Não é exagero dizer que os textos de Juliano Garcia Pessanha são trabalhados no cerne do pathos, no redemoinho das coisas estranhamente poéticas, em que o autor, espantado com o mundo, expõe suas entranhas, como um samurai que rasga o ventre para mostrar ao seu senhor a sinceridade de suas palavras. Não é exagero.
Exemplo disso é O Filósofo no Porta-Luvas (Todavia, 2021, 96 páginas), novo romance de Pessanha, em que ele recupera o tema de seu livro anterior, Recusa do Não-Lugar. A diferença formal é que a narrativa está em terceira pessoa e mais afeita a um tipo de linguagem literária que constrói enredos, embora, ainda assim, forje elementos de uma literatura marcada pela semântica psicanalítico-ontológica.
O tema é o drama de alguém que nasce sem certos predicativos psíquicos que dão a sensação de que o mundo pode ser acolhedor, se se jogar o jogo certo, se se fizerem os exercícios de ajuste, como camaleões tomando “a coloração das coisas do mundo” para viver melhor, aceitando “tomar a cor desta flor ou deste tronco”, pois “nada é melhor que tomar a cor do mundo e falar seu idioma”.
Para o protagonista de O Filósofo no Porta-Luvas, que se chama Frederico, essa sensação de acolhimento não existe, num grau zero de inexistência. Ele não pertence a este mundo. É um camaleão que não sabe mudar de cor, ou que muda para a cor que destoa do ambiente. Segundo o senso comum, o único nome para esse tipo de gente é “louco”.
Mas, diagnósticos clínicos à parte, a loucura é apenas um arquétipo que se encaixa em alguns e em outros, não, em que alguns são legitimados positivamente e consagrados pela sociedade e outros condenados ao ostracismo da estranheza. Frederico é um extramundano. Toda sua infância foi um martírio. O pai o chamava de louco. A mãe não o via como indivíduo, mas como uma extensão de si mesma, um xifópago.
Na escola, era a mesma coisa. Ele se sentia numa prisão, enquanto os colegas brincavam, estudavam matemática, sabendo que era um exercício de aprendizado para a vida adulta. Um menino sempre o espancava “para tirá-lo do alheamento”.
Viveu assim por um bom tempo. Já adulto, bebia muito, frequentava prostíbulos, prodigalizava os recursos da mãe, usava seu carro para “ser-táxi”, “taxista-sufi”, parando nos pontos de ônibus e discursando “contra o individualismo nas cidades modernas”, e depois levava as pessoas em casa, não sabia amar, era “cabisbaixo e cheio de diagnósticos psiquiátricos”.
Zaratustra tupiniquim
Foi para a universidade, fez graduação e mestrado em filosofia. Estudou os pensadores da negação do mundo, como Nietzsche, Heidegger, Adorno, os poetas visionários do abismo e os narradores do absurdo, como Hölderlin (seu xará), Trakl, Kafka e Clarice Lispector, “os estranhos, os não-interventores, os a-racionais”. Eram seus educadores, seus “pedagogos de uma outra forma de habitar o aqui”. Até que aos 34 anos encontrou um terapeuta que o convenceu de que estava psiquicamente no lugar errado.
O psicanalista (talvez lacaniano) Sebastião Nissa se tornou o guru de Frederico, ajudando-o a negar o mundo, ensinando-lhe que seu lugar era o não lugar, que “sua incapacidade para o mundo era apenas o sinal de sua força poética”.
Frederico morava em São Paulo, no bairro do Morumbi. Agora, “caminhava alado e suspenso pela cidade: ele era do mundo, mas não pertencia a ele”, era livre, desfilando nos píncaros, nas alturas do ser aí, sem a gravidade realista das coisas, das obrigações do cotidiano.
“Quem disse que o ser humano vem do macaco e do coito? Quem disse que ele nasce do desejo e do amor? Isso é para as massas! Ele vinha direto da fenda, surgia no aí como um enigma. Era uma ilha cuspida por vulcões misteriosos.”
Frederico se sentia agora um profeta, um Zaratustra tupiniquim (não por acaso seu nome é Frederico, ou Friedrich). O mundo de Frederico não é este em que vivemos, nós leitores. Seu reino é de outro mundo, para citar aqui outro príncipe da metafísica, um deus de quem Frederico sente estar próximo, por afinidade ética talvez.
