, mas, quando fui examiná-lo, verifiquei que seu abdômen estava endurecido, abdômen de tábua, como se fala em linguagem médica. Suspeitei que houvesse uma ruptura do fígado ou do baço, pois elas provocam uma brutal hemorragia interna. Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele durante uns 15 minutos. Durante todo esse tempo ele esteve deitado. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras: Rubens Paiva. Eu nunca havia ouvido esse nome, não sabia quem era. Não o esqueci porque a situação em que ele estava me impressionou e também porque eu nunca sabia o nome dos presos que atendia. Nunca tomar a iniciativa de perguntar quem eram. Comigo na cela havia ainda um oficial. Não sei se era da PE ou do DOI-CODI. Eu aconselhei para que o preso fosse removido o mais depressa possível para um hospital. Logo depois, saí. Como médico, eu não tinha permissão para ficar ali no presídio. No dia seguinte, ou melhor, no mesmo dia, quando cheguei ao quartel, um oficial me falou: – Olha, aquele cara morreu. Eu ainda perguntei: – Vocês chegaram a levá-lo para o hospital? – Não, morreu aqui mesmo – foi a resposta.”
Durante 15 anos, Lobo carregou esse segredo. Disse que várias vezes pensou em revelá-lo. “Cheguei mesmo a me aconselhar com amigos, mas eles consideraram a atitude prematura. Eu temia pela saúde e pela integridade física de pessoas da minha família. Há uns dez dias, quando vi no telejornal da Globo que o caso Rubens Paiva ia ser reaberto, decidi que tinha surgido a oportunidade para falar. Estou pronto a dizer no inquérito o que acabo de lhe contar”, disse à repórter.
Como se envolveu com a tortura? “Eu fui designado para o quartel da PE em 1970. Quando tive meu primeiro contato com um preso torturado, caí numa crise histérica. Era um senhor de uns 60 anos, estava no chão. Eu cheguei para atendê-lo e o oficial que estava com ele disse: ‘Eu não sei por que você veio examiná-lo. Ele está muito bem. Antes de você olhá-lo, vamos fazer um teste’. Ele colocou uma espécie de luva de metal e deu um soco nas costas do senhor que não sei como não o matou. ‘Está vendo?’, disse-me o oficial, mandando-me embora. Eu saí da sala e vomitei. Com o tempo a gente vai se adaptando a essas situações e já não tem um quadro assim sério, mas foram anos de tortura para mim.”
Perfil de Lobo, segundo o Jornal do Brasil, de 1º de setembro de 1986: “Amilcar Lobo Moreira da Silva formou-se em 1969 na Faculdade de Medicina da UFRJ e no ano seguinte foi cumprir o seu estágio militar obrigatório como segundo-tenente da Reserva do Exército. Em 1970 ficou alguns meses servindo no Forte Copacabana e em 1971 foi transferido para o I Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, quando passou a atender presos torturados. Em 1981 ele foi identificado em seu consultório de psicanalista por Inês Etienne Romeu, presa e torturada entre maio e agosto de 1971. Inês foi atendida em uma casa em Petrópolis alugada pelas forças de segurança. Ela havia tentado suicidar-se logo depois de presa, atirando-se debaixo de um ônibus, e estava muito machucada, inclusive com perda de substância na parte superior da coxa direita. Amilcar esteve na casa de Petrópolis (rua Artur Barbosa 668) [A chamada “Casa da Morte”], por três vezes num período de 15 dias, e quando foi identificado ele confirmou tudo, sem jamais admitir que o seu trabalho era ‘testar a resistência dos presos’ para novas sessões de tortura, como publicou a revista argentina Cuestionamos, em 1973 [A revista argentina por sua vez fora informada pelo jornal carioca Voz Operária, publicação clandestina marxista]. Amilcar Lobo não sofreu qualquer sanção do Conselho Regional de Medicina [Até então, pois a sanção veio posteriormente com a cassação de seu registro para exercício da medicina], que se atém a um regulamento que diz que ‘médicos militares em serviço não estão sujeitos ao CRM’.”
Com a confissão pública de Lobo, o então ministro da Justiça do governo Sarney, Paulo Brossard, manda apurar a morte de Rubens Paiva. Depois das revelações de Amilcar Lobo, Eunice Paiva pode então admitir: “Hoje eu fiquei viúva e meus filhos órfãos”. Assumindo a viuvez, Eunice processa a União. A certidão de óbito só foi entregue a Eunice em 23 de fevereiro de 1996 em um cartório da Sé em São Paulo. Ela estava com Marcelo, seu filho. Eunice passou de dona de casa de classe média a advogada e ativista pelos direitos indígenas de renome internacional.
