“O único fato ao qual podemos nos ater é que a conservação do passado na vida psíquica é antes a regra do que uma exceção extraordinária.”
Sigmund Freud
Sob as ordens de Putin, a Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de fevereiro de 2022. Desde então, está mandando bala contra tudo que se mexe. O líder russo alega que precisa desnazificar o país invadido (cujo presidente, eleito pelo povo, é judeu) e fazer o Estado ucraniano desistir de compor os quadros da Otan, que sempre disse não ter interesse em aceitá-la.
Há, portanto, muitos outros interesses na cabeça de Putin, que ele jamais revelaria em público, cujas imagens volitam na escuridão.
Na cabeça do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, dá para desenhar alguma coisa: defender o povo dos ataques insanos do vizinho, e alimentar certa vaidade (névoa perigosa) por uma figura heroica sendo construída, que talvez o faça sentir a estranha e equivocada sensação de que, se morrer, morrerá como num palco.
Já na cabeça de Putin, o que se passa? Não dá para saber. Os psicanalistas devem ter pistas muito quentes, mas o jornalismo não tem interesse em pautas com os flanadores da alma, que poderiam ajudar a responder perguntas complexas.
Levando em conta a história da Rússia e as relações da cultura, da língua, das confissões de fé, das tradições, dos deslocamentos geoculturais com a Ucrânia e sua língua, a Ucrânia e sua história, sua cultura, suas tradições, levando em conta a constatação histórica de que Kiev já respirava urbanidade quando o sítio de Moscou ainda era selva, o que se passa na cabeça de Putin para invadir a Ucrânia?
Levando em conta os terríveis pogroms em território ucraniano depois da Revolução de Outubro, as mortes, os estupros, as perseguições, a fome, o que se passa na cabeça de Putin quando manda seus soldados invadirem a Ucrânia? Que engrenagens e sonhos se manifestam em sua mente?
Putin se move com toda sua realidade física, palpável, cheia de músculos e intenções, carregando um cérebro dentro do qual é difícil dizer o que há. Putin se move por entre símbolos e histórias, entre armas e maldades, componentes importantes do poder absoluto.
A terra parece gigante, e Putin, sobre ela, parece tão insignificante, como todos nós. Mas nem todo mundo, ou quase ninguém neste mundo, tem o poder de decidir a hora de apertar um botão fulcral para o destino humano. Putin tem.
Não sabemos o que Putin come, em que intervalos de tempo, se já passou frio, quem ele ama de verdade, que livros lê, que filmes vê, que sonhos ainda sonha, ou se há apenas pesadelos naquela cabecinha plutônica.
Será que pensa na Sibéria? Será que chora? Ou ri? Será que se importa com alguma coisa que russos muito mais inteligentes do que ele já pensaram e expressaram? Será que reage à inteligência apenas com venenos, tiros e grades? Será que pensa sobre a vida humana e seu conteúdo de afetos e esperança? Ou só pensa num jeito de aniquilar o outro?
Há aquele vídeo de Boris Iéltsin, que um dia fora chefe de Putin e seu padrinho político, telefonando para Putin e esperando na linha. Esperou na linha, com o auscultador pressionando a orelha, até sentir o ânimo cair e perceber a indiferença do outro lado numa voz que nunca chegaria.
Vou apelar para os que sabem mais. Na canção de Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto começa cantando assim: “Saiba: todo mundo foi neném/ Einstein, Freud e Platão também/ Hitler, Bush e Sadam Hussein/ Quem tem grana e quem não tem.”
Putin também foi criança, e uma criança pobre numa União Soviética cheia de si e de poder. Não sei se ele tinha Stálin como ídolo, mas sei que amava a KGB a ponto de só querer ser agente dela, e foi, foi mais do que isso, foi seu diretor.
Fico imaginando Putin criança, vivendo as aventuras e as fantasias de uma criança sem grana, vivendo a vida de uma criança pobre, com suas humilhaçõezinhas. Dizem que ele caçava ratos nas dependências do cortiço onde morava, em São Petersburgo, por diversão.
Uma vez matei um rato a pauladas, e fiquei com remorso. Putin deve ter matado vários, e talvez tenha sido assim que aprendeu a limar a consciência das consequências da morte sobre ela.
Talvez tenha sido matando ratos na infância que descobriu caminhos no lado obscuro da alma para matar pessoas como se matam ratos. Veja os corredores humanitários que ele permitiu, armadilhas que levavam os refugiados para o território inimigo, ou seja, para a própria Rússia.
Sobre cidadãos russos que criticam a guerra, ele disse que “os russos os cuspirão como um mosquito que acidentalmente voou em suas bocas”. Mas, quando diz “os russos”, Putin está se referindo a soldados obedientes a suas ordens (metonímia para aparelho do Estado), logo, está falando dele mesmo.
Neste caso, não há acidente nenhum. O que há são deliberações, e os mosquitos cuspidos saem da boca de quem gosta de devorá-los. Quem é que pode cuspir mosquitos senão quem os come? Sapos comem mosquitos. Mas Putin, obviamente, nunca sonhou em ser um príncipe, para talvez estar metamorfoseado em sapo.
Os príncipes haviam sido varridos do mapa da Rússia justamente porque tratavam os russos como mosquitos, e Putin, na regência dos Romanov, certamente seria apenas mais um, pousando sabe-se lá onde. Putin é um mosquito que virou sapo.
Além disso, sua analogia revela uma alma de gângster. Lembra “um baixinho esquizofrênico” vizinho seu, de outros tempos. Lembra também um fictício conterrâneo, que aparece no filme O Protetor, com Denzel Washington.
Neste filme, um jagunço russo, braço direito do mafioso que controlava o tráfico na Costa Leste dos EUA, vai a Boston tentar matar o justiceiro (Washington) que havia devastado os negócios do chefão russo.
Cara a cara com o justiceiro, o jagunço (interpretado pelo ótimo ator neozelandês Marton Csokas) diz “você é como a poeira, ou uma tampinha, é só uma coisa que a gente remove”. Não foi bem o que aconteceu, foi o contrário.
No caso de Putin, o contrário dificilmente acontecerá, apesar da resistência de quem ele massacra. E por isso talvez ele retrucasse dizendo “mando bem nas armas; as palavras que se danem”. Afinal, é mais ou menos o que ocorre. As palavras não importam, só sua carga de mentiras. Para isso, qualquer vocábulo serve, qualquer metáfora ou analogia atingem o alvo.
Com a Ucrânia, talvez Putin queira fazer algo mais radical, eliminá-la “como quem elimina a sujeira de um prato, elimina-a e o emborca”, para citar a fonte de inspiração do jagunço russo, e depois quererá colocar um garçom para gerenciar os espólios da terra que ele emborcou.
O que Putin sonhava quando criança e o que ele sonha agora, com dezenas de bilhões de dólares na conta pessoal e o controle de centenas de ogivas nucleares, não dá para saber exatamente. Talvez sonhasse em ganhar a atenção do mundo. Talvez sonhe em redefinir fronteiras, dominar o Mar Negro para alocar melhor seus submarinos nucleares.
Em todo caso, saindo do devaneio (que é o mais acertado) e entrando na noite de Putin, se houvesse um sonho que gerara toda essa bagunça objetivada, para interpretá-lo, um psicanalista diria para encontrarmos os restos diurnos sedimentados na cabeça de Putin. E, aí, depois teríamos de ligá-lo a um desejo de infância do maganão.
Esse sonho entristecido, esse sonho jogado em cima de inocentes como pesadelos hipersônicos, seria a realização desse desejo. E se Putin, na infância, desejasse aniquilar seus inimigos por sofrer injustiças na escola? E se Putin quisesse explodir o mundo?
Teria ele fundido essa imagem onírica (fictícia aqui, meras suposições forjadas) com ofensas verbais que disse vir sofrendo dos ucranianos, como as que o bilionário Igor Kolomoysky, amigo e ex-chefe de Zelensky, proferiu contra ele, segundo o próprio Putin, chamando-o de “baixinho, esquizofrênico e incapaz”? Seria por isso tamanha fúria?
O que se passa na cabeça de Putin não dá para saber. Mas dá para saber que o rio de desejos fez uma curva dentro dele, e o montão de ressentimentos que acumula nessa guinada é tóxico. Sempre foi assim.
Os russos que agora defendem Putin têm suas “razões” de fazê-lo, como os alemães que defenderam Hitler também as tinham, todas calcadas numa miopia política, na fobia e numa estepe de preconceitos e rancores capazes de destruir a humanidade inteira, se não houver forças contrárias para detê-los.