Inventar o urbano. Tomar a vastidão do cerrado. Domar. Cerrar. Criar um plano, botá-lo em forma sólida. Concretizá-lo em estado de concreto. Fazer brotar cidade. Plantá-la no chão, semeando asfalto e cimento e ferro. O urbano, imensa fazenda de cimento.
Attilio, o primeiro com o título de urbanista nesta imensidão de múltiplas ruralidades: raridade. Tinha o dever de fincar França em estado de formas. O moderno nascido por decreto, desenhado em prancheta, fincado no espaço de supetão, desencontrado com a história, solavanco no tempo. A disruptura da paisagem em um salto radical. Atentar contra o tempo, impor o plano à revelia dos usos.
Foi contratado para copiar elementos da Cidade-Luz, único destino. E assim o fez. A violência em estado de espaço foi mimetizada como pressuposto. A reforma urbana nascida do zero, terra arrasada em estágio inicial, os herdeiros da cidade pós-Comuna no meio do país agrário. Tinha Attilio ideia que a cidade projetada se tornaria a cidade da luz azul, brilho que mata?
Mas nos meandros da prancheta o arquiteto tecia caminhos em largas avenidas. Encarregado de injetar o plano moderno, queria larguras, sem notar suas amarguras.
Noutro lado, em nuances do desenho vem alguma vontade alegre, antítese da norma urbana. Surge no canto da prancheta seu avesso. Armando prepara seu plano, lá nele, arma um vigoroso escape: becos!
Sabia Armando Godoy que entre becos estreitos surge passagem no tempo?
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Marco Antônio Dias Batista anda e escreve. Foge da Avenida 87, vai vielas adentro, passa pela Avenida 86. Marco menino, sua indignação não cabe nos becos. O céu de setembro é de um azul que anuncia 1987, mas a praça é do lado da Avenida 87, e o ano é 1968. Marco escolhe bancos entremeados entre quinas e vielas e deposita ali seus pequenos textos. Usa os espaços labirínticos em busca de interlocutores através do tempo. Finca seus escritos no espaço. Marco tão menino. O sobrenome Dias anunciava os poucos anos de sua vida ceifada à farda?
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Guilherme percorre um a um os becos, procura por passagens, cultiva pequenas permanências, escreve poesias, mira curicacas. Planta pequenos e delicados gestos de liberdade em meio às ruralidades urbanas. O ano é 2016. Guilherme procura se perder entre quinas e vielas, sabe que este pedaço da cidade é feito de vão. Salta por cima da Avenida 83, vai em caminhos estreitos, ruelas de terra, finca os pés descalços em uma pequenina praça: mato grande, quadra poliesportiva toda detonada. A especulação imobiliária vê o Setor Sul como um imenso condomínio fechado. Fala-se nas pamonharias e nos pit dogs que essas casas voltadas às praças são um erro, desvalorizam a propriedade. Guilherme mira nos becos caminhos para apropriações espaço-temporais.
É no banco do lado da quadra, no meio da praça, que Guilherme encontra, em perfeito estado, a primeira carta. Nela, Marco Antônio escreve sobre os caminhos que escolheu percorrer, rumar ao Norte, guerrilha adentro. Marco pergunta de seus e suas companheiras, pergunta do Brasil. A carta conscientemente busca interlocutores no futuro. Entre vielas, as linhas de Marco saltam no tempo.
Guilherme lê atento, atônito. Naquele quase fim de 2016, o nome de Marco Antônio podia facilmente ser encontrado em muros do Liceu, em banheiros do Cepae, em cânticos efervescentes dos secundas em avenidas tomadas.
Guilherme guarda com carinho e espanto a carta escrita por Marco em 1968. Não conta a ninguém do achado, desconfia da veracidade dos escritos, desacredita da autoria, da forma como o papel foi encontrado intacto, quase quatro décadas depois.
