Há pessoas que com seu ofício constroem um legado de tal forma determinante que se tornam instituições. O humano, o comum da vida, se esvanece diante da dimensão do que realizaram. Menina ainda, percebi que meu avô, Jarbas Jayme, nascido em 19 de dezembro de 1895 na fazenda Água Limpa, no município de Pirenópolis, era uma figura institucional em nossa amada cidade.
No desfile escolar, carreguei orgulhosa cartaz com grandes réplicas das capas dos dois volumes do Esboço Histórico de Pirenópolis. Quem me atribuiu a honrosa distinção foi o advogado Pompeu Cristóvão de Pina, já falecido e também uma instituição pela incansável defesa das tradições e do patrimônio pirenopolinos. “O trabalho de seu avô é muito importante”, fazia questão de me apontar.
Mas confesso que para mim prevaleceu mesmo o avô Jarbas, a imagem afetiva composta muito mais de relatos de meus pais e tios do que pelas minhas lembranças. Era muito criança quando ele morreu. Nem sei mesmo se o que lembro existiu ou inventei, porque a memória é criativa, sabemos disso. Vagas recordações são dele no tamborete em que gostava de se sentar, na cozinha da casa de número 50 da Rua Direita, pronto a fazer cócegas caso eu me aproximasse demais.
É esse perfil amoroso, íntimo, o que tenho a compartilhar. E o faço pela generosidade das histórias narradas principalmente por minha mãe, Eugênia Dajar Jayme Morais, e dos casos recordados nas reuniões familiares, entre boas risadas, dos tios Fábio e Celestina, ambos Dajar Jayme.
O Dajar que sempre causou estranheza, parecendo nome estrangeiro, nada mais é que a junção das sílabas iniciais de Dailde e Jarbas, os progenitores.
Recorro ainda ao que notei desde muito menina nas falas impregnadas de admiração dos tios Zé, o escritor e professor José Sizenando Jayme, e Haydée Jayme Ferreira, também escritora, que demonstravam carinho, mas muito mais o tributo a um ídolo, ao pronunciar a palavra “papai”. Ficava impressionada e até meio constrangida por enaltecerem assim o próprio pai, mas considerando hoje que ambos também assumiram a missão fundamental de garantir o registro histórico de suas comunidades, vejo que tinham condições de avaliar melhor a obra paterna. Daí a admiração assumida.
Coube ao saudoso tio Zé as publicações póstumas de grande parte dessa obra, inclusive do Esboço Histórico de Pirenópolis, cuja edição há muito esgotada completa agora 50 anos. Da mesma forma, a publicação em 1973 dos cinco volumes da obra de maior fôlego de Jarbas, referência para estudiosos que enfrentam dificuldade de acesso, porque há muito a edição também se esgotou. Trata-se de Famílias Pirenopolinas (Ensaios genealógicos), “obra na qual papai faz o levantamento linhagístico total de mais de cem famílias de origem meiapontense”, explicou o filho e admirador. Meia Ponte era o nome da atual Pirenópolis.
Jarbas Jayme, hoje patrono de cadeira da Academia Goiana de Letras (AGL), na qual nunca quis concorrer a uma cadeira, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), cuja sede em Goiânia abriga hoje uma sala com móveis, fotos e objetos do antigo escritório da casa na Rua Direita. Escreveu centenas de artigos para jornais goianos e do Triângulo Mineiro.
“Deixou várias obras publicadas, cuja edição lhe custou tremendo sacrifício financeiro, pois papai era sabidamente pobre: ‘Cinco Vultos Meiapontenses’, retrato biográfico de pirenopolinos ilustres; ‘Do Passado ao Presente’, genealogia completa de ilustres troncos familiares goianos, trabalho grandioso, de acurada pesquisa, que papai denominou, modestamente, de ‘ensaios genealógicos’; ‘Vale Seis’, obra crítica genealógica em que, numa linguagem polêmica, espanca dúvidas quanto à origem da família Fleurí e exibe farta e irrespondível documentação histórica; ‘Anedotário Meiapontense’, chistes e piadas, que retratam a vivacidade mental e a presença de espírito da gente pirenopolina”, registrou ainda José. Resta inédito o livro Os Sumos Pontífices.
