O filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952) é considerado um dos nomes mais importantes da área de educação nos Estados Unidos no século XX, tendo exercido uma grande influência não só em educadores e pesquisadores em seu país, mas em nível mundial com sua proposta de uma educação progressista, que levasse em conta as experiências e os interesses dos alunos. O educador, pedagogo e filósofo brasileiro Paulo Freire (1921-1997), por sua vez, também deixou um legado que extrapolou as fronteiras nacionais, sendo reconhecido mundialmente ao propor seu método de alfabetização de adultos, por meio de um processo de ensino-aprendizagem dialógico, problematizador, crítico e democrático.
Na concepção de Dewey, a escola pode exercer um papel fundamental na transformação da vida social, uma vez que “a vida democrática depende de uma educação que desenvolva o hábito do pensamento reflexivo sobre os problemas da experiência”. Já para Paulo Freire, a educação também pode contribuir para a democratização da vida social e das instituições políticas, na medida em que incentiva o exercício da reflexão crítica, do diálogo e das atividades em grupo, de maneira a criar uma cultura de deliberação coletiva e participação cidadã. Dessa maneira, tanto Dewey e Freire vislumbraram um processo de ensino-aprendizagem democrático e emancipador, que fomente o pensamento crítico.
Conforme Schmidt (2009), John Dewey concebia a educação como um processo de “aprender fazendo”, combinando a teoria com a prática e incentivando as crianças a usarem a imaginação. Para Dewey, ainda segundo Schmidt (2009), a democracia não é apenas uma forma de governo, mas diz respeito à experiência conjunta da vida em sociedade. Assim, uma educação democrática, na visão de Dewey, conforme as palavras de Schmidt, “deve adotar um tipo de educação que propicie aos indivíduos um interesse pessoal nas relações e direção sociais e hábitos de espírito que permitam mudanças sociais sem ocasionar desordens”.
Por seu turno, Paulo Freire compreende a educação como um permanente processo de busca, em que o ser humano continuamente faz e refaz seu saber. Sendo assim, a educação não pode ser dissociada das condições sócio-históricas do ser humano e do seu potencial para transformar a realidade. No que diz respeito à democracia, Freire, em sintonia com Dewey, também a concebe como uma forma de vida social, em constante construção. Uma educação democrática, na visão freireana, portanto, requer, conforme explicita Muraro (2012), o “desenvolvimento da capacidade de se comunicar e resolver os problemas sociais, com a participação ativa e livre na vida democrática”. A seguir, propomos uma breve análise das obras Democracia e educação, de John Dewey, e Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, para mostrar a correspondência do ideal de uma educação democrática e emancipadora no pensamento de ambos, tendo como foco o incentivo ao pensamento crítico.
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Nas páginas iniciais de Democracia e educação, livro publicado originalmente em 1916, John Dewey escreve que “a necessidade de ensinar e aprender para garantir a continuidade da existência da sociedade requer uma concepção de educação que vá além da noção formal e escolástica da educação”. Para ele, a ideia de sociedade não pode ser dissociada da ideia de transmissão e de comunicação, e a própria manutenção da vida social depende do processo de ensino e aprendizagem. Dewey enfatiza esse aspecto da vida social não porque defende que é função da educação “moldar” as crianças para a vida em sociedade – o que deixaria pouco espaço para a liberdade individual –, mas porque, segundo ele, o próprio viver em conjunto é educativo.
As sociedades ditas primitivas são um exemplo claro desse processo educativo proporcionado pelo ambiente social, em que a educação dos jovens ocorre na convivência com os adultos, na qual os primeiros irão aos poucos aprendendo a executar as tarefas realizadas pelos segundos. À medida que a sociedade foi ficando mais complexa, houve a necessidade de criar espaços específicos – as escolas – e instituir profissionais especializados – os professores – para se encarregar da tarefa de educar crianças e jovens. O problema com o advento da educação formal, aponta Dewey, foi a instalação de um abismo entre a experiência mais direta entre adultos, jovens e crianças no cotidiano da vida social – experiência que nunca deixa de ter um caráter formativo – e o aprendizado adquirido nos espaços destinados especificamente para tal, as escolas. Estas ganharam um caráter por demais livresco, distante da vida prática, das exigências da vida social.
A preocupação de Dewey com uma educação democrática passa, então, por aproximar a escola da comunidade. Um primeiro passo é que a escola reflita a pluralidade e a diversidade existente na sociedade. “A mistura na escola de jovens de diferentes raças, diferentes religiões e diferentes costumes cria para todos um ambiente novo e alargado. Objetivos em comum que unem esses diferentes grupos encaminham-nos a um horizonte mais largo”, afirma o autor.
Conforme Dewey, nos vários ambientes que crianças e jovens circulam – na família, na igreja, na vizinhança onde moram etc. – prevalecem diferentes códigos que os sujeitam a pressões por vezes antagônicas, por implicarem padrões diversos de comportamento e de julgamento. Cabe à escola, neste contexto, exercer um papel integrador e estabilizante, com relação às diversas influências sociais às quais os educandos estão expostos. E também criar um ambiente mais ampliado e equilibrado do que esses outros espaços onde os educandos circulam, os quais, se contribuem para a sua formação, por um lado, também podem ajudar a reforçar preconceitos e uma visão mais estreita do mundo, por outro.
No que tange ao processo educacional em si, Dewey propugna uma concepção da educação como um fim em si mesmo, no sentido de que o processo educacional deve ser visto como um movimento contínuo de crescimento e desenvolvimento, como a própria vida. E a condição primária para o crescimento é o que Dewey chama de “imaturidade”. Sob essa perspectiva, ser “imaturo” não é um defeito, algo que deve ser visto como um vazio ou uma ausência a ser preenchida por alguém de fora que detenha um saber e, por consequência, a autoridade. “Imaturidade” é pensada por ele como uma força positiva, como potência, como possibilidade de crescimento.
Se a educação é vista por Dewey como um processo contínuo e um fim em si mesmo, em consequência, ele não poupa críticas à ideia de educação como um processo de preparação, no qual o que está sendo “preparado” são as responsabilidades e os privilégios da vida adulta. Dentro dessa visão da educação “como preparação”, as “crianças não são vistas como membros sociais em sua integralidade, são vistas como candidatas a essa posição, como se estivessem na lista de espera. Essa visão implica uma perda de ímpeto, porque as crianças vivem no presente”, afirma Dewey, ressaltando que um futuro que é considerado apenas como futuro “carece de urgência e de materialidade”. Além do mais, a concepção de educação como preparação para um determinado fim perde de vista a ideia do desenvolvimento como um movimento contínuo, no qual cada etapa tem de ser valorizada por si mesma.
Em outras palavras, a grande preocupação de Dewey é com o prevalecimento de uma pedagogia que não encare as crianças como sujeitos que têm interesses e aspirações particulares, como se elas fossem objetos destituídos de vontade própria. O autor também propugna por um método educativo que trate a educação não como mero armazenamento de informação e conhecimento, “mas como a formação das capacidades pessoais de observação, atenção, memorização e generalização”.
Para o pensador, a democracia é muito mais do que uma forma de governo. É, acima de tudo, “um modo de vida associada, de experiência comunicada conjuntamente”. Nessa perspectiva, uma educação democrática implica o compartilhamento de experiências entre mestres e alunos, em um ambiente de mútua cooperação no qual cabe aos professores “associar os interesses dos alunos de modo a assegurar o desenvolvimento intelectual com as experiências educativas”, conforme apontam Teitelbaum e Apple.
No capítulo introdutório do seu livro Pedagogia do oprimido, cuja primeira edição foi lançada em 1968, Paulo Freire classifica essa nova concepção pedagógica focada nos oprimidos que propõe, a qual ele elaborou enquanto trabalhava em projetos voltados para a alfabetização de adultos, como uma “pedagogia humanista e libertadora”. E a sua concretização passa por dois momentos distintos. No primeiro, os oprimidos, por meio do processo educativo, tomam consciência da opressão de que são vítimas e se engajam numa ação transformadora; o segundo momento ocorre quando a realidade antes opressora já foi transformada, e a pedagogia “deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”.
O êxito dessa nova pedagogia proposta por Freire requer uma profunda transformação na relação entre educador e educandos. Como Dewey, Freire é extremamente crítico da educação tradicional, que se apoia na narração de conteúdos petrificados e distanciados da realidade concreta e trata os educandos como “objetos pacientes”. Esse tipo de educação “narradora” apenas conduz os educandos a memorizar mecanicamente o conteúdo daquilo que foi narrado, sem que esse conteúdo ganhe para eles algum significado que tenha impacto em suas vidas. Por seu turno, o educador se põe no papel do único sujeito desse processo, daquele que narra para ouvintes tratados como “vasilhas”, que vão sendo preenchidas com os conteúdos despejados pelo mestre. “Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será”, afirma Freire.
A educação, sob esse prisma tradicional, torna-se então um mero ato de depositar, “em que os educandos são os depositários e o educador, o depositante”. Surge dessa constatação a famosa expressão formulada pelo pensador, a “educação bancária”, para designar esse tipo de educação centrado apenas na memorização de conteúdos, em que o educador se alça a um pedestal, como o único detentor do saber e que segue um rígido conteúdo programático, sem levar em conta a experiência real dos educandos e a realidade que os cerca e sem se esforçar em estabelecer um diálogo com os alunos.
À prática da educação bancária, Paulo Freire contrapõe a educação problematizadora. Enquanto a primeira tem um afeito anestesiante sobre os educandos, inibindo qualquer iniciativa por parte deles e seu potencial criativo, a segunda leva-os a um constante desvelamento da realidade que os cerca, resultando na inserção crítica deles no mundo real. “Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. […] Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo”, escreve o autor.
