Poderia ser o ciúme um sentimento “filosófico”? Para nós, habituados a que estamos a encarar os ciumentos com desprezo, considerando-os pessoas inseguras e infelizes, essa pergunta soa, no mínimo, despropositada. No entanto, em um estudo dedicado à obra-prima do escritor francês Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, o crítico italiano Pietro Citati faz essa curiosa associação entre ciúme e filosofia.
Ao analisar o comportamento de um dos personagens principais do romance, Charles Swann, que nutre um ciúme doentio pela amante, Odette de Crécy, Citati afirma que o ciúme pressupõe sempre um mistério, uma vasta zona desconhecida que desperta em quem é tomado por esse sentimento uma paixão pela verdade. Como o filósofo, o ciumento é movido pela sede de conhecimento, embora seu, digamos, objeto de investigação seja bem mais modesto e limitado: ele se restringe ao ser amado, em um esforço de perscrutar cada gesto seu, cada pequena ação rotineira, que, na sua aparente simplicidade, pode revelar um segredo.
O ciumento também pode ser comparado, segundo Citati, a um detetive. Ele estuda os fatos com atenção científica – separa-os, subdivide-os, compara-os, colhendo indícios que possam fortalecer as suas suposições. Tudo na sua perspectiva ganha um significado especial, desde um piscar de olhos até o papel esquecido sobre a mesa com uma anotação à primeira vista inocente.
De fato, é dessa forma que descreve Proust a respeito do comportamento de seu personagem Charles Swann, na sua obsessão por Odette. Em um trecho do romance, Proust escreve que a angústia de Swann em relação à amada era em parte aplacada pelo “prazer da inteligência” despertado nele pela curiosidade insaciável sobre a vida de Odette. Assim, o mesmo ímpeto investigativo que movera Swann outrora quando ele se dedicava a estudar a História – esforçando-se em decifrar textos antigos, comparar testemunhos, interpretar monumentos – era mobilizado naquele momento de sua intensa paixão por Odette para espionar pelas janelas, escutar através das portas, extrair informações de amigos e empregados, em busca de pistas que pudessem jogar luz sobre o cotidiano da amante que, aos seus olhos, lhe parecia como um dos mais desafiadores enigmas.
Todavia – pobre ciumento! –, se a descoberta da verdade é motivo de alegria e satisfação para o filósofo e para o detetive, para quem vive corroído pelo ciúme ela só aguça o seu sofrimento. Em Swann, as aparentes evidências que vão surgindo a respeito das traições de Odette e que parecem confirmar as suas suspeitas, embora satisfaçam o seu intelecto, lhe destroçam o coração. E quando o personagem finalmente constata que Odette era-lhe bem mais leal do que ele jamais poderia conceber, a paixão tão avassaladora que nutria por ela se evapora, como por encanto.
“Tudo aquilo que o ciumento faz se volta contra ele”, sentencia Citati.
O raciocínio de Citati sobre o ciúme, baseado no comportamento do personagem de Proust, não deixa de ser instigante, mas será que ele é inteiramente correto? Afinal, convenhamos, o ciumento não está propriamente atrás da verdade, mas da confirmação de suas hipóteses.
O que move Swann – e de quebra todos os grandes ciumentos da literatura, como Otelo e Bentinho, assim com os da vida real – é que eles já partem de uma premissa nem sempre verdadeira, a de que estão sendo traídos, e todas as atitudes da pessoa a quem eles dizem amar apenas confirmam sua hipótese inicial. É assim com o Otelo de Shakespeare, que vê nas mais cândidas palavras de Desdêmona a prova da perfídia dela. É assim com o Bentinho de Machado de Assis, para quem qualquer movimento de Capitu se lhe afigura como suspeito.
O lenço de Desdêmona, o olhar oblíquo de Capitu, o sorriso coquete de Odette de Crécy. Embora cada detalhe desperte no ciumento a sua desconfiança, e ele tenha o costume de se julgar muito perspicaz por duvidar de tudo e de todos, o que mais falta a quem se deixa dominar pelo ciúme é imaginação, no sentido kantiano de pensar levando em conta os pontos de vistas alheios, uma vez que não consegue conceber outras possibilidades além da rasa ficção que construiu para si mesmo. Movido por uma ideia fixa, o ciumento, no fim das contas, é um ser miserável e masoquista, que só se deleita ao lamber as próprias feridas.
Debruçar sobre Proust e seus personagens com o estudo do Cittati sobre o ciúme, daquilo q escapa e gera angústia, do q é mistério, da recusa à verdade já q é do outro q se trata……
questões filosóficas apetitosas!