Thriller existencial
Com a ajuda de Nissa, Frederico aceitou sua condição de um ser do não lugar, e por 18 anos viveu como se fosse um “mensageiro do mistério”, um “rebento do enigmático”. “Meu guru disse que eu já tinha iluminado e eu acreditei.” O guru havia lhe garantido “uma vida digna no mundo para quem estava fora dele”, e ele acreditou.
Mais do que uma narrativa psiquiátrica, ou uma sondagem psicológica do tormento, O Filósofo no Porta-Luvas é um misto de thriller existencial, romance-ensaio e autobiografia etnográfica, ou uma autoetnografia.
Para mergulharmos nessa aventura de véus psíquicos, que se abrem e se fecham, é bom nadarmos ao menos na parte rasa das águas da ontologia. Segundo a filosofia, sobretudo a heideggeriana, o ser é a concretude das coisas e do homem que passam pelo mundo.
O ser é uma figura em trânsito, um devir, que fatalmente desaparecerá, em contraposição ao ente, que é (o ente é, simplesmente; uma espécie de fogo invisível do ser, que o vai queimando até que o ser não exista mais; o ser é o que aparece na existência para depois desaparecer, enquanto o ente permanece, porque se o ente desaparecer, o ser já era, nunca mais, só o nada).
O dispositivo existencial que dá ao ser a noção de pertencimento ao mundo é o eu (“homem normalizado”). Mas, psiquicamente falando, esse dispositivo não funcionava em Frederico como em todo mundo, e assim se sentia um estranho no ninho. Sentia-se apenas como um ser em trânsito, sem lastro, sem história de si mesmo, sem criar vínculos afetivos, um não eu. Por isso foi convencido pelo “guru da intimidade” de que seu lugar era nas alturas.
A narrativa de Juliano Garcia Pessanha imprime uma solidão e uma angústia que não é qualquer leitor que suporta, mas, em compensação, essa mesma narrativa oferece também uma música, uma música que acompanha o leitor à medida que avança na leitura, uma música originária do abismo, oriunda do vazio que se constrói enquanto Frederico avança na trajetória de sua existência sem poder olhar para trás, porque sabe que não há nada lá. Há uma música que soa baixinho, como a voz da beleza, enquanto lemos.
Sobre o abismo da loucura
Para aquém da metafísica, no entanto, a topografia das paisagens exteriores do romance de Pessanha ajuda o leitor a compreender por onde passam as palavras, por onde desfila a vida concreta, como o mundo se abre e se fecha, massacrando a existência dos inadaptados.
Além de Frederico e seu guru, outros personagens são importantes na construção da concretude do mundo deste romance, como Kazuo, Gregório, Lourival, Verônica, Renato Rezende e Laura.
Frederico, ainda convicto de que é um profeta do não lugar, de que conseguirá formar seu rebanho de almas como a dele, concluiu seu doutorado em filosofia, mas não conseguia dar aulas, não achava ouvidos para sua boca, a não ser os usuários do Caps (Centros de Atenção Psicossocial), Gregório, um poeta que se achava o pai-de-deus, e o suicida Lourival, que mais tarde se jogaria do vão do Masp.
A tessitura poética que puxa o Caps para o centro da narrativa é uma das coisas mais bonitas da literatura brasileira de hoje sobre a “loucura” e sobre a atenção psicossocial, que é um instrumento do SUS e a fonte do movimento antimanicomial. O Caps é quase uma instalação na trama, citado várias vezes, como um tipo de abrigo para os habitantes do não lugar que não têm o amparo do dinheiro, como tinha Frederico.
O Caps pode ser lido como um portal da paisagem exterior impressa no romance. Não há nada mais deste mundo, nada mais ligado às coisas concretas de dor, deslocamento, abandono e esquecimento, pelo lado de certas famílias, do que o Caps, mas, que também é ligado ao afeto e à atenção, pelo menos no cerne de seu projeto, instalado no SUS como espaço de acolhimento físico e emocional dos que sofrem transtorno psíquico.
Por outro lado, não há nada mais atado ao nada, flutuando sobre o abismo da loucura, esfera onde se pisa de tábua em tábua, vendo-as (ou ignorando seus rastros) se desfazerem logo que ficam para trás (“atrás de ti, o vazio”) do que o Caps, essa entidade cuja proposta (muitas vezes ignorada ou negligenciada) é a de ser (veja que paradoxo) uma “democracia ontológica” (atualmente, o Caps vem sendo vítima de políticas nefastas e mentalidades fascistas, mas isso já é outro assunto).
