Quando entrei na faculdade de filosofia, há quase 20 anos, não possuía mais capital simbólico que a média dos egressos do ensino público. Em especial, me faltavam justamente leituras na área de filosofia, na medida que não tive a disciplina no ensino médio. Exceto pelo clássico O mundo de Sofia – grata leitura realizada no exemplar emprestado pelo professor de teatro que, de maneira voluntária, realizava oficinas na escola –, meu repertório de leituras filosóficas era nulo. Talvez isso ajude a explicar o gosto precoce pelos textos de Schopenhauer e Nietzsche, que, além de grandes pensadores, foram, também, grandes escritores. Do mesmo modo que os textos destes filósofos passaram a compor leituras paralelas aos textos obrigatórios das disciplinas, o mesmo aconteceu com Freud. Como se sabe, embora Freud não tenha sido um filósofo[1], há linhas de interpretação que colocam sua obra em certa relação de continuidade com as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche. Esse horizonte de interesses me levou muito naturalmente aos manuais de psicanálise e ao cultivo de um interesse por psicanálise que se deu paralelamente ao itinerário de formação filosófica.
Todavia, o mesmo acaso que me proporcionou a entrada na graduação em filosofia se fez presente na época em que tive de decidir meus caminhos de pós-graduação. Em razão das possibilidades de pesquisa disponíveis em nível de pós-graduação em minha alma mater, enveredei pela pesquisa da obra de Jean-Paul Sartre. Diferentemente dos três autores citados acima, o existencialista francês não concebia o ser humano como imbuído de qualquer coisa como uma vontade de viver, uma vontade de poder, uma libido ou qualquer outra forma de “energia” que apontasse para uma participação do ser humano em uma totalidade natural. Pelo contrário: para Sartre – especialmente para o Sartre de O ser e o nada – o que caracteriza o ser humano é uma diferença radical com relação ao mundo natural. Diferentemente do cenário natural regido por leis físicas, químicas e biológicas, o ser humano é caracterizado não por dinâmicas orgânicas, fisiológicas ou inconscientes, mas sim por sua consciência. Ser um ser humano é existir como consciência das próprias possibilidades e, portanto, da liberdade de todos os dias (e, no limite, a cada instante), poder perseverar na perseguição dessas possibilidades ou de abandoná-las.
“O homem é fundamentalmente desejo de ser” (2008, p. 692), dirá Sartre em O ser e o nada. Embora essa ideia exija detalhamentos que não cabem no espaço deste ensaio, é possível dizer que a fórmula de Sartre significa que o divisor comum de todos os empreendimentos humanos é o desejo de ter, de uma vez por todas e para sempre, identidade. Para fazer uso de um termo bastante utilizado nos últimos anos, eu diria que, para Sartre, o mais profundo dos desejos humanos é o desejo identitário. Seja buscada em um nível pessoal, seja em um nível profissional, social ou prático, a identidade é o obscuro objeto do desejo que motiva e explica os mais diversos projetos e iniciativas individuais. Em outras palavras, tudo se passa como se em cada conduta cotidiana, por mais prosaica que seja, pulsasse o desejo de ser alguém, de ser alguém que se deseja ser. Forçando um pouco a filosofia de Sartre em uma direção mais narrativista e romanesca do que existencialista, todos os nossos comportamentos são motivados pelo nosso desejo de ser heróis das nossas próprias histórias.
Há um discreto mas notório elemento épico no existencialismo de Sartre. Sua noção de desejo de ser parece um teorema bastante simples, no ponto mais alto da hierarquia de comando de outras fórmulas, por meio do qual quaisquer modos concretos de existir são sempre mais do mesmo. É o desejo de ser que explica, por exemplo, a crença de que a essência precede a existência e não, como propõe Sartre, o contrário. Tão intenso pode ser o desejo de ser e tão favoráveis podem ser as condições para que ele possa ser considerado realizado que, eventualmente, alguém pode achar que é quem é em razão de sua filiação, sua nacionalidade, seu pertencimento étnico, sua sexualidade biológica ou sua autoimagem mental. Por outro lado, as sociedades modernas também encorajam os modos self made de realização do desejo de ser, por meio dos quais alguém não supõe já possuir a essência no presente, mas, alternativamente, crê que conquistará sua desejada identidade depois de um vitorioso percurso de conquistas pessoais, sociais, profissionais, etc.[2]. Entretanto, esse aspecto épico da odisseia individual de cada um de nós é, também, no pensamento de Sartre, expediente de tragédia: quando a existência precede a essência, como nos seres humanos, a busca pelo próprio ser não termina nunca. Somos todos como o Sísifo, apresentado por Albert Camus, rolando pedras morro acima para vê-las rolar morro abaixo e, em seguida, em vão, repetir o gesto. Como disse o poeta, o tempo não para. Com Sartre, é possível acrescentar que o tempo não para porque é por meio da nossa consciência que ele infesta o mundo.
Como observou o professor Gerd Bornheim (2000) em seu célebre livro sobre Sartre, o pensamento de Sartre é tão existencialista quanto metafísico – e é metafísico porque é existencialista.[3] Definir o ser humano pelo generalíssimo desejo de ser é, em certo sentido, enfatizar o que há em comum entre nossas histórias em detrimento do específico. Talvez a necessidade de imersão no âmbito da singularidade tenha levado Sartre a procurar formas artísticas de expressão, como o romance e o teatro. Todavia, chama atenção que, para fugir do determinismo das psicologias que concebem as personalidades humanas como bonecos de corda, Sartre criou um teatro de situações, isto é, um teatro baseado na ideia de circunstâncias arquetípicas. O desvio dramatúrgico de Sartre, portanto, permanece na antessala do singular que pretende elucidar.
