O assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, no dia 24 de janeiro, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi não somente mais um caso brutal de violência contra os jovens pobres e negros no país, mas também expôs um grave problema que tem se tornado cada vez mais uma situação concreta e visível no Brasil: o drama dos refugiados, que são obrigados a deixar seus países de origem, seja para fugir dos horrores da guerra, seja para escapar da fome e da miséria. Milhões de pessoas em todo o mundo encontram-se nessa condição desesperadora – uma tragédia humanitária já antevista pela filósofa Hannah Arendt, ainda na década de 1940.
Como bem observa Richard Bernstein, um dos mais destacados intérpretes da obra da filósofa judia alemã, em Por que ler Hannah Arendt Hoje? (Forense, 2021), Arendt foi uma das primeiras grandes pensadoras políticas a chamar a atenção para o fato de que “as sempre crescentes categorias e números de apátridas e refugiados seriam o grupo mais sintomático da política contemporânea”. Quando escreveu sobre a situação dos apátridas e refugiados, em artigos publicados na década de 1940, e também em seu livro Origens do totalitarismo, lançado em 1951, ela tinha em vista sobretudo os refugiados europeus, em particular os judeus que, como ela própria, tiveram de abandonar tudo para escapar da perseguição nazista. O fim da Segunda Guerra Mundial pouco contribuiu para modificar esse contexto, ao contrário, ao longo das décadas seguintes, os conflitos e as precárias condições de sobrevivência em países da África, do Leste Europeu, do Oriente Médio, da América Latina, entre outras regiões, multiplicaram o número de pessoas reduzidas a esse status, tornando-se um fenômeno global.
Em um artigo publicado originalmente no Menorah Journal, em janeiro de 1943, intitulado “Nós, refugiados”, Arendt, com base em sua própria experiência pessoal como apátrida, reflete sobre a situação dos refugiados. Ser um refugiado é viver a perda daquilo que nos é mais fundamental. “Perdemos nosso lar, o que significa a familiaridade de uma vida cotidiana. Perdemos nossa ocupação, o que significa a confiança de que temos alguma utilidade neste mundo. Perdemos nossa língua, o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos e expressão espontânea dos sentimentos”, escreve a filósofa.
Em suma, ser um refugiado é se ver privado de um lugar no mundo. Não coincidentemente, os milhões de imigrantes, acossados pela violência da guerra e a violência da miséria, que procuram acolhida em outros países são imediatamente tachados de “ilegais” – não são os seus atos ou suas palavras que podem ser alvo de alguma punição, como ocorre com aqueles que contam com as garantias da cidadania, mas a materialidade mesma dos seus corpos, o próprio fato de estar vivos, que se constitui como uma afronta aos ordenamentos legais. Eles são fora da lei não porque sejam criminosos, mas porque a lei não existe para eles, a não ser como forma de negação da sua presença muda, que implora por abrigo abrigo e proteção. É como se essas pessoas não tivessem o direito de existir.
Como afirma Bernstein, a verdadeira calamidade dos sem-direitos – segundo Arendt classifica os apátridas e refugiados –, maior até do que que a privação dos seus lares, é a situação de não pertencerem mais a qualquer comunidade.
Não mais estar vinculado a uma comunidade política, observa Arendt em Origens do totalitarismo, é como estar expulso da própria humanidade. A dignidade humana, a condição de sujeitos de direitos, só pode ser assegurada à medida que se é integrante de um corpo político que proteja e reconheça esses direitos. Por isso Arendt afirma que mais fundamental do que a noção abstrata de Direitos Humanos – que ela critica duramente em Origens do totalitarismo, uma vez que o ideal proclamado nas Declarações dos Direitos do Homem nas Revoluções Francesa e Americana se mostrou incapaz de dar guarida às massas de apátridas e refugiados nas Primeira e Segunda Guerras Mundiais – é a garantia do “direito a ter direitos”, ou seja, de poder pertencer a uma comunidade organizada onde os direitos são garantidos e protegidos.
Na medida em que esse direito primordial é negado, o perigo é que seja ultrapassada a tênue fronteira entre o direito a ter direitos e o direito à vida. Pois aqueles que foram expulsos da humanidade podem muito bem ser eliminados em nome de uma suposta proteção aos que ainda carregam o privilégio de serem considerados “humanos”.