Kazuo era como Frederico, mas não frequentava o Caps, nem para amparar o outro, como fazia nosso candidato a pastor da recusa. Era físico, e trabalhou por mais de 20 anos numa empresa transnacional. Soube lidar melhor que Frederico com a inadequação para o mundo.
Ao ler Ser e Tempo, de Heidegger, Kazuo foi se despindo da máscara “do animal racional que tanto o esmagava para tornar-se mero portal da iluminação”. Mas só aos 48 anos, se aposentou e se retirou num sítio, nos arredores de Campos do Jordão. Mesmo com toda essa guarida existencial, nada impediu que Kazuo tivesse um fim igual ao de Lourival.
“Tudo estava vazio”
Esses personagens deslocados do livro de Pessanha, e seus movimentos, oferecem uma série de críticas psicossociais, mas também uma crítica à impossibilidade do mundo como lugar social, seguindo no ritmo frenético da técnica, adormecendo tudo quanto é humano, esquecendo tudo quanto é diferente, matando inclusive a sensibilidade, a arte, as propostas estéticas e a própria filosofia (só servindo mesmo como objeto de porta-luvas).
O que sobra no espaço da cultura são os medidores da vida para rotulá-la e encaixotá-la segundo definições tecnocientíficas. E é o que há. Por isso, o livro mostra a dificuldade de certas pessoas se colocarem no mundo. Frederico é uma dessas pessoas, ele as representa.
Na verdade, Frederico representa as pessoas que se constituem psiquicamente com esse estranhamento do mundo, como se estivessem do outro lado do véu da realidade, em cujo tecido existencial as representações cotidianas não grudam, mas que conseguem enxergar o mundo, e podem, com esforço, pisar o pé nesse chão, uma espécie de louco de juízo, que vive sua loucura com método, para repetir aqui o chavão hamletiano.
Por ser louco de juízo, Frederico entendeu que é impossível viver no não lugar. Seria necessário encontrar um jeito de se encaixar nessa esfera estranha. E aí, dos píncaros, ele começa a descer. A trama, para ser sincero, é sobre essa queda, mas a polissemia da narrativa vai desfiando sentidos filosóficos e psicanalíticos, e o leitor precisa se agarrar a algum lugar da maçaroca.
E o lugar a que este leitor se agarra é aqui: quando o dinheiro da herança acabou, Frederico começou a sentir a água batendo na bunda, sabia que tinha de encontrar um jeito de viver no mundo do aqui, tinha de superar o ser-aí, que flutuava nas alturas. Estava envelhecendo, já tinha mais de 50 anos. Era um mestre sem seguidores, sem dinheiro e sem chão. “Vivera na mania profética e agora tudo estava vazio.” Descobriu-se incompetente para o mundo. Quis matar o guru.
“De nada vale uma singularidade se não há um mundo para ela.” “De nada adianta ter talentos de ceramista num planeta sem barro.” “De nada vale uma vocação se não há para ela um exercício correspondente.”
E o resto é impotência
Depois de passar 18 anos sob o patrocínio psicológico de um guru-terapeuta, Frederico recusou o não lugar e começou a encarar as dores do mundo. Mas ao recusar o não lugar não soube como viver no mundo. Ponderou que talvez tenha demorado demais para se desgarrar da necessária tutoria do guru, já que havia nascido para fora e não conseguia se ligar aos elementos representativos da vida mundana.
Aquela ajuda do guru era necessária para que ele entendesse sua condição de extramundano. Mas se estragou para o mundo, ao ficar tanto tempo morgando no vácuo do abismo. Era preciso ter recursos materiais para viver daquele jeito.
Seus exemplos de singularidade tinham condições materiais próprias. Nissa era rico; Kazuo era aposentado, “só se abriu para o grande clarão, para a manifestação da coisa como uma dádiva do oculto, quando já tinha o pé-de-meia garantido”.
E aí, Frederico foi ser motorista de táxi. Virou taxista (com uma foto de Dilthey no porta-luvas; mais tarde um livro do mesmo filósofo sobre Goethe seria guardado ali também) para pagar as contas. Dividia o táxi com o cunhado. Depois virou Über (quando o cunhado trocou o táxi por um guincho, que dava mais dinheiro).
