Naquela manhã, o dia estava claro e o céu sem nuvens. Como de hábito, levei Alfa pra passear, esticar as pernas e dar aquele galope nos fundos de casa onde ele se alivia do cocô e do xixi. Dócil e sociável, e pra lá de irrequieto aos quatro anos, sempre espera que eu termine meus alongamentos em frente aos grafites desenhados por Lecy e companheiros nas paredes das casas vizinhas no Setor Sul.
Duas alegrias em contemplar as pinturas e acompanhar de longe a corrida do Alfa, que parece sorrir. Lembra uma criança livre e saudável e me sinto orgulhoso e privilegiado de partilhar com ele esse momento. A certa distância ele para, a esperar que eu retome a caminhada e deixe pra trás o índio e a índia de Lecy fixados na parede me olhando fixo. Alfa sempre mais rápido, sem coleira. Uma dor no pé me faz caminhar devagar, passando pela madona em posição de pietá, inadvertida escultura de pedras encostadas no muro do vizinho.
Mais adiante na parede a negra africana leva nas costas o seu molequinho e me lembram Clementina de Jesus em canto de trabalho: Muriquinho piquinininho, muriquinho piquinininho, parente do que samba na cacunda/Prurugunta aonde vai/ Parente do quilombo do Dubai/ Eee, chora, Congo/ Congo, chora/Chora, eee, cambada/ Chora, Congo, chora. Mas agora não estão chorando. Ela muito altiva encara nosso olhar e o menino está sério.
Alfa estanca lá na frente me esperando no Bacião, a quadra de esportes onde moram corujinhas nos barrancos.São umas seis. Todo dia a mesma ladainha, uma delas se encarapita no alto da cesta de basquete e nos ameaça com seu chirriar (mas não é o uuh uuh, é um mais esganiçado, ameaçador, com quem diz: “aqui, não”). Sinto que estou a ponto de sair do politicamente correto, elas ameaçam bicar a cabeça do Alfa em voo rasante. Quando isso acontece levanto os braços em forma de asa de um pássaro maior. A corujinha desiste e aí é a vez do bem-te-vi dar uma bicada nela. Aha, salve o bandoleiro das estradas e sua máscara preta nos olhos! Bem-te-vi encara gavião e, meninos, eu vi, numa cachoeira em Goiás, uma cobra foi conduzida dos galhos de árvore em que passeava melifluamente até sua toca nas pedras pela ação concertada de quatro bem-te-vis que se revezavam em diagonal.
Duas casas de joão-de-barro desfazem a lenda de que são construídas sempre de um jeito que evita chuva e vento numa determinada posição, mas não essas penduradas a pouca distância numa grande árvore descascada parecendo cenário de filme de terror. Cada uma aponta prum lado. Será que o arquiteto bebeu?
E o Alfa me esperando, sempre farejando, quem sabe atrás de uma carniça que é o que cachorro mais gosta. Andamos um pouco até a parede da Perereca Chapada e o Cão Chupando Manga, mais uma dos Lecy´s brothers. Foi quando se deu. Alfa saiu em desabalada carreira, pulou no peito de um funcionário do cartório da esquina, atravessou avenida de duas pistas e sumiu. Risco de ser atropelado. Taquilpariu, que é que vou dizer em casa? Eu já devia ter desconfiado. Um dia antes, ele não parou de uivar. Tá no cio, intimado por alguma parceira? Saudade atávica de puxar trenó na Sibéria? Quer se comunicar com quem, seus lobos ancestrais?
Você já perdeu filho na praia? Parecido. Who let the dogs out? Who, who, who, who, who? Tem nada a ver música de Baha Men, é só um cachorro, não estou numa festa, aliás preciso correr com pé doendo e chegar a tempo de tomar banho, beber rápido um café magro e atender no consultório, e não sou nenhum “pit bull” nem mesmo transferencialmente pelo que me consta e só se pensa besteira nessa hora.
Mas aí o poder da palavra, você pergunta. Viu um cachorro assim assim? Não, responde o senhor em frente à pizzaria, mas deixe seu telefone, se for o caso… Obrigado, e vocês viram, não, não, e já estamos aqui há um bom tempo. Dou a volta no quarteirão, chego na garagem, por aqui também não, qualquer coisa lhe aviso. Obrigado, onde esse cachorro cachorro foi se meter e logo agora não vai dar tempo. Ali no quartel da PM ninguém também viu nada e eu ainda me dirigi ao Parque Areião hoje rebatizado de Washington Novaes que também gostava de cachorro.
Tem uma hora que você desiste e volta pra casa, tenho que trabalhar, e me acostumar com mais uma perda na vida, sem drama. Aí o milagre acontece. Tô vendo o senhor da pizzaria falar com dois rapazes e me apontando. Do outro lado da rua um deles trazia na guia um cachorro que.. era o Alfa! Parecido, mas será que é ele mesmo? Eles vem em direção a mim ainda com cara de dúvida, será que esse cara é mesmo o dono, mas logo a suspeita justificada se foi porque o cínico do cachorro botou aquelas duas orelhinhas pra trás me sorrindo com cara de quem sabe que fez merda, pulando com aquelas duas patinhas grandonas no meu peito e piscando o olho me dizendo foi mal.
Bom, aí os dois jovens de nome Luis e Mateus me contaram que ele foi parar numa concessionária de automóveis, desceu até o porão onde serviam café, comeu bolo e fez xixi nos pneus de novos e seminovos BMWs. Foram até uma pet shop, pediram emprestado uma coleira nova, e conduziram Alfa. Mas como é que eles vieram na direção certa? Que confluência exata foi essa? Fizeram questão de nos levar em casa. Deram ainda o conselho de colocar na coleira o número do meu telefone para casos assim. Eu com cara de besta, devia ter pensado nisso antes, embora, como ficou provado, não foi preciso.
Deu tempo de chegar em casa, tomar banho, vestir-me, beber um cafezinho e começar a trabalhar, com a sensação de que milhares de pequenos eventos aconteceram em poucos minutos.
Não tenho mais coração pra isso. Da próxima vez, nada de martelos agalopados do Senhor Alfa. Se é ele quem me leva a passear, então vai ser na rédea curta, coleira e guia. Tudo bem quando termina bem, mas sinto que perdi alguma coisa.
Que aventura Roberto.