Os militares tentaram reiteradas vezes abafar o caso e suas repercussões. “O Exército, alegando que o assunto ‘está sendo investigado pelo ministério da Justiça’, recusa-se a prestar informações ou fazer qualquer tipo de comentário a respeito do caso Rubens Paiva, inclusive quanto às revelações do tenente-médico Amílcar Lobo”, noticiava o Jornal do Brasil de 2 de setembro de 1986. “A ordem de silêncio partiu do próprio ministro Leônidas Pires Gonçalves e se aplica a todos os departamentos e unidades do Exército. Isso impediu, até, que fosse revelada a situação do 1º tenente Jurandyr Ochsendorf e Souza, de 47 anos, paraquedista que permanece na ativa. Os outros dois envolvidos – o capitão Raimundo Ronaldo Campos e o sargento Jacy Ochsendorf (irmão de Jurandyr) – já foram transferidos para a reserva mas o Exército não esclarece o seu paradeiro, muito embora recebam regularmente seus proventos”, continuou o jornal.
Mas a denúncia, de imediato, não afastou Lobo da psicanálise. “Ao relembrar o caso, o psicanalista Helio Pellegrino – que foi expulso da mesma sociedade [Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro] e reintegrado por ordem judicial – enfatiza que o próprio Amilcar Lobo admite agora, em entrevistas, que o seu analista, na época, Leão Cabernite, era seu confidente e, portanto, estava a par de sua participação na tortura”, diz o Jornal do Brasil de 5 de setembro de 1986.
Pellegrino faz uma série de perguntas incômodas para a direção da SPRJ e seus didatas, entre eles, Cabernite. “Por que Leão Cabernite, à época, deu entrevistas dizendo que Amílcar Lobo não tinha nenhum envolvimento com a tortura?”, divulgou o JB ainda em 5-9-86. “E por que a Sociedade resolveu reintegrá-lo como membro-candidato, mesmo tendo ele suspenso a análise didática, fato que por si só seria impeditivo a tal reintegração?”. Pellegrino esclarece que Lobo fazia análise didática com Cabernite desde 1969 e que em 1973, depois das primeiras denúncias, a análise foi interrompida. Uma interrupção de mais de seis meses – continua Pellegrino – é suficiente para que alguém seja afastado compulsoriamente dos quadros do Instituto de Ensino, e que quando ainda está em formação, no Instituto, a pessoa é considerada membro-candidato. Mesmo sem ter reiniciado a análise, Lobo voltou a ser membro-candidato em 1976. “Por que tamanho zelo, tamanha proteção a Amilcar Lobo diante das circunstâncias que cercaram o seu primeiro afastamento?”, questiona Pellegrino. “Mas, logo após uma nova série de denúncias contra Lobo em 1980, a Sociedade resolveu afastá-lo definitivamente”, continua.
“Mas o motivo alegado não foram as torturas e sim, justamente, a longa interrupção do processo de análise didática. A direção da Sociedade só não explicou na época por que demorou alguns anos a fazer uma constatação tão simples.” O curioso é que o próprio Lobo, no seu livro A hora do Lobo, a hora do Carneiro (Editora Vozes, 1989) também acusa a direção da SPRJ pelas manobras de tergiversação e protelamento na resolução do seu caso, em que afinal ele é abandonado e condenado em várias instâncias, seja pela instituição, seja pela opinião pública, pela esquerda, pelos militares torturadores que atentaram contra sua vida por duas vezes, pelo sequestro de um de seus filhos, e afinal pela crise de consciência que o levou a confessar sua participação na tortura. Que livro é esse? Ficção? Relato de horrores? Relato do modus operandi dos torturadores que foram aconselhados por agentes da CIA a trocarem a brutalidade das torturas causadoras de sequelas irreversíveis por métodos psicológicos sofisticados usados por agentes de segurança anglo-saxões? Fake news? Documento? Caso clínico? Tudo isso junto?
