Certamente para o filósofo marxista Alain Badiou. No seu livro São Paulo/a fundação do universalismo (Boitempo Editorial, 2009), ele revela que não é o único. Também o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini pensava assim. Tanto que deixou um roteiro detalhado, traduzido para o francês pelas edições Flammarion. O filme não foi rodado por aquele que estava no cerne da questão sobre o cruzamento do cristianismo com o comunismo. Pasolini estava implicado nisso até por seus dois prenomes na via do significante. O objetivo de Pasolini era fazer um filme sobre São Paulo transposto para o mundo atual. Paulo seria um contemporâneo sem modificar em nada os seus enunciados.
Não se trata de convencer o espectador de que Paulo estaria entre nós em sua existência física, esclarece Badiou. Não é à nossa sociedade que Paulo se dirige, não é por nós que chora, que ameaça e perdoa, agride e abraça com ternura. “Ele queria dizer: Paulo é nosso contemporâneo fictício porque o conteúdo universal de sua pregação, inclusive obstáculos e derrotas, ainda é absolutamente real.” Badiou sustenta que Pasolini roteirizou um Paulo que desejou “destruir de maneira revolucionária um modelo de sociedade baseado na desigualdade social, no imperialismo e na escravidão. Existe nele o santo querer da destruição.”
Badiou diz que no filme planejado Paulo fracassa “e esse fracasso é mais interno do que público”, mas ele “pronuncia a verdade do mundo, e o faz sem que seja necessário mudar nada, nos mesmos termos em que falou há quase dois mil anos.” A prosa de Paulo seria universal, atemporal e ao mesmo tempo contemporânea, pela negação de particularidades que, como a política de gêneros, de fixação de identidades, por mais que seja necessária num primeiro tempo revolucionário, abre mão do universal rapidamente traduzido como masculino, na luta pela emancipação das mulheres, por exemplo, com base exclusiva na afirmação das diferenças. Paulo diz que a ressurreição de Cristo é o que importa. E que todos serão salvos não pelas obras, nem pelas leis, mas pela graça divina, independentemente de serem homens, mulheres, gregos ou judeus. E a afirmação vigorosa desse militante da verdade resultante do acontecimento-Cristo produziu e ainda produz uma série de consequências
Badiou reconhece que seu procedimento é estranho. Afinal, ele, Badiou, é ou pelo menos se declara ateu, “hereditariamente ateu” pela linhagem paterna. Está procurando uma nova figura militante para suceder aquela que foi representada por Lenin e os bolcheviques no início do século XX. A figura de militante de partido. Declara que não é o primeiro a arriscar uma comparação que faz de Paulo um Lenin, do qual o Cristo teria sido o Marx equívoco. Não pretende ser historiador, nem exegeta, ao enfatizar que sua experiência é subjetiva de início ao fim. “Na realidade, Paulo não é, para mim, um apóstolo ou um santo”, diz. “Eu não tenho a menor necessidade da Nova que ele declara ou do culto que lhe foi consagrado. Mas ele é uma figura subjetiva de importância fundamental.”
Para Badiou, Paulo é um militante da verdade resultante do acontecimento-Cristo. Resta saber em que consiste sua ideia de acontecimento ou evento. Não se trata de ser, nem de não ser, mas de algo de impossível nomeação. Mas nada de transcendência, nada de sagrado. A obra de Paulo será apreciada como qualquer outra que tenha pessoalmente tocado Badiou. Impressionado pela poética dos textos, Badiou reitera que Paulo é um pensador-poeta do acontecimento. Aquele que pratica e enuncia atos constantes, característicos do que se pode denominar a figura militante. “Ele faz surgir a conexão, integralmente humana e cujo destino me fascina, entre a ideia geral de uma ruptura, de uma virada, e a de um pensamento prático, que é a materialidade subjetiva dessa ruptura.”
Por que São Paulo? Por que requerer esse apóstolo autoproclamado cujo nome está associado a instituições menos abertas do cristianismo: a Igreja, a disciplina moral, o conservadorismo social, a desconfiança em relação aos judeus?
Badiou deixa claro: trata-se de uma fábula que reduz o cristianismo a um único enunciado: Jesus ressuscitou. O filósofo considera impossível acreditar na ressurreição do crucificado. É o ponto fabuloso de um poderoso imaginário que lhe interessa. É o momento em que a língua entra num impasse: o acontecimento.
Pasolini tentou. O roteiro de seu filme é assim resumido por Badiou com base numa tripla tese: “1. Paulo é nosso contemporâneo porque o acaso fulgurante, o acontecimento, o simples encontro estão sempre na origem de uma santidade. Ora, a figura do santo atualmente nos é necessária, mesmo que os conteúdos do encontro instituinte possam variar. 2. Se transportamos Paulo e todos os seus enunciados para nosso século, veremos que, na verdade, eles encontram uma sociedade real tão criminosa e corrompida quanto a do Império Romano, mas infinitamente mais resistente e flexível. 3. Os enunciados de Paulo são atemporalmente legítimos.”
“Roma é Nova York, capital do imperialismo norte-americano”, prossegue Badiou. “O centro cultural que é Jerusalém ocupada pelos romanos, centro também do conformismo intelectual, é Paris sob a ocupação alemã. A pequena comunidade cristã balbuciante é representada pelos membros da Resistência, enquanto os fariseus são os partidários de Pétain.
Paulo é um francês, originário da burguesia, colaborador, que persegue os resistentes. Damasco é a Barcelona da Espanha de Franco. O fascista Paulo segue em missão junto a franquistas. No caminho para Barcelona, enquanto atravessava o sudoeste da França, ele tem uma iluminação. Passa para o campo antifascista e resistente.
Em seguida, continua seu périplo para pregar a resistência, na Itália, na Espanha e na Alemanha. Atenas, aquela dos sofistas que se recusaram a ouvir Paulo, é representada pela Roma contemporânea, pelos pequenos intelectuais e críticos italianos, detestados por Pasolini. Finalmente, Paulo vai a Nova York, onde é traído, preso e executado em condições sórdidas.
Nesse itinerário, o aspecto central torna-se progressivamente o da traição, cujo resultado é que o que Paulo cria (a Igreja, a Organização, o Partido) volta-se contra sua própria santidade interna. Pasolini baseia-se, aqui, numa grande tradição (nós a esclareceremos) que vê, em Paulo, mais o infatigável criador da Igreja do que um teórico do acontecimento cristão. Um homem de aparelho, em suma, um militante da III Internacional. Para Pasolini, meditando por meio de Paulo sobre o comunismo, o Partido, pelas exigências fechadas da militância, inverte aos poucos a santidade, transformando-a em sacerdócio. Como a autêntica santidade (que Pasolini reconhece absolutamente em Paulo) pode suportar a prova de uma história fugidia e monumental ao mesmo tempo em que ela é uma exceção e não uma operação? Ela só o consegue endurecendo-se, tornando-se autoritária e organizada. Mas esse enrijecimento, que deve preservá-la de qualquer corrupção pela história, mostra-se ele mesmo uma corrupção essencial, a do santo pelo padre. É o movimento, quase necessário, de uma traição interna. E essa traição interna é captada por uma traição externa, de modo que Paulo é denunciado.
O traidor é São Lucas, apresentado como agente do Diabo, que escreve os Atos dos Apóstolos num estilo melífluo e enfático visando anular a santidade. Essa é a interpretação dos Atos feita por Pasolini: trata-se de escrever a vida de Paulo como se, sempre, ele tivesse sido apenas um padre. Os Atos, e de certo modo mais geral a imagem oficial de Paulo, mostram-nos o santo ocultado pelo padre. Trata-se de uma falsificação, pois Paulo é um santo. Mas o filme nos leva a compreender a verdade dessa impostura: em Paulo, a dialética imanente da santidade e da atualidade constrói uma figura subjetiva do padre. Paulo morre também do que obscureceu sua santidade.
Uma santidade mergulhada em uma atualidade como aquela do Império Romano, ou também como a do capitalismo contemporâneo, somente pode ser protegida criando, com toda a rigidez necessária, uma Igreja. Mas essa Igreja transforma a santidade em sacerdócio.
Em tudo isso, o mais surpreendente é que os textos de Paulo, tais como eles são, inserem-se com uma naturalidade quase incompreensível nas situações em que Pasolini os expõe: a guerra, o fascismo, o capitalismo norte-americano, as pequenas discussões da intelligentsia italiana… Dessa experimentação artística do valor universal, tanto do núcleo de seu pensamento quanto da atemporalidade de sua prosa, Paulo sai, por incrível que pareça, vitorioso.”
Só a santidade venceria o capitalismo, ensinou Lacan, para quem seria vão simplesmente denunciá-lo: o resultado costumeiro é que o capitalismo sai fortalecido. Ou será que o capitalismo implodiria por si mesmo dada sua altíssima velocidade? Essa também seria uma alternativa, segundo Lacan.
Há um real na política que escapa sempre a qualquer tentativa de simbolização. Reino da paranoia? Limite da loucura humana no anseio de liberdade? Conformismo alimentado pela gestão neoliberal do nosso sofrimento psíquico? Produção ininterrupta de medo e melancolia? Em que medida o termo “polética” não passa de um puro nome? Agora, a direita – acompanhando a esquerda numa lógica especular – começa a dizer que a mente do esquerdista revela uma “doença”: o gosto pelo fracasso, a obstinação pela derrota, a recusa de aceitar que as coisas são assim porque são assim e que nunca mudarão. Ideologia pura, mais uma. Mas não para São Paulo no que se refere a um pequeno detalhe: a ressurreição de Cristo é uma vitória sobre a morte, não mais um destino e sim uma escolha. Badiou sustenta que “para Paulo, existe certamente a cruz, mas não existe a subida ao calvário. Enérgica e imperativa, a pregação de Paulo não inclui a menor propaganda masoquista por meio das virtudes do sofrimento, nenhum pathos da coroa de espinhos, do flagelo, do sangue que exsuda ou da esponja embebida de fel.” Deus é poder, força, amor universal que só vale se for para todos. Eis o acontecimento.