Costica Bradatan, filósofo romeno radicado nos Estados Unidos, trata em Elogio do fracasso (Vozes, 2024), não tanto do fracasso em si, mas da humildade que pode se desprender dele. Bradatan serve-se de entrada da bela e penetrante definição de humildade oferecida por Iris Murdoch, “um respeito altruísta pela realidade”, para reafirmar ao longo do seu texto que essa virtude, que normalmente se aprende à base de quedas, é condição necessária para compreender aquilo que acontece e aquilo que nos acontece. Certamente, a palavra “humildade” não pode deixar de ter conotações morais, nem haveria razão para renunciar a elas, mas mais do que uma virtude no sentido estrito do termo, a humildade é um modo de estar no mundo, uma forma concreta de viver e participar da condição humana. Novamente com Iris Murdoch, é “uma das virtudes mais complexas e essenciais”. Vladimir Jankélévitch equiparou a humildade à verdade e André Comte-Sponville a definiu como “amar a verdade mais do que a si mesmo”, isto é: o humilde não se sente possuidor da verdade, mas vive com a compreensão de que ninguém jamais a poderia possuir completamente.
Pelo ensaio de Bradatan circulam Simone Weil, Mahatma Gandhi, Emil Cioran, George Orwell ou Yukio Mishima, entre outras figuras, e uma das suas teses é que a perda e o fracasso são experiências necessárias para nos curar da arrogância e do egocentrismo, do autoengano e, em geral, da nossa adaptação precária à realidade. Estas notas se inspiram nele.
Algumas pessoas precisam de muito mais do que outras para serem consideradas normais. Não só em nível social, mas no psicológico, as coisas não são iguais para todos. Uma diferença crucial entre alguém habituado a ver seus esforços recompensados e outro que não tem a mesma experiência é que o primeiro estará muito mais propenso a acreditar no mito da meritocracia e o segundo acederá mais facilmente à consciência de que a contingência – toda aquela série de fatores que não podemos controlar – condiciona, mesmo que não determine, boa parte da nossa existência. Essa sensação ocasional de vazio e irrealidade, longe de uma perda, oferece acesso a uma compreensão do mundo e da vida no mínimo diferente daquela de outros, cuja história é escrita como uma concatenação de esforço e realização constantes, como se a vida fosse uma relação perfeita entre causa e efeito.
A falta de consistência de substantivos como “sucesso” e “fracasso”, ditados segundo os critérios normativos da classe dominante na sociedade em voga, deveria ser um lugar-comum. Mas não é, pelo menos por um bom motivo. Ninguém vive absolutamente sozinho e, como Costica Bradatan ressalta, “por mais distantes que estejamos das pessoas de que fugimos, e por mais que nos recolhamos em nossa própria solitude, a sociedade sempre nos alcançará. Não apenas porque a solitude é definida na relação com os outros, mas porque somos obrigados a empregar a linguagem – um produto definitivamente social – para pensar ou falar, até mesmo com nós próprios.” Mas se, como afirma o clássico de Berger e Luckmann, a realidade nada mais é do que uma construção social, por que deveríamos ter tanto medo de filosofias supostamente niilistas (Cioran), que, lidas serenamente, são formas de ver o mundo que contêm a virtude cética de nos advertir de que a realidade poderia ser sempre diferente da que é, visto que não há nada sólido que a sustente?
Seja qual for sua definição, o sucesso geralmente implica uma sucessão temporal de estados ou eventos. Mas quando algo dá errado, essa sucessão é interrompida e causa uma sensação de vazio. Desencanto, frustração, sentimento de fracasso é, segundo Bradatan, tudo aquilo que sentimos como desconexão, como perturbação ou angústia ao longo da nossa interação padronizada com o mundo, quando algo deixa de existir, de funcionar ou de acontecer da maneira que esperávamos, ou deveríamos esperar, de acordo com os critérios e valores sociais que nos foram incutidos e que internalizamos. Esse vazio, porém, pode despertar outro tipo de conhecimento e novos valores, uma forma diferente de viver consigo mesmo e de se relacionar com os outros.
Costica Bradatan argumenta lucidamente que um sólido senso de humildade é um requisito necessário para a democracia. Uma humildade que não é apenas pessoal, mas também coletiva, pública e socialmente interiorizada. Que não contrarie a confiança nas próprias capacidades, que conheça os seus valores, mas também, e sobretudo, os seus próprios limites e inclusive, quando necessário, seja capaz de rir de si mesma. Uma humildade que, tendo presenciado muitas situações absurdas e aprendido a conviver com elas, se torne paciente e sábia, pois, como já disse Albert Camus, “a democracia é o exercício social e político da modéstia”.
Viver democraticamente significa entender e aceitar que a imperfeição é inevitável, e não fazer um drama em cima disso. A impureza e a imperfeição são parte intrínseca das sociedades livres e viver democraticamente implica enfrentar a insatisfação com um sorriso. Somente essa humildade, que Bradatan admite ser difícil, seria capaz de criar uma verdadeira democracia. Na verdade, se a democracia é tão complicada – uma raridade histórica, não esqueçamos – é porque é praticamente impossível criar e perseverar nessa virtude em larga escala. E, no entanto, como escreveu John Keane, a democracia só pode prosperar através da humildade, que não deve ser confundida com docilidade ou submissão: “a humildade é uma virtude democrática essencial, o antídoto para o orgulho arrogante: trata-se da condição de ter consciência dos próprios limites e dos limites alheios”.
Em vez de ficarmos obcecados em criar “um mundo melhor” (talvez um slogan para os abastados), poderíamos começar investindo esforços para tentar tornar o mundo um lugar menos horrível. A democracia não pode fazer grandes promessas, o autoritarismo as faz todas. A democracia aspira a uma certa dose de dignidade humana, o totalitarismo, sabemos, tenta eliminá-la. Segundo Costica Bradatan, se as decepções políticas nos ensinam alguma coisa, é que não importa quão louváveis sejam nossas aspirações e nobres os nossos sonhos, devemos aprender a nos contentar com menos. Conformidade significa compreender, assumir e saber viver de acordo com a complexidade colocada pelos problemas do nosso entorno concreto e do mundo e da vida em geral. Justamente aquele altruísmo em relação à realidade do qual Iris Murdoch falava. Entretanto, confundir conformidade com conformismo, ou claudicação, é um erro ou um desvio que pode interessar a alguém, mas não necessariamente a nós.