O caso Amílcar Lobo despertou a reflexão de Helio Pellegrino já naquela época, em 1986. Não se trata apenas de um indivíduo. “Na realidade – continua Pellegrino – a questão é bem mais profunda. Até hoje a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro deve uma explicação à sociedade pelo fato de o caso Amílcar Lobo nunca ter sido encarado de frente, em toda a sua gravidade.” E aí vem a grande questão que nos atravessa até hoje: “Afinal, pode o membro de uma equipe de torturadores ser candidato a psicanalista? Obviamente, não. O sr. Amilcar Lobo ficou alguns anos em situação irregular na Sociedade, à qual não poderia pertencer, não só por ter interrompido o seu processo de formação, mas também por exercer a repugnante atividade que exercia.”
Bem que gostaríamos de dar plena razão a Pellegrino, mas os fatos apontam para outra direção. As sociedades psicanalíticas são impotentes para controlar certo tipo de ocorrência na formação de analistas. Aqui recorro a Serge André que, no seu livro A impostura perversa (Jorge Zahar Editor, 1998), vai além da formação ao apontar para uma “analogia estrutural” entre o analista e o sádico. Diz o autor: “… ninguém solicita melhor do que o sujeito perverso a expressão desse desejo do analista [desejo de obtenção da diferença absoluta, segundo Lacan no Seminário Livro11], pois ninguém reivindica mais do que o perverso a possibilidade de fazer de seu sintoma uma escolha” (p. 18).
“Não podemos, pois, evitar interrogar, paralelamente ao desejo do analista, uma estrutura que Lacan isolou e formalizou, e que se inscreve no coração da problemática de qualquer perversão, a saber, a estrutura da fantasia sadiana”, continua Serge André.
A longa citação de Serge André nos serve para apontar a impotência das instituições não só na escolha dos candidatos à formação, como também no exercício da prática dos próprios analistas:
“É certo que há analistas perversos, tal como há analistas psicóticos. E todo mundo concorda em ansiar por que haja o menor número possível deles. Mas esse anseio, trazido pela angústia ou pela censura, de nada nos adianta, e assinalaríamos, com a mesma facilidade, que os analistas que não são psicóticos, nem perversos não estão a salvo de cometer alguns equívocos monumentais. Pode-se convir que existe, nas estruturas psicóticas e perversas, uma dificuldade certeira de que a questão do desejo do analista possa destacar-se da fantasia própria do sujeito que assume sua posição. Mas talvez seja mais interessante assinalar que os perversos e psicóticos sentem-se especialmente atraídos pela posição do psicanalista, os primeiros porque a suposição de desejo e o efeito de angústia que ela comporta convêm a seu impulso de corromper e dividir o outro, e os últimos porque a suposição de saber ligada ao analista pode corroborar-lhes a íntima certeza de saberem o que o Outro quer. Convenhamos, com resignação, em que querer eliminar esses sujeitos da profissão de psicanalista, pura e simplesmente, seria um projeto tão inútil quanto querer proibir a função de pedagogo aos pedófilos, a de cirurgião aos sádicos ou a de enfermeira às histéricas…” (p. 18-19).
Na abertura de seu livro Serge André cita Freud: “Penso, pois, que a análise sofre de mal hereditário… da virtude; ela é obra de um homem demasiadamente respeitável, que se supõe, portanto, preso à discrição. Ora, essas coisas psicanalíticas só são compreensíveis quando são relativamente completas e pormenorizadas, do mesmo modo que a própria análise só avança quando o paciente desce das abstrações substitutivas até os pequenos detalhes. Daí decorre que a discrição é incompatível com a boa exposição de uma análise; é preciso ser inescrupuloso, expor-se, entregar-se como pasto, trair-se, portar-se como um artista que compra tintas com o dinheiro das despesas da casa e queima seus móveis para aquecer o modelo. Sem algum desses atos criminosos, não se pode realizar nada corretamente (S. Freud, carta de 5 de junho de 1910 ao pastor Pfister)”.
Em seguida, Serge André faz uma citação de Lacan que preserva a dimensão da verdade para além da injunção de um crime instituído: “Digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real” (J. Lacan, Televisão, p. 11). Parece que a citação de Lacan “tempera” a radicalidade freudiana a respeito da “necessidade” do crime. Apenas metáforas?
