Tanto as utopias quanto as distopias são especializadas em vislumbrar o destino predeterminado dos desenvolvimentos correntes: as utopias apresentam a terra no fim da estrada como um local de harmonia e ordem, um destino a ser ansiosamente aguardado e, se possível, aproximado, enquanto as distopias retratam a terra como, na melhor das hipóteses, uma prisão ao ar livre, algo a ser temido, mantido à maior distância possível e, idealmente, transformado em algo eternamente fora dos limites.
Zygmunt Bauman
A fúria dominadora do homem
Oriundas do pensamento de Platão, com o mito de Atlântida, em Timeu-Crítias, e consagradas com o romance de Thomas More, Utopia, as propostas de narrativas utópicas cessaram de aparecer na primeira metade do século XX. Elas não só pararam de surgir como projeto de esperança nas tramas literárias, como deixaram de ser procuradas, e seriam congeladas na espessa camada de gelo da Guerra Fria.
Mas antes das catástrofes humanas que ocorreram, por razões diferentes, naquele período, como a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, o Holocausto, além das duas guerras mundiais, o sentimento de mal-estar do mundo ocidental já vinha sendo mostrado pelas distopias que, por sua vez, começaram a emergir no universo da ficção, e não por coincidência, ainda no fim do século XIX.
As distopias são essas ficções que representam “a resistência ao humanismo diante de realidades sempre hostis, das quais, aparentemente, não é possível escapar” (BENTIVOGLIO, 2019), como a A ilha do dr. Moreau (1896), de H. G. Wells, por exemplo.
Elas continuaram sua saga de aparição, como uma alvorada sombria que comunica um dia sem sol, em livros como A máquina parou (1909), de E. M. Fosters, Nós (1924), de Yevgeny Zamya, avançando ao longo de todo o século XX, chamado por Manuel da Costa Pinto de século anti-humanista (PINTO, 2012), com Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, O zero e o infinito (1940), de Arthur Koestler, 1984 (1949), de George Orwell, Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, Androides sonham com ovelhas elétricas (1968), de Philip K. Dick, chegando ao século XXI com romances como A possibilidade de uma ilha (2005), de Michel Houellebecq, e 1Q84 (2009), de Haruki Murakami.
Mas, apesar da enxurrada das correntes de pensamento e produção literária contrárias ao espírito utópico no século XX, apesar da desolação humana num século em que “a razão deixou de ser o antípoda da desrazão, da mitologia e da religião, para se tornar, ela mesma, um desdobramento dessa fúria dominadora” do homem (PINTO, 2012), a utopia não morreu.
Apesar de a imaginação literária ter se tornado “pródiga em criar sociedades fictícias em que a racionalidade se transforma num fim em si mesma” (PINTO, 2012), no século XX, adentrando o XXI, a utopia se encontra engendrada justamente nas narrativas distópicas, como uma espécie de sobrevivência, um espaço de onde se possa reconstruir o mundo.
Como a sociologia pode abordar esta questão da utopia dentro de uma narrativa distópica? Primeiro, é preciso situar a literatura como objeto de interesse sociológico. Se cavarmos o chão social, descobriremos nas suas entranhas todas as imbricações que na superfície parecem ser algo natural.
Neste sentido, a arte também é um produto das relações sociais. Por mais criativo que seja o artista, a arte não é um produto exclusivo da inspiração forjado na massa das nuvens.
A arte faz parte da inculcação do mundo social pelo homem (BOURDIEU), a partir de suas propriedades de ver, ouvir, cheirar, ter paladar, tato, pensar, olhar, sentir, querer (MARX, 2010). A literatura, como arte da linguagem verbal, tem essas propriedades e por isso ganha atenção da sociologia como objeto de estudo.
Quando um autor escreve uma ficção, ele o faz levando em conta os procedimentos e técnicas geradores da estética (o efeito – seja ele dramático, trágico, cômico, grotesco, ridículo, belo, sublime – que os elementos dessa narrativa causa no leitor), mas no bojo dessa ficção há também os liames sociais, os engendramentos psíquicos, de memória, de imaginação, morais, físicos que resultam das relações sociais do autor.
Neste sentido, a literatura é feita de um tipo de barro simbólico que mistura imaginação e subjetividade calcada na absorção do mundo. Por isso, ela tem um papel importante na interferência da realidade, e na sua capacidade de reconstruí-la, tornando-se ela mesma um objeto de análise da condição social.
Os grandes sociólogos perceberam essa característica da arte, de modo geral, e da literatura, particularmente. A sociologia pode analisar as condições sociais da produção e da recepção das narrativas literárias, ao mesmo tempo em que pode olhar para o corpo do livro como um terreno fértil de saber sociológico, que muitos intelectuais subestimam, como bem diz Bourdieu:
Eles [alguns intelectuais] estão de tal maneira impregnados de uma crítica materialista de sua atividade que terminam por subestimar o poder específico do intelectual, que é o poder simbólico, o poder de agir sobre as estruturas mentais e, através da estrutura mental, sobre as estruturas sociais. Os intelectuais esquecem-se de que por meio de um livro se pode transformar a visão do mundo social e, através da visão de mundo, transformar também o próprio mundo social (2011, p. 243)
E no caso da utopia, o que esse lugar da ficção cercado por um ambiente hostil, como nossa realidade, nos ensina sobre transformação do mundo? No mínimo nos ensina a implodir o desespero e plantar uma esperança, principalmente em tempos de realidade distópica como a que enfrentamos, hoje.
A utopia, neste caso, explora a questão dos espaços imaginados e desafia a configuração do poder constituído e perseguidor das diferenças. As narrativas utópicas e distópicas são trabalhadas nas dimensões de espaço e tempo de modos diferentes.
Na utopia, o espaço é comumente deslocado para um bom lugar desconhecido, geralmente uma ilha ou uma cidade distante a que não se tem acesso facilmente (lugar nenhum) no tempo atual do leitor.
Nenhum lugar
A palavra utopia significa “de lugar nenhum”. “É a ilha que não se encontra em nenhum local, um lugar que não conhece nenhuma localização real. Em sua própria autodescrição, a utopia se conhece como tal e reivindica sê-lo” (RICOUER, 2015).
Na distopia, o tempo está à frente, muitos séculos, às vezes, milênios, e o lugar é conhecido do leitor e de todo mundo, porque são as cidades, os países, o continente, a terra inteira, por vezes, espaços sobre os quais pisamos ou cuja geografia é conhecida, mesmo quando se trata de espaço fictício.
Algumas distopias ocorrem numa realidade paralela no tempo corrente de seu público, como a série de HQs de Alan Moore (ilustrada por Dave Gibbons) Watchmen, cuja ambientação é uma Nova York futurista, mas que em vez de futuro, a história se passa em 1985, um ano antes do ano da publicação do primeiro número.
É bem verdade que os elementos distópicos estão cada vez mais próximos de nós, no tempo e no espaço. Às vezes, nem é necessário usarmos a imaginação, atravessando séculos, nem décadas, sequer anos, para entendermos que a distopia já está presente, e aqui. Tampouco é mais fictícia.
Aliás, abrindo um parêntese para a realidade dos fatos, a nossa distopia, por vezes, é um conjunto de narrativas fictícias erigidas pelos tomadores de decisão que querem-nos fazer crer que seus delírios são reais, enquanto nos empurram para a miséria e a opressão.
Em todo caso, nosso objeto de reflexão encontra-se meramente na esfera das artes, nas narrativas literárias, nas páginas dos livros. Mas não deixa de ser um espelho. E no seio das distopias, as utopias surgem como resistência. Enquanto os autores distópicos mostram o desastre que é a jornada humana na sociedade moderna (o mundo capitalista, a saber), os utópicos pregam a esperança.
Para falar da utopia como reconstrução, utilizei o conceito do historiador Lewis Mumford, que divide a utopia em dois tipos, utopias de fuga e utopias de reconstrução. As de fuga, diz Mumford, deixam o mundo externo tal como ele é, mas as de reconstrução tentam mudá-lo para que possamos nos relacionar com ele a partir das condições que nós mesmos propomos.
No primeiro caso, construímos castelos impossíveis de serem derrubados; no segundo, consultamos um pesquisador, um arquiteto, e um pedreiro, e agimos para construir uma casa que vai ao encontro de nossas necessidades especiais (1923, p. 15).
Mumford, obviamente está falando por alegorias que podem servir tanto para utopias de narrativas históricas, criadas como projetos de luta contra a opressão, quanto para utopias forjadas pela ficção. O que me interessa aqui é a metáfora que nos conecta com os sentidos reais da dinâmica social de luta, mas encontrada na ficção.
Há outras maneiras de falar sociologicamente da utopia, como na sociologia de Karl Mannheim, que dedicou um livro exclusivamente para falar de utopias, não de modo positivo, mas para equiparar à ideia negativa de ideologia perpetrada pelo marxismo. Então, para Mannheim, a utopia é um fenômeno desviante – uma distorção – em relação à realidade (Ideologia e utopia, 1968), assim como a ideologia é, para o pensamento marxista, uma representação falsa da realidade.
A maneira a que recorro aqui, como já disse, é aquela em que se olha sociologicamente pelo buraco da fechadura da ficção. O pensamento do filósofo Paul Ricouer joga luz sobre o que quero dizer – deixando claro – da ideia de utopia como reconstrução. Segundo ele, a utopia é um projeto, um projeto feito a partir de um não lugar.
Desse não-lugar, uma réstia de luz é lançada sobre a nossa própria realidade, que de súbito se torna estranha; doravante, nada mais estará estabelecido. O campo dos possíveis se abre amplamente para além do existente e permite encarar maneiras de viver radicalmente outras. (RICOUER, 2015, p. 22).
Essas “maneiras de viver radicalmente outras” podem ser as operações de reconstrução do mundo, a partir de um lugar muito específico para quem está dentro e muito desconhecido a ponto de ser um não lugar para quem está de fora, ou para quem está mergulhado no universo da distopia.
Incinerando as ideias
Nunca podemos perder a perspectiva da ficção. É dentro dela que estamos examinando as possibilidades de luta do pensamento utópico, e da narrativa utópica, que, em nosso caso específico, ainda conta com a dimensão da distopia, dentro da qual o exíguo espaço da utopia se encontra.
Como Bourdieu já falou, a literatura “pode transformar a visão do mundo social e, através da visão de mundo, transformar também o próprio mundo social” (2011, p. 243). Na avaliação dele, a sociologia tem de se situar “sempre entre dois papéis: por um lado o de desmancha-prazeres e, por outro, o de cúmplice da utopia” (2003, p. 101).
Sobre um ambiente distópico em que uma faísca utópica está ainda acesa, o leitor (individualmente, é óbvio), sentindo-se exatamente rodeado de condições sociais opressoras, pode perceber que ainda há esperança para o mundo em que ele se encontra. Ele identifica a utopia como uma força.
Segundo Ricouer, a utopia como ficção atrai o leitor como cúmplice, fazendo o leitor ver o jogo jogado, ou a luta enfrentada, e a construção das ferramentas de jogo, ou das armas.
“O leitor é inclinado a acolher a utopia como uma hipótese plausível. Isso talvez pertença à estratégia literária da utopia, buscar persuadir o leitor por meio de procedimentos retóricos da ficção” (RICOUER, 2015, p. 258).
Essa observação de Ricoeur junta as perspectivas utópicas, ou seja, as históricas, logo, de cunho social, dos homens de carne e osso que estão sendo oprimidos e constroem um lugar de esperança, e as fictícias. Exemplo de perspectiva utópica girando no interior da distopia, a partir de um lugar desconhecido, é o desfecho do romance distópico Fahrenheit 451, do escritor americano Ray Bradbury (1920-2012).
Publicado originalmente em 1953, Fahrenheit 451 é ambientado em alguma cidade dos EUA, num futuro próximo (o narrador cita 1990 como data-marco), logo, distante apenas algumas décadas (37 anos) do tempo do leitor original, seguindo a lógica do romance 1984, de Orwell, que fora publicado em 1949 (escrito em 1948 – anagrama de 1984) e cuja ação corria no ano equivalente ao do título do livro, 37 anos depois.
O grau de calor apresentado no título do livro de Bradbury é o ponto necessário para queimar os papéis dos livros. O romance é ambientado numa cidade cujo governo é totalitário, e sua maior repressão incide sobre o pensamento e a expressão desse pensamento por meio, sobretudo, dos livros.
Há uma perseguição implacável. A ordem é queimar todas as bibliotecas. Houve caso em que a dona dos livros resistiu ao poder e foi queimada junto com sua biblioteca.
A cidade representa o mundo todo. Não havia para onde escapar. O Corpo de Bombeiros, outrora usado para apagar incêndios, era responsável pela incineração dos livros, num processo de inversão total de valores e significado das coisas como no romance de Orwell, em que o Ministério da Paz promovia a guerra e o Ministério do Amor promovia o ódio.
A narração acompanha a perspectiva de Guy Montag, bombeiro que queimava os livros e sentia prazer nisso, ao mesmo tempo em que ficava intrigado pelo prazer que as pessoas demonstravam sentir em ler livros. Até que o bom afeto, a amizade (e “amizade dada é amor”, segundo Riobaldo) transformou seu modo de ver as coisas.
Para encontrar uma garota que amava livros, de quem ele aprendera a gostar, que havia fugido da repressão, Montag se depara com o não lugar, onde todos viviam para salvar o que havia de mais precioso para a humanidade, seus próprios pensamentos e as expressões de suas ideias e suas sensibilidades registrados nos livros.
As pessoas se encarregavam de memorizar um livro ou um capítulo, e eram chamadas pelo nome dos autores memorizados. “Quero que conheça Jonathan Swift, autor daquele pernicioso livro político, As viagens de Gulliver!”, disse um dos personagens, Granger, que apresentava os membros da comunidade utópica ao ex-bombeiro incendiador de livros. “E esse sujeito aqui é Charles Darwin, e este aqui é Schopenhauer, este outro é Einstein.”
Papéis sociais
Mas o não lugar definitivo dessa utopia eram as próprias pessoas que memorizavam. Elas estavam dispersas pelo mundo, morando em qualquer lugar. “ – Quantos de vocês existem? – Milhares nas estradas, nos trilhos abandonados, hoje à noite, vagabundos por fora, bibliotecas por dentro.” Elas eram as próprias ferramentas de reconstrução do mundo.
Pensamento é ação, neste sentido. Ele se move, e sua essência é a liberdade. Caso a liberdade de expressão seja perseguida, ela se dispersará para se reorganizar de novo lá na frente e assim reconstruir o que fora destruído. Eis a esperança, e o valor da utopia. Esta é a mensagem implícita no desfecho do romance de Bradbury.
Segundo Ricouer, a estrutura da linguagem da utopia talvez seja fundamental para a reflexividade “pela qual podemos captar os nossos papéis sociais, poder conceber assim um lugar vazio de onde podemos refletir sobre nós mesmos” (2015, p. 21). É verdade que, se olharmos com boa vontade, veremos a utopia reaparecer no afrofuturismo, mas aí já seria uma outra história.
As narrativas servem como massas de ligamento, como cimento social, ou como fios de emoção e sensibilidade sociais que aglutinam grupos e comunidades em torno de projetos de mundo.
As narrativas distópicas são expressões da angústia de um tempo, mas também são círculos provocadores de esperança justamente com a parte da utopia que está dentro delas, como um cavalo de Troia, como um germe diferente que faz brotar um recomeço.
Referências
BENTIVOGLIO, Júlio. História e distopia – a imaginação histórica no alvorecer do século 21. 2. ed. Vitória: Editora Milfontes, 2019.
BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. 5. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
MUMFORD, Lewis. The story of utopias – ideal commonwealths and social myths. London: George G. Harrap & Co Ltd.: 1923
RICOUER, Paul. A ideologia e a utopia. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Texto originalmente apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Cultura e Sociedade, ministrada pelo professor Nildo Viana, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (Mestrado) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em novembro de 2021. Revisado e com algumas modificações e adições.