Em arte, é delicado falar de marcos, origens ou pontos de cruzamentos. Tudo passa por questões como intenção, recepção, história, representação ou negação destas coisas. E tudo está revoando no tempo. Por exemplo, em As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift (1667-1745), lá no século XVIII, criou vários espaços simbolicamente relevantes para o pensamento artístico contemporâneo.
Uma das coisas mais interessantes dos relatos de Gulliver – além do Reino de Lilipute, onde Gulliver era grande demais diante dos pequeninos habitantes, e a Ilha de Brobdingnag, onde Gulliver era pequeno demais – é a ilha voadora Laputa, personagem em si mesma.
Era uma ilha habitada que subia, descia e seguia em frente, uma ilha guiada; a parte de baixo era placa de um único diamante (com 200 jardas de espessura) plana e lisa, e a superfície tinha uma topografia com vários relevos, como andares com acessos facilitados por escadarias.
A ilha era circular, e tinha 7.837 jardas de diâmetro, com uma área de dez mil acres, e 300 jardas de espessura. Seus habitantes eram pessoas de feições singulares – com a cabeça “inclinada para a direita ou para a esquerda; um dos olhos era virado para dentro, e o outro diretamente para o Zênite” – que serviam comidas cortadas em formas geométricas e sobremesas semelhantes a instrumentos musicais. A língua falada era musical e matemática, com ideias expressas em linhas e figuras.
O rei ficava no topo da ilha, claro, que era uma espécie de satélite de Lagado, “a metrópole de todo o reino em terra firme”, do continente de Balnibarbi. Ficava viajando, afastando-se, às vezes, centenas de quilômetros da terra firme, sobre o mar, uma metáfora da nobreza britânica.
O monarca tem o poder de elevar a ilha acima da região de nuvens e vapores, subindo até quatro milhas, ou seja, a 6,4 km de altura (pouco mais da metade da altitude dos aviões de carreira reais de nossos dias). (“O que mais eu queria saber era a que causa na arte ou na natureza ela [a ilha] devia seus diversos movimentos”). Gulliver ficou dois meses nessa ilha.
Havia também a Ilha Glubbdubdrib, quer dizer, Ilha dos Mágicos, que têm poderes de necromancia e “podem evocar quem bem entender dentre os mortos, e exigir seus serviços por vinte e quatro horas”.
Um riso profundo atravessa toda a narrativa de As Viagens de Gulliver. A sátira e o sarcasmo sobre a mentalidade inglesa são dominantes. As eleições para cargo público em Lilipute, por exemplo, são disputadas sobre “um Fio branco fino estendido por cerca de dois pés, a doze polegadas de altura do Chão […]. Aquele que pular mais alto sem cair obtém o Cargo”.
Numa rápida investigação no Google, em inglês (não é o método mais eficaz de pesquisa, obviamente, longe disso), não vi nenhuma menção a Swift sobre a invenção do slackline, cuja história aponta para uma origem recente, entre os anos 1960 e 1980, no Parque Nacional do Yosemite na Califórnia (EUA). Mas a descrição que Gulliver faz é de um slackline, usado como esporte e como disputa de poder pela elite de Lilipute.
Além disso, há no desenho narrativo do romance de Swift um trabalho de artes visuais como poucos escritores foram capazes de fazer naquele tempo. Talvez Victor Hugo, no século XIX, esteja à altura do autor inglês, embora os dois tenham propostas estéticas diferentes.
Voltando a nosso tempo, a intenção do Swift ali era de recriar ambientes mágicos e maravilhosos, mas não tinha, nem poderia ter, a intenção de criar espaços semoventes como se fossem instalações de artes visuais (poderia ser, mas não é), como fez Ricardo Lísias em A Vista Particular.
Estética e poder
Lísias é um escritor brasileiro contemporâneo, de São Paulo, nascido em 1975. É um dos autores mais interessantes da nossa literatura, em termos de projeto artístico renovador da prosa nacional, junto com Veronica Stigger, Bernardo Carvalho e Juan Fuks.