Voltando ao caso Amilcar Lobo. Depois do furo de reportagem da revista Veja, o Jornal do Brasil deu sequência às denúncias e buscou examinar as alegações do médico cúmplice da tortura. Com texto de abertura de Zuenir Ventura em colaboração com os repórteres Jorge Antonio Barros e Susana Schild, a edição do Caderno B/Especial de 14 de setembro de 1986 teve enorme repercussão. Não bastava saber das denúncias, era preciso entender por que alguém demora tanto tempo para botar tudo aquilo pra fora. Zuenir chega a dizer que seu depoimento é “histórico, diante do qual se fica dividido entre a admiração e a repulsão. É difícil não admirar a sua corajosa atitude hoje, como é impossível rejeitar, como repulsiva, a sua criminosa cumplicidade de ontem”. Lobo nega o tempo todo que tenha praticado a tortura, mas admite ter sido conivente com ela, “o que lhe dava uma posição privilegiada: não participava das sessões mas, como militar, sabia quem as promovia e, como médico, tratava dos que as sofriam”. Ventura prefere a lógica da chamada neutralidade, como se ela existisse em algum lugar do mundo da psicanálise e da política: “O seu relato tem assim a isenção de um testemunho, digamos, neutro. Os torturadores precisavam dele para continuar torturando e os torturados não raro necessitavam de seus cuidados para sobreviver. Não se pode acusar as suas confissões de revanchistas ou ressentidas como se costuma fazer com as denúncias de ex-torturados”.
Costumo dizer que só o talento de um Nelson Rodrigues poderia dar conta desse recado. Talvez a lógica da interseção, no chamado diagrama de Venn-Euler, em que um mesmo elemento participa simultaneamente de dois conjuntos distintos possa contribuir para além da categoria de neutralidade. O diagrama facilita o entendimento de operações lógicas da teoria dos conjuntos como as relações de inclusão, pertinência, união, interseção, diferença. Para uma hipótese diagnóstica: Nelson Rodrigues (patos) + Diagrama de Venn-Euler (logos) > Lobo encarnação viva (morta) da pulsão sadomasoquista. Embora Lacan tenha elogiado Deleuze pela ideia de que sadismo e masoquismo não são entidades complementares, uma não é o avesso da outra (J. Lacan, A lógica do fantasma, 1966-1967, pp. 232-3), o mestre parisiense da psicanálise não abandonou a expressão “pulsão sadomasoquista”. Também na página 227 do Seminário 16, de um Outro ao outro (1968–1969) associa o objeto sadomasoquista à voz. Continua falando em sadomasoquismo em 1969, mesmo depois de Deleuze com quem concordara entusiasticamente! Os temas do masoquismo, da fala e da voz nas páginas 227, 247, 248, 249 e 250 do Seminário 16 podem dar uma grande contribuição ao entendimento da subserviência automática – e hierárquica – dos militares à chamada “voz de comando”, que uns têm, outros não. A voz grossa também foi associada por Lacan ao supereu. Penso que tudo isso tem a ver com Amílcar Lobo, seu comportamento obediente às múltiplas vozes de comando, sem exclusão de seus conflitos e hesitações que afinal culminaram na corajosa decisão de denunciá-las, como mostra a leitura de seu livro. Coragem elogiada até mesmo pelo escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado. Coragem ou covardia?, teria arriscado Lacan, ao chamar atenção para o fato de alguém seguir o desejo do Outro pode comportar as duas possibilidades. Neste trabalho, um esboço, ainda provisório, fica o registro para um desenvolvimento posterior. Sugestões é que não faltam.
Como foi o comportamento de Lobo durante a entrevista? “Às vezes reticente, hesitante, às vezes angustiado, ora decidido, quase sempre aliviado e pelo menos uma vez profundamente emocionado”, descreve Ventura. “Foi quando, ao revolver as possíveis causas do seu comportamento, teve que interromper a entrevista chorando”. “Conheço Amílcar há uns 14 anos e foi a segunda vez que o vi chorar”, surpreendeu-se Maria Helena, sua secretária e depois sua mulher. “A primeira foi quando ele perdeu a filha de 15 anos num acidente de moto”. No seu livro A hora do Lobo, a hora do Carneiro, ele conta que desenvolveu uma estratégia de autocontrole para aparecer frio, distante, impessoal e insensível diante dos presos políticos como uma defesa em relação aos sentimentos mais turbulentos e devastadores que experimentava.
