Enquanto Cobra criada (martelo casa editorial, 2019) ardia ao longe, deixando entrever, no horizonte, as fumaças da boa poesia, Serviço de preto (Goiânia Clandestina, 2022) é um incêndio de grandes proporções, a labaredar ao lado de quem lê.
Como sói acontecer em incêndios dessa natureza, o pretume observa-se nas paredes, signo das estruturas da tradição revolvidas em leitura contracultural – afirmativa, agora, não apenas de quem é o autor, como no volume anterior, mas de sua participação ativa como elo da corrente que erige a negritude e a ancestralidade que lhe tocam. É certo dizer que são versos para findar um acorrentamento específico, porquanto totem identitário, sólido e potente como poucos.
Há mais de um sentido em “não tenho/ lentes pretas/ cânon“. A estrofe deixa perceber falta de encaixe dentro do próprio cânone da poesia, sumariamente branco e europeizante, pois arremata com “mas também/ não uso máscaras/ Fanon”. Quando Carlos Drummond de Andrade é percebido, por exemplo, serve de parâmetro para contrapor nascimento branco e nascimento preto, dialetizando anjo torto/preto velho e antagonizando gauche/malandro. É assim que as referências textuais – entidades de religiões de matriz africana, pensadores antirracistas e artistas negros – identificam o conceito de “serviço de preto”: o que fizeram Machado de Assis e Lélia Gonzalez em suas obras, verbi gratia. Ao expô-lo, o poeta apreende um novo dialeto, insuspeitado no inconsciente coletivo do artista afrobrasileiro: o “pretuguês”, como também quis Ricardo Aleixo.
A partir de então, a biografia do autor mistura-se à trama das vivências negras no Brasil, compondo o tecido poético do livro.
Sobre o pai que pouco conheceu e a mãe a quem deve tanto, reponde Mazinho em “Ancestralidade reversa”, poema de rara e corajosa entrega pessoal, e dos mais belos da lavra do autor. É uma terapia de choque, que termina com um lamento banzo, pois “onde estaria eu/ senão aqui// longe da África/ vivendo na diáspora/ dos meus remendos?”. Não há aceite nessa condição, e o livro não está disposto a conciliar o inconciliável. Como disse Nego Leléu, em Viva o povo brasileiro (1985), de João Ubaldo Ribeiro, “melhor a guerra santa que a paz doente”, se transformando no eu-lírico de “Oxoguian”, que afirma que “toda paz é educada/ pela guerra”.
A certa altura, a plêiade de referências cede lugar, de maneira suave, a poemas de espiritualidade afrocentrada, que aliam-se a uma série de cortesias à sabedoria popular e curandeira. Essas duas matérias performam um ato único dentro do livro, sagazmente capaz de capturar a condição mística brasileira.
Há uma intersecção pouco evidente, mas muito significativa, entre os dois livros de Mazinho, através do poema “Confissão”. O mote de um espírito que acomete sexualmente o eu-lírico durante o sono esteve presente em Cobra criada. Naquela ocasião, resultou em um poema curto e hilário. Agora, em Serviço de preto, o poema é longo e, sem deixar de lado a veia cômica, facilita a ponderações metafísicas o protagonismo da peça. Informa que o poeta, de uma ou outra maneira, amadureceu enquanto escriba e pensador de si mesmo.
Vale, sem sombra de dúvidas, a leitura atenciosa, não sendo possível substituí-la com estas breves linhas. Portanto, para maiores considerações, consultar a obra, a ser lançada neste 10 de junho de 2022, na Casa Cultural Clandestina.
Livro: Serviço de preto
Autor: Mazinho Souza
Editora: Goiânia Clandestina