Por onde anda Elisabeth Veiga, minha amiga e colega do curso de Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro lá pelos anos 60 do século passado? Assistíamos fascinados às aulas de José Américo Pessanha. Ficávamos à beira do abismo com a sua inteligência verbal, o senso dramático de história da filosofia, a consciência agônica dos embates entre filósofos em que o detalhe de um conceito poderia significar a morte de contendores ou de discípulos, como a indução ao suicídio para um dos alunos de Pitágoras por ter revelado a estranhos uma fórmula de salvação da alma. Nosso Zé, como era carinhosamente chamado, foi decerto inspirador da criatividade verbal de Elisabeth. Seu ensino de Heráclito – inventor de uma linguagem que desse conta dos inauditos da perspectiva dialética em estado nascente – talvez esteja na origem do neologismo “Logofosforecer”, pura poesia segundo o também poeta e crítico Sebastião Uchoa Leite. O fogo é a metáfora do ser para Heráclito, e ele se acende e se apaga, mas com medida: logos, ao mesmo tempo que metamorfose de todas as coisas, também é razão e linguagem, alguma estabilidade senão o conhecimento não haveria.
Resenha de Sebastião Uchoa Leite publicada no Jornal do Brasil em 22 de março de 2003 descreve o estilo de Elisabeth Veiga tal como floresce em Sonata para pandemônio (2002): a autora tende a se caracterizar com ironia através do humor. Reafirma estilo e linguagens particulares como nos dois livros já publicados, a estreia em Gosto de fábula (1972) e depois A paixão em claro (1992). “A maior particularidade do processo poético de Elisabeth Veiga é a sua extrema capacidade de estranhamento, a ponto de estranhar-se a si mesma”, diz o colega e amigo Sebastião.
Uma notável coerência: ela continua a estranhar-se neste poema:
Botei um vestido de álacres
no poema
com adjetivos vermelhos
para ficar venenoso
(mas o poema estava nervoso),
uma piteira dourada
de nébulas enigmáticas:
Sebastião chama a atenção para o processo palavra puxa palavra por influência drummondiana: “adjetivos vermelhos” e “ficar venenoso”, e “estava nervoso”, como se houvesse contaminação, até mesmo “envenenamento” da linguagem. Diz Sebastião que a poetisa (como ela gostava de se chamar, na contracorrente das modas literárias) se estranha “até fisicamente”, no verso “e minha suposta cara é redonda”, pois o crítico-poeta lembra que “o rosto da autora, para quem a conhece, está longe de ser redondo”.
O crítico oscila entre personalidade e obra, a velha e ainda não resolvida questão sobre as causas e os limites do fazer poético: biografia ou circunstância “objetiva”, aí incluída a resolução de problemas propriamente estéticos que nada têm a ver com a “pessoa” física, a menos que se recupere a discussão sobre a “persona poética” e suas vozes. Haveria certo “desajeitamento linguístico, como num antigo Murilo Mendes, o que, no caso do grande poeta era artifício intelectual, mas no caso de nossa autora parece expressar uma dessintonizacão autêntica da personalidade, algo fora da intencionalidade estética”. Exemplo disso seria o penúltimo poema do livro Sonata para pandemônio, intitulado “Dissonâncias”:
Um chiado grosso
três mata-borrões
arcaicos,
e a página encardida,
um carretel de linha,
cortado,
uma tesoura gótica,
luvas para lidar
com o saldo esdrúxulo
pós-morte.
Sebastião reconhece a poesia em “Rastro seco”, o último poema de Sonata para pandemônio, justo no plano da invenção de palavra:
No desenho hirsuto
de um bicho
logofosforecendo com a língua
há um rastro
chamado poesia.
“Logofosforecer? Isso, realmente, é poesia. E a seco. Estamos conversados”, admite. Mas ainda teima em dizer que “A poesia de Elisabeth parece desarticulada, como ela própria lembra a certa altura do livro, mas essa desarticulação é só aparente, pois, na verdade, encontram-se nela frequentes reiterações que não podem ser casuais, mas de um propósito estético determinado”. Aguda percepção leva o poeta-crítico a notar que a palavra “rosmaninho” repete-se duas vezes ao longo do livro, “quantidade significativa pela sua extrema peculiaridade”, entre várias reiterações lexicais da autora. Não é para todos sacar que rosmaninho aparece como adjetivo (“ninhos nos papéis/rosmaninhos” e depois como verbo (“o meu coração é um salto/de um girassol na cor alta/acorda/ e rosmaninho sons”).
[Ocorrência mais comum seria o substantivo alfazema. Rosmaninho é subarbusto (Lavandulas stoechas), da família das labiadas, com folhas tormentosas (até as folhas?), flores brancas ou violáceas, em espigas, e frutos aquênicos. Recentemente, deu pra aparecer aqui em casa um tipo de azeite português justamente chamado Rosmaninho, palavra puxa palavra.]
De alfazemas perfumadas a óleos essenciais curativos transita o coração musical de Elisabeth Veiga, e como se não bastassem ainda temos repetições imagéticas, lembra o poeta-crítico: “a da imagem cabralina ou lispectoriana (mais de Clarice do que de Cabral) do ovo, que pode adquirir, conforme o contexto, várias significações. Alumbra um ovo/saído da caixa do meu peito/um ovo luzidio rolando de música/até estalar/as janelas do voo”. Jogo evidente entre ovo e voo em “A escrivaninha”, realça.
Saindo de vez da pegada psicológica, o poeta-crítico recomenda uma “microanálise das formas de linguagem” da autora, para que sejam ressaltados o inovador e o não habitual, já que sua poesia “fervilha de curiosidades: termos esquisitos” (cambaxilra, por exemplo, que é uma onomatopeia de andorinha, e formações neológicas como “desnovelar” e “sintônita”). De dar água na boca passando de Schreber a Joyce, a autora mexe com os brios de um dicionarista [trabalhamos juntos como redatores de verbetes para a Enciclopédia do Século X, Editora Expressão e Cultura], pois a origem do termo cambaxilra permanece desconhecida de alguns dicionários. Meio por alto no Google temos que cambaxilra é variante de cambaxirra, um pássaro que não para quieto, daí talvez uma segunda acepção, termo da gíria para negaça de capoeiragem antes da briga. Aponta-se a origem no guarani kambá e o negro + onomatopaico xixi com influência de chilrar.
Não passa despercebido a Uchoa Leite “um câmbio entre propriedades diversas”, quando a poeta-poetisa “atribui uma propriedade animal (emitir o som do rosnar de um cão) a um efeito de linguagem” e humor: “o poema rosnou, deu de ombros, fugiu”, em “A encenação do poema”.
O poeta-crítico, rendido já aos encantos do fazer poético da autora, conclui sua resenha lembrando o significado de pandemônio, que vem de pan-demônio, o demônio todo, o tumulto, a balbúrdia, a confusão, a desordem. Ele, cheio de dedos, sugere que a autora esteve no portal dos seus infernos, nesse lugar da indiscernível loucura/liberdade humana. E de lá voltou. “… dentro da desordem aparente das palavras, subjaz uma ordem oculta: esta ordem é a função poética, que se atinge plenamente num livro aparentemente puramente emocional”.
“Uma estrangeira diante da própria imagem” é o título da resenha de Uchoa Leite. Só quem nunca se olhou no espelho é que poderia não estranhar a própria imagem. Elisabeth Veiga olhou e se des-olhou, nem aí para o puro reflexo narcísico. A estalagem do som, de 2004, reitera o pendor de Elisabeth Veiga para a escuta, tema de um próximo trabalho.