Indagado sobre como podia conciliar duas atividades tão distintas, a tortura e a psicanálise, defende-se: “De fato, eu pensei que ia ficar esquizofrênico mesmo. Uma vez, acordei de madrugada sentindo-me mal, fui para a sala, sentei, olhei para uma garrafa de uísque nacional que estava num móvel e ela quebrou-se. ‘Quebrou-se’ na minha cabeça, claro. De repente, a garrafa de uísque se transformou numa mamadeira. Tive receio de voltar para o quarto onde estava minha mulher dormindo. Na ocasião, fiquei muito assustado e cheguei a debater isso na minha terapia com o dr. Leão.”
Desaparecer alguém é uma forma usual de tortura. E não se pode esquecer que ainda hoje existe uma lista de centenas de corpos de desaparecidos pela ditadura militar. Debate-se no Supremo Tribunal Federal a tese de que a ocultação de corpos se torne um crime permanente, imprescritível, não afiançável nem apagável por nenhuma lei de anistia.
“Era uma equimose só…”
Depois de ter dito isto, como pôde ser ignorada a chave do mistério? Chave do mistério que levou 15 anos para ser elucidado? Chave do mistério que encobria a farsa militarista, chave do mistério que ficou de fora do filme de Walter Salles, ficou de fora da crítica cinematográfica – pelo menos a de Inácio Araujo, da Folha de S. Paulo – de fora do comentário de psicanalistas, como o de Christian Dunker, sempre tão atento ao cinema?
Torço para que o filme de Salles ganhe todos os óscares possíveis. Vibro com a premiação de Fernanda Torres. Me emocionei ao reviver aqueles tempos tão pesados. Valorizo a produção de todos que se empenharam na reconstituição ficcional e histórica de fatos que estão documentados e foram amplamente divulgados pela imprensa. Fatos relatados e analisados em seguida por diversas teses universitárias e até mesmo de teor psicanalítico.
“Salles fez o filme que quis, com toda precisão possível, abordando um fato político com ressonância histórica. Não foi infiel ao tema, não dirigiu mal seus atores ou técnicos. Mas não se pode fugir de seu temperamento, que não parece o melhor para fazer esse tipo de filme. Nesse sentido, é bem evidente que ‘Central do Brasil’, um filme da regeneração nacional, continua a ser o trabalho que melhor representa o seu diretor”, afirma Araujo.
A crítica de Inácio Araújo vai contra a corrente da opinião geral sobre o filme e nisso consiste sua virtude, a de nos fazer pensar criticamente. Muito discutível, porém, é a tese de que o filme é apolítico e que isso se deve ao temperamento e à delicadeza do diretor. A meu ver, só é apolítico num ponto, o desconhecimento da importância da denúncia do torturador Amílcar Lobo que pela dramaticidade do roteiro poderia “estragar” o final com a revelação da chave do mistério do paradeiro de Rubens Paiva. Sem mencionarmos a ideia de que uma obra de arte não se explica totalmente pela biografia e pela personalidade de seu autor.
Apresentei aos cineastas Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e Oswaldo Caldeira a ideia o argumento para um filme que poderia ser um thriller político. O fio condutor do argumento teria uma linha do tempo que começa com alguns trabalhos meus publicados no Jornal do Brasil. A primeira parte seria a dos Os barões da psicanálise (1980). Ela se estenderia até o ano 2000 quando o filósofo Jacques Derrida e o psicanalista René Major convocaram os chamados Estados Gerais da Psicanálise. Psicanalistas brasileiros participaram ativamente desse evento. Derrida achava a psicanálise especialmente dotada para discutir a crueldade humana. A segunda, Uma psicanálise da tortura, renovada hoje pelo filme de Walter Salles. Ainda estou aqui reabre a discussão do caso Amílcar Lobo nos termos de um levantamento da amnésia social estudada entre outros por Russell Jacoby (Amnésia social/ Uma crítica à Psicologia Conformista, de Adler a Laing), Zahar Editores, 1975). O filme de Salles funciona como um verdadeiro portal, abrindo a câmera para a visão de múltiplas realidades interligadas nas dimensões macro e micropolíticas. Questão de “polética”, como já foi sugerido, vale o neologismo. Mas os cineastas mencionados não se interessaram pelo argumento. Grande parte dos psicanalistas também não. Preferem discutir minuciosamente as questões éticas apresentadas na Europa. Pior, e o que é mais surpreendente ainda, é o fato de que um analista lacaniano da importância de Jean Allouch, ao se debruçar sobre as questões suscitadas pelo caso Amílcar Lobo, tenha dito o seguinte:
“Assim como a informatização atualmente, a eletrificação há alguns decênios, e mais precocemente ainda a industrialização, como ondas a que ninguém escapa por pouco que se esteja em seu caminho, a psicanálise sofre hoje, como chicotadas, uma rebentação: a etificação. Afirmaremos que assim etificada a psicanálise simplesmente não tem lugar. Que ela está, portanto, em vias de … morrer de ética. Sem sabê-lo. Calamidade. Não se trata mais de supereu, aqui chegou a ética; não se trata mais do caso clínico, aqui chegou uma clínica do fato social; não se trata mais de método, aqui chegou o analista sabedor; não se trata mais de explicar a experiência, aqui chegou a psicanálise como ideologia. Esta quádrupla calamidade, entretanto, tem seu reverso de revelação, ou de confirmação (pois já Freud sabia e sustentava isso): não há ética psicanalítica.”