Permitam-me uma digressão, porque ela exemplifica o esforço e as aventuras de meu avô na pesquisa, nas entrevistas, na apuração minuciosa de dados e fatos. Certa vez, me pediram uma crônica para uma revista que circula entre médicos, coisa de um dia pra outro, prazo curto. Narrei uma história curiosa do meu avô.
Esse caso foi ali pelas bandas de Jaraguá, por volta de 1918, quando viajavam a cavalo, vencendo léguas, o jovem Jarbas e um amigo, promotor de justiça e por isso chamado de doutor. Era período de seca que castiga o Cerrado e foi um alívio avistar uma fazenda, onde pararam para pedir água. O dono, ao ouvir falar em doutor, expressou profundo alívio, porque a mulher estava em trabalho de parto, o bebê em posição invertida. Foram vãs as tentativas de explicar que não se tratava de um médico e sim de um “doutor” das leis. O marido e pai, aflito, foi imperativo: “Faça o parto, doutor!” Diante da relutância, recorreu ao 38. “Faça o parto, doutor!” E o parto foi feito com sucesso graças a forças que encontramos, sem saber como surgem, nas situações extremas.
Meu avô viajava muito a cavalo, que pegava emprestado para percorrer fazendas e povoados sempre que sabia da chance de encontrar alguma pessoa mais velha que poderia dar depoimento, tanto em Pirenópolis quanto nas cidades vizinhas, e em Palmeiras (onde foi prefeito e nasceram os filhos Fábio, Eugênia e Celestina).
Mesmo quando moraram em Goiânia, a nova capital, de 1951 a 1955 – na Rua 24, nº 57 –, onde foi chefe de Polícia do governo de Pedro Ludovico Teixeira, não deixou de escrever, pesquisar. Depois do expediente, lia, trabalhava. Sofria de insônia. Usava uma lupa para tentar decifrar documentos que pareciam hieróglifos, garrancho de letras em batistérios e certidões de casamento, quase ilegíveis. Ia catalogando tudo. Depois de escrever, fazia questão de ler para minha avó, para saber se ficou bom.
Tinha paixão por seu ofício. Como bem definiu a escritora italiana Natalia Ginzburg: “Uma vocação é a única saúde e riqueza verdadeiras do homem”.
Jarbas gostava de fazer, não se preocupava muito em publicar e muito menos com a repercussão que teria ou qualquer espécie de retorno financeiro. “Se alguém quiser publicar, vai esclarecer muita coisa”, é o que minha mãe conta ter ouvido.
“Ele não via movimento de ninguém fazendo e pensava que tinha de deixar para a posteridade a história, a sequência de famílias. Seguiu trabalhando até seus últimos momentos”, diz ela, que ilustra com esse episódio divertido o quanto era natural para ele a dedicação como historiador e genealogista.
Meu avô estava na janela de seu escritório, de frente para a Rua Direita, onde ia passando uma senhora, que ele cumprimentou.
– Bom dia, dona Rosa. Aniversário de quem hoje, dona Rosa?
– Não lembro, seu Jarbas.
– Seu, dona Rosa, meus parabéns. – E falou até quantos anos ela estava fazendo.
Mesmo ocupando importantes cargos públicos, não amealhou bens materiais. Aposentou-se por tempo de serviço, com salário mínimo. Deixou para minha avó, ao morrer, a casa cuja metade herdou da mãe, Eugênia Goulão, e a outra metade comprou de “vó” Ana. Essa casa sempre pertenceu a mulheres e é uma das 341 que documentou, trabalho complementado pelo seu filho José e publicado em 2002 nos dois volumes da obra póstuma Casas de Pirenópolis, que tem prefácio do arquiteto Oscar Niemeyer.
É também minha mãe, Eugênia, quem conta: “A primeira vez que vi meu pai chorar, foi quando demoliram a estalagem, as lágrimas caindo e ele tentando disfarçar da gente”.
A estalagem, local de hospedagem de viajantes e tropeiros, foi construída pelo comendador Joaquim Alves de Oliveira no começo da ladeira do Alto da Lapa, no início do século 19. Foi ao chão 150 anos depois.
