[Coautores: Paula Mariana Rech[1] e Marsiel Pacifico[2]]
Se por um momento observarmos atentamente nosso cotidiano, notaremos com certa facilidade alguns fenômenos que são aparentemente triviais, mas que em realidade prenunciam o futuro da espécie humana. Por exemplo: o quanto estamos dispostos a ler noticiários, revistas ou livros que não contenham ilustrações chamativas, coloridas e fascinantes? Quais são os pais que ainda contam estórias ou histórias aos filhos, antes de dormirem ou em qualquer outro horário do dia? E as crianças, por sua vez, quantas têm paciência e determinação para escutar essas estórias ou histórias? Não devemos subestimar a seriedade de tais questões. Todas elas, no fundo, estão ligadas a uma característica central de nossa civilização: a atenção, isto é, a capacidade humana de se atentar efetivamente a algo ou a algum estímulo exterior.
Uma manifestação contemporânea concreta do risco de atrofiamento e regressão da atenção é o surgimento e o crescente alastramento daquilo que se convencionou diagnosticar como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). De modo confuso e coberta de contradições, a existência do TDAH como uma doença não é consenso nem mesmo entre os especialistas das ciências médicas. Entretanto, não nos interessa aqui os debates sobre a existência ou não de uma natureza patológica do TDAH, ou se há ou não a necessidade de tratá-lo com medicamentos. O problema que mais nos preocupa é: além dos dados neurofisiológicos e genéticos, existem causas mais fundamentais para o surgimento do distúrbio? Por exemplo, razões de natureza sociocultural, histórica, política e econômica? Em outras palavras, estamos diante da velha oposição entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade: até que ponto o modelo de sociedade (cultura) interfere na configuração biológica (natureza) dos indivíduos?
Para nos ajudar a pensar esta temática é de grande valia evocar as contribuições do filósofo germânico Christoph Türcke. No Brasil, foram publicados dois livros deste pensador, que são importantes para a compreensão mais profunda a respeito do que é a atenção e qual é o seu papel no processo de desenvolvimento do ser humano: Sociedade excitada: filosofia da sensação (2010) e Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção (2016).
Na primeira obra, o autor faz uma espécie de arqueologia da atenção humana. Dialogando criticamente com o conceito freudiano de compulsão à repetição, Türcke (2010, p. 139-147) irá apontar para o fato histórico de que, não somente a atenção, mas toda e qualquer atividade mental e consciente do ser humano surge da reação fisiológica do organismo diante de estímulos externos violentos[3]. A repetição exaustiva e milenar de rituais sagrados teria possibilitado aos primeiros hominídeos desenvolverem a memória e, consequentemente, faculdades como a atenção, a representação e a imaginação. Nesses rituais primitivos eram praticados atos violentamente pavorosos, banhados a sangue, inclusive com o sacrifício de humanos, os quais mimetizavam o horror das forças externas da natureza. Por mais paradoxal que possa parecer, é através da repetição do horror traumático que o sistema nervoso dos primeiros hominídeos começou a tornar tolerável o horror proveniente do desconhecido, do não familiar, do assustador. “A imitação proposital de forças naturais, que não falta em nenhuma cultura arcaica, é uma compulsão à repetição aperfeiçoada até se transformar em técnica de dominação” (TÜRCKE, 2010, p. 144).
Dessa forma, o autor, contrapondo-se a Freud, busca as origens da compulsão à repetição além da natureza biológica dos organismos, investigando o campo dos cultos e ritos de sacrifício, isto é, na esfera do sagrado. É somente a partir da necessidade de assimilar aqueles fenômenos que apareciam como extraordinários e incompreensíveis que a compulsão à repetição traumática é ativada. Ela é o meio pelo qual é aberta a porta para o surgimento da atenção.
O livro Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção, fornece-nos uma interpretação crítica e social para o problema do TDAH – muitas vezes reduzido à circunscrição das ciências médicas. A visão do autor é de que a inquietação, a dispersão e a desatenção que assolam as novas gerações são consequências decorrentes de toda uma cultura técnico-digital exacerbada e onipresente. Nessa interpretação, torna-se lícito compreender o TDAH como uma espécie de sintoma social representativo de nossa cultura moderna.