“É preciso ver os homens do alto”, diz o protagonista do conto Erostrato, de Sartre. Das alturas metafísicas, constatamos com Sartre que o gênero das histórias humanas é a busca do ser. O desejo de ser, porém, parece presumir modulações mais específicas do que esse grande desejo por um final feliz se, além de explicar o épico de nossas histórias, pretende explicar o prosaico nosso dia a dia. Procurei por algum tempo, na filosofia de Sartre, pelo conceito que explicasse nossa capacidade cotidiana de levantar da cama e repetir a mesma rotina de gestos do dia anterior. Lembrei, contudo, que esse conceito estava ali, próximo e diante de mim, na bagunça de minha mesa de trabalho, nos velhos manuais de psicanálise que li na juventude. Encontrei o que procurava e disse para mim mesmo: “é a pulsão, estúpido!”.
A pulsão, segundo o que Freud disse pra Einstein, é a mitologia da psicanálise. Tão indemonstrável quanto ubíqua, é necessária por toda parte, pois tem o valor de uma hipótese heurística que sustenta toda a teoria e a prática psicanalítica. Como diz de modo muito preciso Marco Antônio Coutinho Jorge (2010, p. 122), a pulsão é “uma força que esta lá, dada, que e utilizada todos os dias e que continua sempre lá”, que “decresce e, com muita rapidez, quase imediatamente, retorna ao patamar anterior”. Na senda aberta por Freud e desenvolvida por Lacan, a pulsão precede o desejo: enquanto este explica a montagem identitária de uma fantasia individual – de um mundo pessoal, no vocabulário existencialista –, aquela explica a força constante que nos impele, na prosa dos dias, ao envolvimento com as cenas e episódios cotidianos que, com sorte, como diria Lacan (1998, p. 439), podem compor “a história de uma vida vivida como história”.
Não pretendo, por meio dessa breve reflexão, corrigir o existencialismo de Sartre, mas, talvez, complementá-lo. Há pouco mais de 50 anos, o professor Gerd Bornheim (2000, p. 300) concluía seu estudo sobre Sartre reconhecendo a atualidade do existencialismo e declarando que “de certo modo, somos todos sartrianos”[4]. Se hoje, conforme apontam alguns historiadores[5], vivemos um presentismo no qual o tempo é experimentado como crise e permanente iminência de catástrofe, em um horizonte histórico destituído de utopias e que que já não nos convida a buscar o próprio ser por meio de um desejo de viver belas histórias, permanece necessário e urgente compreender de onde brota nossa força de todos os dias. Se a perspectiva existencialista é refratária a conceitos limítrofes entre o psíquico e o orgânico como o conceito de pulsão, talvez uma modulação existencial desse mito psicanalítico possa ser pensada nas cercanias daquilo que Sartre chamou de paixão, mais precisamente de paixão inútil, essa teimosia de Sísifo de encarar com júbilo a própria condenação e, sem titubear, conferir a alegria do sentido mesmo para seu castigo.
Referências
BORNHEIM, Gerd. Sartre, metafísica e existencialismo. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva S. A., 2000.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. Trad. Ana Isa- bel Soares. São Paulo: Editora da UNESP, 2015.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 2: A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
LACAN, Jacques. Escritos I. Tradução: Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zabar Ed., 1998.
SARTRE, Jean-Paul. O muro. Trad. H. Alcântara Silveira. São Paulo: Círculo do livro, [s. d.].
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 16 ed. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
[1] Sobre esse tema, recomendo o vasto conjunto de reflexões do professor Weiny Cesar Freitas Pinto, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Dentre elas, destaco seu texto Pensar Freud, publicado no Ermira Cultura: http://ermiracultura.com.br/2022/03/12/pensar-freud/
[2] Essa modulação do desejo de ser foi o tema de minha tese de doutorado, intitulada O desejo de viver belas histórias, que pode ser encontrada neste link: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/23327
[3] A ideia de Bornheim merece melhor desenvolvimento, mas poderia ser sumarizada da seguinte forma: por mais aparentemente antimetafísico que pareça ou tente ser, o existencialismo permanece caudatário da tradição metafísica inaugurada por Platão, na qual o mundo transcendente “drena” o sentido do mundo concreto. É nesse sentido que o desejo de ser, ao se colocar como expediente explicativo privilegiado de todas as condutas humanas, permanece metafísico ao retirar a densidade da prosa da vida e planificar formalmente todos os projetos individuais.
[4] Este ano completam-se 20 anos do falecimento do professor Bornheim. Não conheci o professor pessoalmente e nem mesmo imaginava que faria faculdade de filosofia quando ele faleceu. Se não conheci o homem, todavia, conheci a obra. Este singelo texto tem a pretensão de ser um primeiro gesto de homenagem ao autor de um livro que foi e permanece importantíssimo para mim e para muitas outras pessoas.
[5] Penso aqui especialmente em François Hartog e Hans Ulrich Gumbrecht, autores de, respectivamente, Regimes de historicidade e Nosso amplo presente. Ambas as obras apresentam, por distintas perspectivas, análises assemelhadas de nossa experiência histórica hodierna. Para ambos os autores, tudo se passa como se nos últimos 30 ou 40 anos as sociedades ocidentais tenham experimentado uma intensificação da sensação de falta de futuro histórico.