“Cada pedra, cada tijolo que cai, é um pedaço de mim que vai embora”, lamentava Jarbas, que defendia lei de proteção, o tombamento para preservar as antigas construções. Que o poder público preservasse quando o proprietário não tivesse recursos. Infelizmente, testemunhou muitas construções coloniais serem arrasadas.
Jarbas foi um rapaz vaidoso, galanteador, tinhas mesmo ares de Don Juan, conforme os comentários em família. Com o passar dos anos, foi mudando. Casou-se no religioso com minha avó Dailde Araújo Goulão, 20 anos mais nova que ele, após a morte de sua primeira mulher, Maria Dinah Crispim, com quem teve oito filhos. Chamava Dailde de Sinhá. “Pedindo, eu mando”, ela falava às vezes às filhas, e ria.
Ao envelhecer, apaziguado no casamento sem rusgas – minha mãe atesta nunca ter presenciado bate-boca entre os pais –, Jarbas tornou-se despojado. “Tendo o necessário pra viver, pondo tanga de folha de mangueira e chinelo de couro cru, tá bom pra mim”, afirmava.
Uma passagem da infância do tio Fábio, em Palmeiras, deixa evidente essa austeridade. Menino de 8, 9 anos, Fábio queria porque queria presente de Papai Noel e, para isso, cumpriu o ritual natalino de colocar os sapatos atrás da porta. Acordou e foi procurar o presente: sobre os sapatos estava uma enxada, com o cabo encostado ao lado, na parede, para ele encaixar. Um choque de realidade para o garoto, que se tornaria procurador de justiça e esteio constante da família. Eugênia ameniza assim: “Mas meu pai tinha comprado roupa, bola. Ele falava ‘não existe Papai Noel, não gosto disso. Uns ganham presente caro, outros não ganham nada’.”
Rigoroso, não deixava Eugênia e Celestina usar sandálias porque achava pé muito feio. Só usavam sapato fechado para sair e chinelo em casa. Certa vez, as duas ganharam do irmão Paulo, mais velho, um dinheiro e compraram logo as desejadas sandálias, mentindo que o presente dado tinham sido as próprias sandálias – e não o dinheiro. O pai se conformou, mas nem tanto. “Vocês têm um mês para acabar com as sandálias, depois jogo fora”, sentenciou. E jogou fora mesmo.
Era sistemático. Sobre o tamborete na cozinha, para garantir uso exclusivo, havia uma placa: Favor não se sentar aqui (com seta indicando o tal tamborete, bem ao lado do fogão a lenha).
Era avesso a cerimônias. Minha mãe foi a única filha que levou ao altar. Isso depois que ela chorou e disse que preferia subir sozinha, que não queria ir com o irmão Fábio.
Era homem de fé, foi seminarista. Respeitava muito as tradições religiosas, mas não se dobrava a dogmas.
Numa ocasião, o padre Primo Carraro, seu amigo, chamou-lhe a atenção.
– Nunca vi o senhor na igreja.
– É porque tenho certeza de que Deus é onipotente, onisciente, onipresente – foi a resposta.
Manteve essa convicção até o fim, a julgar pelo que escreveu na carta-testamento feita dois anos antes de morrer (em julho de 1968, aos 72 anos) e guardada no cofre na casa de “Tio” Juanito Jayme, da antológica Pensão Padre Rosa.
“Dispenso encomendações e missas. São invenções humanas às quais não dou crédito. Deus, infinitamente reto e misericordioso, far-me-á justiça.”
Texto da conferência apresentada, em 25/09/2021, para a mesa-redonda Registros Históricos na 11ª Festa Literária de Pirenópolis (Flipiri), em homenagem aos 50 anos da publicação dos dois volumes de Esboço Histórico de Pirenópolis, de Jarbas Jayme.
Muito bom.
Meu tio Jarbas Jayme sds.
Prima (seria meio-prima de primeiro grau? não sei como funciona. Eu acho que prima mesmo), pois nosso avô é o mesmo.
Sou filha de Décio Jaime e neta de Maria Dinah Crispim Jayme.
Lindo relato sobre o vô Jarbas que não conhecemos, mas temos lembranças tão vívidas.
Foi muito bom ler! Um abraço.