Com a revolução microeletrônica perpetrada a partir do século XX, a percepção humana se altera qualitativamente, afetando nossas faculdades cognitivas mais elementares: a atenção e a concentração. Como consequência do desenvolvimento e do aprimoramento dos meios técnicos da indústria cultural (redes sociais, fotografia, cinema, televisão), os indivíduos estariam mais expostos à enorme quantidade de estímulos audiovisuais. O uso indiscriminado das telas, as quais refinam sucessivamente seus recursos na disputa pela atenção dos espectadores, torna os indivíduos dependentes de sensações cada vez mais estimulantes e excitantes, daí a ideia de que vivemos em uma sociedade excitada.
Ora, está em marcha então um verdadeiro bombardeio de estímulos audiovisuais direcionados à atenção humana, de tal sorte que a potência, a velocidade, a intensidade e a fugacidade de imagens e sons danificam a capacidade de atenção (inclusive em termos neurológicos), por não favorecerem a fixação, a estabilidade e a tranquilização – características fundamentais para qualquer organismo que é alvo de estímulos externos. Assim, o TDAH emerge, na perspectiva do autor, como um fenômeno particular “que está ligado a algo extremamente genérico: toda uma cultura do déficit de atenção” (2016, p.10).
[…] o estado arcaico da humanidade não foi ultrapassado totalmente. De certa maneira vivemos uma reviravolta deste estado ao nível high-tech. Por exemplo: aquela inflação e multiplicação de choques, que a maquinaria da sensação está produzindo diariamente, leva a consciência humana, de certa maneira, de volta para o ponto da sua origem, onde, em tempos remotos, surgiu a atenção humana. O específico desta atenção é a capacidade de permanecer em alguma coisa, fitar alguma coisa, imergir em alguma coisa. Esta capacidade, que é uma das conquistas mais preciosas da humanidade, se formou ao longo de milênios durante o paleolítico. Não pertence à estrutura genética. É um resultado cultural. Agora vivemos o fato interessante de que essa grande conquista está novamente à disposição. Ela está vitalmente ameaçada pelas conquistas mais avançadas da tecnologia. E nesse sentido o arcaico e o high-tech se tocam. (TÜRCKE, [entrevista concedida a] WILLIGES & FRAGA, 2018, p. 128-129).
Desse modo, podemos concluir que a atenção humana – indispensável para a edificação de todas as artes, ciências, filosofias, instituições e crenças que existiram e ainda existirão no curso da história humana – está sob ataque diuturno. Esta faculdade não é um bem ou um dom natural concedido ao homem de forma a priori. A atenção é fruto do processo de hominização, é resultado de um longo aprimoramento cultural e neurofisiológico dos indivíduos, conquistada a duras penas e com a ajuda inestimável da compulsão à repetição. Por isso, devemos valorizá-la e preservá-la, sob pena de a espécie humana involuir biológica e culturalmente.
Referências
TÜRCKE, C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2010.
TÜRCKE, C. Hiperativos! Abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2016.
WILLIGES, F.; FRAGA, P. Do “dialético primevo” à teoria crítica como “legítima defesa”: entrevista com Christoph Türcke. In: BARATA, André et alii. (Orgs.). Filosofia, comunicação e subjetividade: v. 2 – pensamento crítico, psicologia e educação. Covilhã, Labcom.IFP, 2018, p. 123-147.
[1] Mestranda, com bolsa CAPES, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: paula.mariana.rech@gmail.com.
[2] Professor doutor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado Profissional em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: marsiel.pacifico@uems.br
[3] Em Além do Princípio de Prazer (1920), Freud elabora a noção de compulsão à repetição como um mecanismo psíquico que explica o motivo pelo qual as pessoas sempre repetem inconscientemente aquilo que lhes causa algum tipo de sofrimento. A repetição constante seria o modo pelo qual os indivíduos chegariam a obter domínio e controle sobre a excitação causada por experiências traumáticas, desagradáveis. Por exemplo: o ex-combatente que, em seus sonhos, revive os acontecimentos violentos e traumáticos da guerra. Em essência, ou seja, não aplicada apenas a casos clínicos, mas entendida como princípio geral regulador da vida, a compulsão à repetição existiria para fazer cumprir o objetivo último de tudo que é vivo, isto é, a morte. Essa compulsão, ainda segundo o psicanalista, estaria presente já nas formas mais simples e primitivas de vida, configurando-se como a pulsão originária de todos os organismos.
O artigo é o primeiro da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios