[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
As primeiras introduções ao pensamento de Freud datam do início do século XX. Em sua grande maioria, elas foram feitas por importantes representantes da medicina alemã e privilegiaram o aspecto clínico, fundamentalmente terapêutico, da recente invenção freudiana. A primeira exposição formal da disciplina, feita pelo seu criador, data de 1910. Ela foi redigida a partir de uma série de conferências realizadas no ano anterior por Freud, nos Estados Unidos. Notamos que o aspecto teórico da psicanálise, e não apenas o técnico, será aqui explorado. Com a consolidação da Associação Internacional de Psicanálise e com a consequente expansão do movimento psicanalítico para além das fronteiras europeias, surge o primeiro manual introdutório de psicanálise, publicado em 1911 pelo médico vienense Eduard Hitschmann, A teoria das neuroses de Freud, que conta com comentários mais extensos sobre a aplicação das concepções psicanalíticas a outras disciplinas.
A partir daí, trabalhos de introdução à psicanálise em geral e a Freud em particular se multiplicaram. No Brasil, encontramos, desde muito cedo, publicações desse tipo, como a tese de Genserico Pinto, Da psicoanálise, apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1914, e o livro do médico paulista Francisco Franco da Rocha, O pansexualismo na doutrina de Freud, publicado em 1920.
No que diz respeito especificamente ao pensamento de Freud, será no interior do campo filosófico que encontraremos as leituras mais rigorosas e sistemáticas da obra do autor. Chamaríamos a atenção para duas obras em particular, ambas publicadas por filósofos de língua francesa. O primeiro, Roland Dalbiez, com o clássico O método psicanalítico e a doutrina freudiana, publicado em 1936; o segundo, Paul Ricoeur, com a obra Da interpretação, ensaio sobre Freud, de 1965. Essa tradição de leitura chegou no Brasil nos anos 1970, produzindo frutos a partir dos anos 1980 e 1990, principalmente. Um dos grandes nomes dessa recepção filosófica brasileira de Freud foi Luiz Roberto Monzani, que, em 1989, publicou o influente Freud, o movimento de um pensamento.
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Na esteira desse movimento, e integrando elementos metodológicos vindos de outros campos, em particular da história das ideias e das ciências, propomos uma introdução nova e original ao pensamento de Freud. Entendemos que uma introdução que se pretenda crítica e bem informada a Freud precisa levar em conta pelo menos três aspectos de seu pensamento. Em primeiro lugar, ela deverá incluir o estudo das teorias propostas pelo autor sobre o funcionamento psíquico; em segundo lugar, ela não poderá deixar de considerar o lugar ocupado pela clínica na elaboração dessas teorias; por fim, ela terá de manter em seu horizonte a articulação desse saber teórico-clínico com as ciências humanas e as ciências da cultura.
Uma introdução como esta será crítica na medida em que pretende abordar os textos de Freud de maneira “desinteressada”, isto é, tomando a devida distância das leituras e interpretações consagradas do autor. Ela deverá estar apta a reconhecer as articulações internas dos conceitos que compõem a obra, bem como suas ramificações externas cujos prolongamentos se situam muito além das fronteiras da “razão freudiana”. Em termos teóricos, basta não ignorarmos o fato de que Freud produziu sua obra no seio do movimento psicanalítico, estabelecendo um diálogo constante com outros autores e com a comunidade científica de seu tempo. Em termos clínicos, não podemos perder de vista que o pensamento de Freud é também uma técnica, um procedimento que busca agir sobre a realidade e que se pretende terapêutico. Nos termos da sua articulação com as ciências humanas, devemos reconhecer que, como saber teórico-clínico, a psicanálise freudiana constitui uma chave de leitura para a compreensão de fenômenos humanos, tanto em nível individual quanto em nível coletivo.
Essa mesma introdução será bem informada ao levar em conta três dimensões da obra freudiana. Primeiramente, o seu contexto intelectual, social e cultural de emergência; em segundo lugar, o movimento próprio dos textos freudianos; enfim, a atualidade de uma obra cujos destinos encontram eloquente expressão ao longo do século XX até os nossos dias.
No que diz respeito ao problema do contexto, estamos atentos tanto a questões de natureza editorial e institucional, buscando entender a circulação dos textos e das práticas em geral, quanto a questões de ordem mais abstrata, como o plano das ideias e dos costumes, buscando compreender a maneira como as concepções freudianas foram recebidas, assimiladas e difundidas. Relativo ao movimento do texto, estamos atentos às transformações pelas quais o pensamento de Freud passou ao longo de sua história, buscando explicá-lo como uma espécie de “vetor” resultante da ação de diferentes forças ou instâncias de determinação, internas e externas à obra. Quanto à sua atualidade, concentramos nossa atenção nos desdobramentos contemporâneos do pensamento de Freud, desdobramentos que, por vezes, encontram-se em continuidade, por vezes, em ruptura, por vezes, integrando novos elementos e ainda, por vezes, desfazendo-se de outros.
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Acreditamos que o mesmo raciocínio metodológico possa ser aplicado ao estudo de outros grandes autores da psicanálise, independentemente do período de sua produção ou da tradição de pensamento por ele representada. Comecemos por uma introdução a Freud.
Referências
FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. Obras completas, volume 9. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
HITSCHMANN, Eduard. Freud’s Neurosenlehre: nach ihrem gegenwärtigen Stande, zusammenfassend dargestellt. Leipzig und Wien: Franz Deuticke, 1911.
PINTO, Genserico. Da psicoanálise: a sexualidade nas nevroses. Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Modelo, 1914.
FRANCO DA ROCHA, Francisco. O pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo: Typographia Brasil de Rothschild Cia, 1920.
DALBIEZ, Roland. O método psicanalítico de Freud e a doutrina freudiana. Trad. José Leme Lopes. Rio de Janeiro: Agir, 1947.
RICOEUR, Paul. Da interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
MONZANI, Luiz Roberto. Freud: o movimento de um pensamento. 3. ed. Campinas: Unicamp, 2014.
[1] Professor do curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o segundo da terceira edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira o outro artigo publicado:
- Sobre a subjetividade contemporânea: uma perspectiva do romance e da filosofia, de Jonathan Postaue Marques e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/01/08/sobre-a-subjetividade-contemporanea-uma-perspectiva-do-romance-e-da-filosofia/