Ao passo que a “educação bancária” concebe os seres humanos como a-históricos, porque se assenta num saber congelado no tempo e desconectado da realidade, a problematizadora tem como ponto de partida o “caráter histórico e a historicidade (dos) homens”. Por reconhecer isso, conduz a uma desmitificação da realidade, levando os homens a se conscientizar que as estruturas sociais e econômicas não são “naturais”, ou parte de uma ordem imutável, mas uma construção histórica e cultural dos homens, sendo sempre sujeitas, portanto, a transformações.
Essa educação problematizadora, dialógica, idealizada por Paulo Freire, deve servir de impulso para conduzir à práxis. Conforme conceitua Freire, a práxis compreende a ação e a reflexão, sempre com um propósito de transformação. Sob essa ótica, por um lado, Freire condena o discurso separado da ação, o qual se converte em mero “verbalismo, blá-blá-blá” e acaba por sacrificar a reflexão, já que esta implica um voltar-se para a realidade. Por outro lado, também critica a ação que se dissocia do discurso – e, mais uma vez, da reflexão –, uma vez que a ação que sacrifica a reflexão, o discurso, reduz-se a um simples ativismo, perdendo sua dimensão transformadora.
Diante dessa proposta de uma educação dialógica e problematizadora pensada por Freire, qual seria o papel do professor em sua “pedagogia do oprimido”? Na perspectiva do pensador e educador, essa educação dialógica não se faz de A para B ou de A sobre B – ou seja, colocando educador e educandos em campos antagônicos, em que o primeiro só ensina e o segundo, em tese, apenas aprende. Ela se concretiza por meio da cooperação mútua de A com B, mediatizados pelo mundo. “Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.” Em outras palavras, o professor não só ensina, mas também aprende com seus alunos.
Assim, em termos dialéticos, a contradição entre educador e educandos, situados em polos opostos e antitéticos pela “educação bancária”, seria superada com a síntese “educador-educando com educando-educador”. Dessa forma, o educador, no processo de ensino-aprendizagem, também se educaria na convivência com os alunos, enquanto estes, ao mesmo tempo em que são educados, também educam o seu professor. Segundo Freire, por essa nova concepção pedagógica, educador e educandos tornam-se sujeitos de um processo educativo em que já não têm mais validade os “argumentos da autoridade”, na medida em que se desenvolvem e se aprimoram em comunhão. Dessa maneira, na proporção em que educador e educandos ampliam seus horizontes e passam a perceber a realidade de uma forma diferente, eles têm condições de levar a cabo juntos exatamente a práxis antes mencionada, a ação associada ao discurso e à reflexão que leva a uma transformação dos sujeitos e do mundo concreto em que vivem.
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John Dewey publicou sua obra Democracia e educação na segunda década do século XX, preocupado com a realidade da educação das crianças nos Estados Unidos. Paulo Freire, por sua vez, escreveu seu livro mais famoso, Pedagogia do oprimido, com sua atenção primordialmente voltada para a alfabetização de adultos, no cenário latino-americano e brasileiro, em particular, marcado ainda por disputas políticas que resultaram em golpes militares e supressão da liberdade em vários países do continente, o Brasil incluído. No entanto, apesar dos contextos diferentes em que viveram, Dewey e Freire se aproximam pela defesa que fazem de um processo de ensino-aprendizagem que estimule o pensamento crítico, não se resumindo à decoração mecânica dos conteúdos repassados pelo professor.
Para John Dewey, a escola deveria ser um local de experiências, de descobertas, em um empreendimento compartilhado entre alunos e professores, resultando em um processo de ensino-aprendizagem mais ativo e participativo. Já Paulo Freire elaborou e colocou em prática um método revolucionário de educação, por meio do qual os educandos, tomando consciência da sua realidade e da sua condição de oprimidos, teriam condições de se tornar sujeitos da transformação da sua realidade social.
O método pedagógico de Dewey parte da experiência real dos alunos, instigando-os a solucionar problemas a partir de situações concretas, para desenvolver a capacidade de raciocínio e o espírito críticos dos educandos. Dewey pensava a educação como um elemento fundamental para o aperfeiçoamento das relações sociais, não no sentido de moldar os indivíduos às exigências da sociedade, mas de permitir uma convivência plural e democrática. Paulo Freire, por sua vez, concebe a educação acima de tudo como libertação, daí sua ênfase em um método de educação popular que promova uma conscientização política dos educandos, mas de forma horizontal, em que o educador sai da sua posição de único detentor do conhecimento e construa esse saber em conjunto com os educandos, em um processo em que ele também se educa. Em resumo, ambos os autores apresentam estreitas afinidades na forma de pensar a educação, realçando a sua dimensão emancipadora, crítica e libertadora.
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