A queda continuou. Foi adoecendo, colocou um stent. A narrativa faz uma associação interessante entre movimento geográfico, trânsito social e movimento psíquico. Frederico era da classe média alta, morava no Morumbi. À medida que foi caindo fisicamente, foi caindo financeiramente, e psiquicamente foi descendo do pedestal “sufista” para encarar a realidade mundana.
Há aí uma crítica social reveladora da hipocrisia humana. O dinheiro sustentava a imponência ético-estética de Frederico. Quando acabou o dinheiro, e ele teve de se sustentar, restou apenas a impotência. Ficou mais ou menos no mesmo patamar de um simples deslocado no mundo, como seus dois únicos seguidores, usuários do Caps (moradores da periferia).
Nessa tentativa de se ajustar, de “ler-se pelo mundo e colorir-se com suas cores”, de se tornar um dos “camaleões coloridos com as cores do aqui”, ele conheceu Verônica, que vinha da periferia, estava em ascensão (fazia doutorado e trabalhava como ghost writer), e se casou com ela. Os dois foram morar no centro, e ele foi trabalhar como taxista, dando palestras sobre Hannah Arendt e Peter Sloterdijk (suas tábuas de salvação intelectual e psíquica).
Mas, enquanto Verônica subia, Frederico continuava caindo, chegou mal aos 60 anos, foi ficando brocha, e dava pouca atenção afetiva para a mulher, preferindo viajar para ver palestras de autores de sua predileção, como o escritor Renato Rezende.
Resultado: ela o abandonou, deixando uma carta que enumerava os problemas dele e que dizia “eu sempre soube que não podia esperar muito de alguém que passou mais de dez anos estudando o Ser e Tempo do Heidegger”.
Narcisismo transcendental
Juliano Garcia Pessanha é um escritor premiado e muito conhecido na cena literária paulistana. Tem graduação e doutorado em filosofia pela USP, com um mestrado no meio do caminho em psicologia clínica pela PUC-SP. É autor de outros livros como a tetralogia de gêneros cruzados entre ficção, poema e ensaio filosófico, Sabedoria do Nunca (1999), Ignorância do Sempre (2000), Certeza do Agora e Instabilidade Perpétua (2009).
Sua escrita é comparada a de Clarice Lispector, pela capacidade de “ler as entranhas” e de entrar no universo sombrio da existência humana, com suas dores e espantos, num ambiente que flerta com os desajustes psíquicos, a loucura, e ao mesmo tempo estabelece um diálogo com a filosofia e os refinados procedimentos poéticos da modernidade e da contemporaneidade, como a autoficção.
No terço final de O Filósofo no Porta-Luvas, por exemplo, a narrativa dá uma guinada para o cinismo. Sem mudar o ritmo, a narrativa torna-se ao mesmo tempo cínica e narcisista, inclusive com o surgimento de uma cachorrinha que passa a fazer parte da vida de Frederico.
Ou talvez seja melhor dizer que, com essa guinada, a narrativa oferece um efeito dramático criado cinicamente com citação autofictícia, com o objetivo de fazer rir, expondo a fratura do “narcisismo transcendental da escrita de si”, como diz Juliano Garcia Pessanha, personagem que aparece numa conversa com Frederico (praticamente um duplo, ou um trístico, se levarmos em conta a figura real do autor), enquanto este lhe dava uma carona do Rio de Janeiro até Penedo.
A presença de um personagem chamado Juliano Garcia Pessanha na trama é irônica pelo papel desempenhado, mas também é poética, pelas palavras que ele profere numa conferência, ressoando coisas já ditas pelo autor verdadeiro, criando uma espécie de looping, em que tudo vai e volta, girando tanto na existência fictícia como na real, como o próprio mundo, e a cabeça da gente, que não param de dar voltas.
O Filósofo no Porta-Luvas é um bom livro. Sustenta o projeto do autor de expor certos elementos da condição humana, que são, ao mesmo tempo, dramáticos e poéticos. Ele refaz, de outra perspectiva, com outra pegada semântica, o que já havia sido dito em Recusa do Não-Lugar. Mas não há nada que o desabone, nem mesmo o fato de Pessanha tê-lo escrito em quatro meses, segundo o próprio autor.
Título: O Filósofo no Porta-Luvas
Autor: Juliano Garcia Pessanha
Editora: Todavia
Páginas: 96
Muito bom o texto. Deu vontade ler.o livro.