Já não é de hoje que o grande empenho dos progressistas e da tal esquerda é uma luta tão incessante quanto vã de manter o que está. E nem tudo é culpa ou limitação dessa turma, mais do que isso, trata-se de compreender que a voracidade sagaz do sistema capitalista-colonial-global-digital-necroliberal é tamanha que avança sobrepujante sobre todas as espécies vivas do planeta, sobre todo e qualquer direito que isso que chamamos de humanidade veio a conquistar.
Por isso não seria justo atacar de todo e por completo o empenho dos campos progressistas e da tal esquerda em manter direitos. Manter a saúde pública, a educação pública. Manter a aposentadoria, manter os direitos trabalhistas. Tudo isso é profundamente necessário, e todo empenho para tal é não só legítimo como urgente.
Mas o lance é que há uma colisão conceitual e identitária aí. Quem deveria manter a porra toda são os conservadores, né? Em tese, e em algum território abandonado da história, caberia à esquerda reinventar, botar abaixo as estruturas, produzir tanto no campo das ideias como das práticas o tal do(s) outro(s) mundes possíveis. Todavia, tudo que sobrou foi tentar, sem grandes sucesso, manter.
A incessante insanidade de um mundo que colapsa por todas as frestas nos lança em uma estranha realidade: os conservadores neoliberonazis atacam, atentam, contra a ordem vigente com maestria, enquanto a esquerda tenta, junto da mídia mais comedida (ou desesperada), manter a ordem, as instituições, as regras todas de um jogo que sabem ser sórdido. Conservadores revolucionários e (nem tão ou nada) revolucionários tentando conservar. Bonsonaristas falam em presos políticos, falam em liberdade de boca cheia, falam em abolir. Enquanto o campo progressista corre contra, tentando convencer a sociedade da importância do Supremo e da democracia representativa.
Você que me lê e não quer pensar além de onde já está, ou anda tomado por ódio cego dos argumentos que já tem prontos, deve pensar agora que eu sou um idiota ou louco, onde já se viu escrever este parágrafo acima? Para entender o tamanho da desgraça que estamos, é preciso sair do que já achávamos ter entendido.
Claro que a merda do Supremo e do Congresso e da democracia representativa é incomparavelmente melhor que o golpe bonsonarista que já é real e está a todo vapor. O que estou tentando dizer é que esses caras que estamos chamando de malucos, fascistas e burros estão oferecendo um discurso de ruptura e, pra quem tá fudido neste país (são muitos e muitas, né), isso pode soar melhor do que o nosso papo de que temos que manter o que está aí. Quem só perdeu até aqui com que está aí pode estar interessado em ruptura, em subversão da ordem. O poder do discurso revolucionário do golpe bonsonarista reside na capacidade de, ainda que falsamente, oferecer uma quebra, uma guinada. Aliás, notem bem, foi assim que esse acéfalo odioso e macabro venceu as eleições: ele era a transgressão, o antiestablishment. Talvez por esse caminho, torpe e incompleto, que estou tentado argumentar, tenhamos alguma chave explicativa dos porquês de 25% da população seguir apoiando essa excrescência aberrante no poder. O cara tá passando fome, mas apoia o coiso porque acha que ele vai quebrar as estruturas. Não sei, mas faz algum sentido talvez.
Daí vem o lance das tais fake news. Na boa, acho bem parco e pobre esse papo. A assim chamada fake news é um mero aparecimento de um sofisticado projeto de construção de uma outra realidade. Não importa aqui se ela é inexistente, afinal, inventar outra realidade é algo em que a esquerda e todo campo progressista deveriam estar profundamente dedicados. A tal utopia, né?!
Os sujeitos mais sujos e perigosos do mundo (fascistas-neoliberais-nazistas) produzem um imbróglio indistinguível entre o real e o imaginado, entre a mentira e um momento do que pode vir a ser verdadeiro, entre o delírio e a inventividade estratégica, a farsa e a força do argumento que inventa o real, enquanto nós tentamos explicar a quem lê que aquilo é mentira. Talvez, se tivéssemos nos dedicado mais a ler Borges e Cortázar, poderíamos agora surfar em algum lugar do entendimento que não distingue o inventado do concreto. Os produtores das fake news produzem uma estranha realidade (nos termos de Carlos Castañeda), enquanto tentamos assegurar o real como sendo o enfadonhamente concretizado.