Allouch qualifica de “inenarrável happening” o que o livro da Dra. Helena Vianna, Não conte a ninguém... (Imago Editora, 1994), uma contribuição à história da psicanálise brasileira sob a ditadura militar, provocou em Paris, no hospital Sainte-Anne, em 9 de fevereiro de 1997. Em discussão pública, Allouch se defende e defende Conrad Stein das acusações de ser um colaboracionista comparável a Papon. Sabe-se que Maurice Papon (1910-2007), oficial de polícia do governo francês de Vichy, colaborou com os nazistas na Segunda Guerra Mundial, envolvido na deportação de judeus para os campos de concentração alemães. Tudo porque Allouch perguntou inocentemente naquela altura do campeonato: “O que a psicanálise como tal tinha a ver com isso? Como se sabia que se tratava de um psicanalista torturador?”
Allouch vai a ponto de dizer que o caso Amílcar Lobo “remete à existência ou à recusa daquilo que, há mais de vinte anos, tenta forçar seu caminho sob o nome, ainda mantido quase absolutamente velado, de psicanálise derridiana” (contracapa de A etificação da psicanálise/Calamidade/Uma psicanálise derridiana, Jean Allouch, Companhia de Freud Editora, 1997).
Então: não existe ética da psicanálise. Para quê e por quê, se Allouch tem razão, estudar a ética da psicanálise segundo Lacan? A ética da psicanálise tal como Lacan a expôs no Seminário 7 virou letra morta. No máximo haveria uma ética para cada analista? Ou nem isso? A impressão que tive do livro de Allouch é que a calamidade não é a tortura, e sim sua denúncia. A calamidade não é a inexistência de uma ética pura e simples, e sim a chamada “psicanálise derridiana”.
Derrida versus Lacan. A polarização esquerda-direita instalada no campo analítico parece interminável, assim como no âmbito maior da política. Alegar que tudo não passa de ilusão “ideológica”, que não deveria existir, é justamente ocupar posição de direita no espectro político. Toda a obra do filósofo Slavoy Zizek o confirma.
Amílcar Lobo alega esquizofrenia, sentimento de culpa, de se sentir desde criança um adotado, tal como o artigo de Freud sobre o romance familiar, para explicar sua indecisão de contar tudo e abandonar aquele inferno. E acrescenta outros motivos bizarros, como o fato de ter tido “duas mães”. A lógica é “fui abusado, logo serei abusador”.
Na última página de seu livro Amílcar Lobo recorre à fábula de Esopo, O lobo e o cordeiro:
“Há uma fábula de Esopo que conta a estória de um lobo que, ao beber água num córrego, se depara com um carneiro que também bebia água num ponto mais baixo do córrego. O lobo lhe diz, então, que irá devorá-lo, pois o mesmo suja a água que ele bebe. O carneiro retruca honestamente que é impossível ocorrer isto, uma vez que ele se encontra num ponto mais abaixo que o do lobo. Mas este não aceita a justificativa e afirma que se a culpa não é dele, é certamente de seu pai.
E, assim, o lobo devora o carneiro.
Desde 1981, a sociedade brasileira me vê como um lobo vestido com a pele de um carneiro. Espero, ansiosamente, antes do final dos meus dias, que o Lobo devore para sempre este Carneiro.”
Autodevoração. Canibalismo. Encarnação viva (morta) da pulsão sadomasoquista. Identificado como o “bode expiatório” dos males da repressão, segundo afirmou Maria Helena Gomes de Souza, sua mulher, Lobo morreu aos 58 anos de pneumonia, infecção generalizada, e isquemia cardíaca.