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Deitado em seu pequeno colchonete, em algum corredor do prédio da História, Guilherme escreve a Marco Antônio. Em meio aos sons de conversas animadas, risos, alegria e rebeldia, ele dorme e sonha com Marco Antônio.
A carta de Guilherme dá notícias do levante que tomou mais de mil escolas e universidades no país inteiro. As ocupações como verdadeiros laboratórios inventivos de formação e prática políticas horizontais. O profundo sentido que a escola tomou depois de ocupada: ocupação da pedagogia e pedagogia da ocupação. A luta contra os necroliberais que assaltaram o Estado num golpe sádico contra a primeira presidente mulher, contra a antiga companheira de militância de Marco.
No caminho de volta da UFG para casa, Guilherme escolhe percorrer as nuances e entremeios mais afunilados do Setor Sul. Os becos curtos alargavam ideias. Como de praxe deita um tantinho em algum banco, mato alto, ruelas de terra criam veredas, praças com muros grafitados, quadras desassistidas. Deposita ali, na boca daquele beco, pé do banco, a missiva destinada a Marco. Guilherme percebeu que aquelas vielas e becos ligavam temporalidades: um espaço, variados tempos.
Começava ali um diálogo posto em curso nas microespacialidades propostas por Armando. Espacialidades capazes de transpor tempos. O papel viajando becos adentro, história afora.
Quantas cartas foram só os becos, bancos e vielas sabem. Quais conteúdos, que diálogos? É possível imaginar.
A gente sabe, e ainda sente profundamente, que entre uma ida ao campus da UFG ocupada e sua casa, Guilherme nunca mais pôde voltar: nem aos becos e bancos, nem ao campus. Pouco antes de tudo que é escrito à mão ser proibido, os muros da cidade gritavam: Irish vive! O último muro que li “Irish vive!” foi o do Mutirama, perto do castelo colorido mágico, que hoje, nada mágico, é inteiro verde-oliva.
Quase uma década depois de perdermos Guilherme, eu sigo perambulando entre os muros e câmeras que cercam e vigiam o sofisticado e premiado condomínio fechado que tomou todo o Setor Sul. Em cima do portão, na entrada principal, o slogan: “O controle liberta” dá a tônica dos anseios transistóricos da classe média.
Jamais achei nenhum fragmento ou resquício das trocas entre Marco e Guilherme. Há quem diga que as grades dos condomínios tenham fechado não só o espaço das vielas, becos e praças, mas também do tempo.
Quase dez anos sem Guilherme. Pouco se pode dizer depois que as cartas escritas à mão foram proibidas na reforma desconstitucionalista que garantiu a manutenção do fim da democracia. As igrejas militarizadas e os quartéis evangelizados controlam todas as escolas. Mencionar Irish ou Marco certamente irá gerar uma visita à sacra sala de tortura divina, que foi instalada no pátio de todas as escolas de ensino fundamental e médio.
Se o Ministério dos Costumes descobre que eu enviei este texto para ser publicado cinco anos atrás, receberia punição exemplar, transmitida ao vivo no canal do Youtube do Tribunal Evangélico Militar.
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Em novembro de 1968, antes de partir para o Norte, Marco Antônio flana no labirinto de ruralidades urbanas do Setor Sul. Caminha lento, pensa rápido. Na boca daquele beco, encontra a última carta escrita por Guilherme em novembro de 2016. Quando foi brutalmente “desaparecido”, Marco tinha esta última carta no bolso. Marco sabia que em cada beco cabe uma porção de saltos descontínuos do tempo. Marco sabia já no AI-5 que a conciliação e o apaziguamento com um passado fardado e ensaguentado não nos levaria à democracia. Agora, aqui em meio à amnésia imposta à bala e a bíblia, nosso futuro depende de encontrar caminhos, entre becos e vielas, que nos permitam reinventar o futuro.
Excelente. Me deixou um pouco de nostagia e saudade dos nossos becos do Setor Sul
Um encontro de tempos diferentes entre os becos e histórias. Muito lindo!