Eis um convite à inversão possível.
E se, ao invés de lutar desesperadamente para garantir um real inteligível e comprovadamente concretizado, nos dedicássemos a destruí-lo mágica e deliciosamente de forma delirante? O real, afinal, sempre foi uma invenção sádica, lutar para conservá-lo é uma tarefa enfadonha e, conforme se pode notar, não logrará êxito. Achar que as pessoas são idiotas ou burras ou não esclarecidas porque recebem uma falsa notícia e preferem acreditar nelas é de uma limitação extremada. As pessoas querem acreditar em absurdos e isso pode ser incrível. Falta a gente produzir absurdos de outra natureza que não fascista.
Quando eles inventaram a tal da mamadeira de piroca, o que a gente fez? Correu desesperadamente para tentar dizer que ela não existia, né?! As bolhas algorítmicas não nos deixaram sair do nosso confortável quadrante ideológico e não convencemos ninguém. Até hoje, a inexistente e deliciosa mamadeira de piroca se faz real no imaginário popular.
A gente poderia, e ainda pode (!), ao invés de negar, dobrar a aposta, não só delirar para evidenciar o absurdo, mas aproveitá-lo para se deliciar com a defesa irreverente e descompassada do que queremos construir. É tempo de dizer que, sim, nós tomamos a tal mamadeira de piroca! E não só tomo, como defendo e distribuo. E o faço para desmontar a moral heteronormativa. E o faço para chocar a tal tradicional e enfadonha família, para desmontar o falo de carne e colocar no seu lugar o dildo mamável, introjectável, portátil, democrático. O pau de borracha sem o homem patriarcal, desfazer o pau ao reinventá-lo no estado de mamadeira, no estado sintético da borracha. Eis o papel do tal intelectual orgânico? Usar a mamadeira de piroca como um ícone inesgotável de luta. Sentar no absurdo da fake news até gozar. Tomar o delírio odioso até que vire do avesso.
Veja como os desgraçados do mal falam do nosso cu, e o que a gente faz? Tenta de novo dizer que nosso cu é comportado, que a gente quer respeitar a família, os costumes. Ao invés disso, poderíamos botar nosso cu na própria cara, reivindicá-lo como o mais profundo ato político. O cu é a maior das micropolíticas.
Se a Terra é plana, somos nós que estaremos na sua beirada, munidos de vigorosos paraquedas coloridos prontos para pular no abismo!
De fato o homem não foi à Lua, foi na nave espacial do astronauta mineiro que bichas e trans periféricas fizeram nela uma festa nada gravitacional!
Chega de correr atrás da verdade enquanto os facínoras mais perigosos e abjetos inventam outras realidades. Cabe a nós surfar no absurdo. Deve ser nossa a cólera delirante, desviante e desvairada que descompõe o real em estado de imaginação concreta e concretizada. Trata-se mais do que nunca da disputa pela capacidade de delirar, de inventar, de destruir o real com ideias absurdas, com delírios devires. Tomar deles o monopólio da invenção de mundos paralelos, já que só os nossos podem ser coloridos, os deles cinzas, quando muito verde e amarelos.
O único jeito de botar fim às tais fake news é deturpar o real ao nosso modo. Modo múltiplo, modo que atenta a este sádico e patético mundo heteronormativo, patriarcal, racista, colonial, misógino e capitalista. Não temos que defender nada deste mundo, todo empenho é para destruí-lo por inteiro e parte deste processo pode e dever ser argumentativo, com invenções de outros reais, com o delírio atentando contra as estruturas. O delírio precisa ser nosso! Só nós podemos atuar na defesa do que eles entendem como absurdo. O empenho deles para inventar realidades paralelas é em favor da manutenção da família, da moral, da propriedade, da pátria e de Deus. Nosso campo é imensamente mais vasto e profícuo, nossos delírios são inventivos e com eles temos a obrigação de se contrapor à normatividade violentamente vigente. Nossa negação desse conjunto que compõe o real é em favor da sua destruição concreta e objetiva e precisa atentar contra as estruturas todas, inclusive contra o sórdido e limitado ideal de verdade.