A Vista Particular é uma criação com a narrativa feita em movimentos de pintura, videoinstalação, roteiro de cinema e linguagem teatral. Para Lísias, ficção e realidade são coisas inseparáveis e tenta mostrar isso em seus romances e contos.
O personagem central é o artista visual José de Arariboia, que está pintando o morro Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, mas numa intervenção tal que é impossível distinguir a obra do próprio morro.
Quando a galerista Marina dalla Donatella não consegue mais entender o que Arariboia está fazendo, se é uma instalação, um vídeo, uma pintura, ou um happening, ela deixa de patrocinar o artista. E, aí, ele decide levar sua obra para o museu a céu aberto de Inhotim, em Minas Gerais.
Para tanto, Arariboia precisa levar o morro Pavão-Pavãozinho com todo mundo que mora lá, inclusive o traficante Biribó e sua boca de fumo. É quando começam de fato as confusões intencionais entre ficção e realidade.
A literatura de Lísias é um ambicioso projeto que arrasta para dentro de si questões potencialmente sensíveis como política, sociedade, individualidade, comunidade e subjetividade, sempre girando num vetor dicotômico entre público e privado, centro e periferia, canônico e vanguarda, estética e poder.
Há outras realizações de Lísias que potencializam ainda mais esses procedimentos. Em Delegado Tobias, a ideia de fusão entre artes visuais e literatura é vigorosa. Trata-se de uma espécie de instalação, que envolve redes sociais e o uso de técnicas que colam a ficção na realidade.
Do mesmo autor, há também Diário da Cadeia, assinado por Eduardo Cunha (pseudônimo). São trabalhos incisivos que rendem a Lísias diversos processos e equívocos da própria Justiça brasileira.
Redimensionando espaços
Nas artes visuais contemporâneas, há vários exemplos de técnicas híbridas. Elas são quase todas assim, mostrando como a arte faz intervenções políticas e perfura a realidade para mudar rumos, redimensionar espaços, ressignificar ideias, sempre tendo a estética como elemento transgressor.
Vou citar dois exemplos das artes visuais contemporâneas: o coletivo Nova Arte Eslovena (NSK), criado em 1984, e a artista nova-iorquina Martha Rosler.
No primeiro caso, cinco eslovenos criaram um coletivo de arte chamado IRWIN, em 1983. Este se juntou a outros coletivos, que no ano seguinte fundaram juntos o grupo NSK (Nova Arte Eslovena), quando a Eslovênia ainda nem existia como país. Ela nasceria da fragmentação da Iugoslávia a partir de 1991, tendo como capital Liubliana, a cidade do filósofo Slavoj Žižek.
A partir de 1984, a NSK começou a realizar diversas intervenções artísticas, como a criação de um Estado sem território, na década de 1990, com hino, bandeira, passaporte e política diplomática de portas abertas para quem quisesse entrar.
A série de pôsteres militares ficou por conta do coletivo IRWIN, criando a NSK Garda Zagreb, recrutando “soldados” e fotografando para fazer propaganda nacionalista fictícia, que lhes rendeu inclusive a acusação de fascistas, embora estivessem sendo subversivos.
Nessa empreitada de front, o grupo contava com o apoio de militares reais de outros países, como a colaboração do Exército croata. Tudo ficção, tudo arte, numa engendrada narrativa de efeitos poderosos sobre a realidade e sobre a própria política eslovena.
Em 2017, a NSK abriu um pavilhão na Bienal de Veneza, e Žižek estava lá, deu palestras, defendeu a arte do coletivo, que estava sendo criticado por uma interpretação realista do que o grupo fazia.
Criticava-se o fato de uma arte, que pregava a liberdade, criar um Estado com as mesmas simbologias de repressão dos Estados reais, como passaporte, hino, exército. É como criticar o Dom Quixote de Pierre Menard (Borges), dizendo não ter diferença nenhuma do livro de Cervantes.
Já Martha Rosler começou sua carreira artística fazendo agitprop para alertar quão nociva era a Guerra do Vietnã para a própria sociedade americana, com a série de fotografias alteradas, intitulada com uma certa ironia de House Beautiful: Bringing the War Home (1967–72), “Que Beleza de Casa: Trazendo a Guerra para Dentro do Lar”, em tradução livre.
Ela pegava fotos de casas chiques, muito bonitas, bem decoradas, com pessoas felizes, produzidas para propaganda do mercado imobiliário, e fazia fotomontagens, inserindo imagens da guerra, destruindo o idílio e a fantasia de tranquilidade das pessoas.
Se fôssemos atualizar isso, seria como pegar fotos de belas casas de bilionários russos e fazer montagens com imagens correntes de salas destroçadas de casas ucranianas, por causa da guerra, ou de corpos de crianças mortas pelos ataques russos, colocadas em alguma parte do jardim dessas mansões tranquilas de Moscou.
Nessas montagens, caberiam ainda citações de trechos de poemas como A Terra Devastada, de T. S. Eliot (com todas as implicações ideológicas do poeta e estéticas de sua arte), “O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim/ Já começou a brotar? Dará flores este ano?” (Tradução de Ivan Junqueira).
O artista que fizesse isso obviamente não estaria sendo original, mas, ainda assim, se fizesse isso na Rússia de hoje seria preso imediatamente pela polícia política de Putin. Afinal, a arte contemporânea, fundante da estética transgressora por excelência, não é bem-vinda a ambientes conservadores (com tendência a fazer leituras realistas do mundo da arte) e a Estados repressores.
Rompendo fronteiras
Esses exemplos reforçam o modo como ficção e realidade são exploradas nas relações simbióticas das artes contemporâneas. E a literatura entra nesse jogo cada vez mais. É verdade que romances sempre se utilizaram da linguagem da pintura, porque a narrativa em prosa é um monstro devorador de linguagens.
Um romance precisa de vários jorros imaginativos, muitos personagens e largas explorações de espaço e tempo, além de misturas de técnicas intrínsecas ao universo das palavras.
Da Renascença ao final do século XIX, foi mais ou menos assim que ocorreu. Pintura era pintura, escultura era escultura, literatura era literatura, com emulações, mas menos nos procedimentos do que nos temas.
Sempre houve adaptações, que a teórica Linda Hutcheon chama de “forma de transcodificação de um sistema de comunicação para outro”, um certo modo de recontar histórias, ressignificá-las. A écfrase, por exemplo, é um tipo de adaptação, um pequeno quadro dentro da selva narrativa.
A série de poemas porta-retratos feitos por poetas como Dante Gabriel Rossetti, T. S. Eliot, Ezra Pound, William Carlos Williams, e. e. cummings são exemplos de técnicas dialógicas entre poesia e pintura.
Mas a guinada de transgressão oferecida por Édouard Manet, principalmente, foi muito importante para que a literatura viesse a mergulhar nesse mar. André Breton, com Nadja, usa texto e fotografia para escrever uma história surreal esgarçando o real, fundindo ficção e realidade, identidade e experiência imaginativa.
Georges Perec, em A Coleção Particular, também cria um ambiente fortemente influenciado pelas ideias de fusão da ficção com a realidade. Orhan Pamuk, em O Museu da Inocência, recria um universo particular da memória afetiva, usando a ideia interna de rompimento das fronteiras artísticas.
Para ler literatura e compreender peças de arte produzidas na contemporaneidade, portanto, temos de passar por esse entendimento, que aqui já está raso (é mais entramado do que isso). Aqui, é só um passeio de ultraleve sobre uma paisagem imensa da complexa sociedade contemporânea.