Uma linha do tempo e um fio condutor podem ser discernidos dentre uma quantidade enorme de eventos – grandes ou pequenos, faustos ou infaustos. De minha parte, pelo que pude contribuir para o entendimento dessa história tão complicada e complexa, cito:
- A psicanálise na favela, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 19-12-1979.
- Os barões da psicanálise, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 23-9-1980.
- A psicanálise em pé de guerra – Helio Pellegrino anuncia a sua expulsão e a de Eduardo Mascarenhas da Sociedade Psicanalítica do R-J. O presidente da SPRJ, Vitor Andrade nega a expulsão, Jornal do Brasil, 15-10-1980.
- O que é uma sociedade idônea? Entrevista com Luis Cesar Ebraico, presidente do Instituto de Psicologia Clínica, e Luiz Campos, do IBRAPSI (Instituto Brasileiro de Psicanalise, Grupos e instituições), Jornal do Brasil, 16-10-1980.
- Psicanalistas mostram carta para provar que foram mesmo excluídos, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 17-10-1980.
- A psicanálise perde o grande teórico/A morte de Lacan, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 11-9-1981.
- A IPA vem à crise/O alto comando dos psicanalistas está no Rio para ouvir Pellegrino e Mascarenhas, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 27-10-1981.
- Uma história de dissidências, Roberto Mello, Jornal do Brasil, 27-10-1981.
- Adeus, Helio, sobre a morte de Pellegrino, Roberto Mello, Diário da Manhã, Goiânia, 24-3-1988.
- Guinga e a psicologia do torturador, Roberto Mello, revista digital ermiracultura.com. Comentário da letra de Aldir Blanc, que foi psiquiatra, e música de Guinga intitulada “Par ou ímpar”, álbum Delírio carioca, 1993. Exemplo raro de abordagem de um tema como o da tortura na chave do humor. Vilmar (vil..) é um paramilitar que tem soco inglês e joga futebol como um craque, bate bem na pelada e na tortura, diz que não é nada pessoal (Hannah Arendt andou por aqui), mas se convocado outra vez (ameaça do passado que bate à porta) volta e mete o pau na vítima em primeira pessoa. A letra mistura futebol, tortura, religião de matriz africana, filosofia, pizza, PC Farias, e Nerso da Capitinga, e diz assim:
“Contar pra vocês/ O torturador/ Que tem soco inglês/ Mudar não mudou./ Lá em Xerém/ Vilmar, o paramilitar bate bem/ Numa pelada fuderosa/Onde não tem pra ninguém/ Ele só chama adversário/ De meu anjo e neném/ Mas quando baixa o santo ruim/ É pé na cara/ E, olha bem/ Lambe o bigode assim PC/ Dá de madeira em você/ Por tudo que cê disse e que não disse/ No fim, pede uma pizza de aliche/ Diz que tá lendo Frederico Nietzsche/ Conta que é torturador/ Não é nada pessoal/ Se convocado outra vez/ Volta e me mete o pau, uai!/ Aí eu jogo pinga na língua que imita a ginga/ Do Nerso da Capitinga/ Que xinga/ Mas a catinga/ Diz que eu me sujei.”
- Vilmar, o torturador “feliz”, Lobo, infeliz, triste e culpado. Mas o métier era o mesmo.
Referências bibliográficas
Alouch, Jean, A etificação da psicanálise/Calamidade, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1997.
André, Serge, A impostura perversa, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995.
Cerqueira Fº, Gisálio (org.), Crise na psicanálise, Rio de Janeiro, Edições Graal, l982.
Freud, S., ESB, vol. XIV (1914-1916), O inconsciente, p.29, Rio de Janeiro, 1974.
Jacoby, Russell, Amnésia Social, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977.
Lacan, Jacques, O Seminário Livro 7 A ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,1988.
Lacan, Jacques, O Seminário Livro 14 A lógica do fantasma, Rio de Janeiro, Zahar, 2024.
Lacan, Jacques, O Seminário Livro 16 de um Outro ao outro, Rio de Janeiro, Zahar, p.247,2008.
Lobo, Amílcar, A hora do Lobo, a hora do Carneiro, Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1989.
Mello, Roberto, Os barões da psicanálise, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 23-9-1980.
Ventura, Zuenir, A psicanálise da tortura/Em questão/ Dr. Amílcar Lobo, entrevista / com a colaboração de Antonio Barros e Susana Schild, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, Caderno B/Especial, 14-9-1986.