Os contos mais significativos de Rubem Fonseca (1925-2020) estão basicamente nas suas quatro primeiras coletâneas (Os prisioneiros, 1963; A coleira do cão, 1965; Lúcia McCartney, 1969; Feliz Ano Novo, 1975). As temáticas, e às vezes personagens ou cenas desses contos, reaparecem em vários dos romances que ele publicaria mais tarde.
O advogado Mandrake, por exemplo, insígnia da ficção nacional (presente em três romances e diversos contos posteriores), surgiu em 1969, no conto “O caso de FA”, do livro Lúcia McCartney.
A violência urbana é uma temática recorrente na obra de Rubem Fonseca, e os contos que a retratam foram os que deram fama ao autor. Mas a realidade atual, explicitada e naturalizada cotidianamente pela mídia, ofuscou o brilho dessas narrativas, embora a técnica apurada ainda esteja lá.
O que permanece como onda viva de uma estética sem igual são inúmeros outros contos. As tramas são sempre feitas numa naturalidade diáfana, e retratam não só a violência, mas também os desejos, o sexo, a indiferença social, a angústia, o amor, a força física, as nuanças intelectuais, o pseudointelectualismo.
O autor foi um dos primeiros a criar enredos falando de cirurgia de modelação de sexo, com uma personagem hermafrodita no conto “A opção”, de A coleira do cão. E não fez isso pelo mérito do pioneirismo, mas para indicar uma qualidade intrínseca do ser humano, que é a de se moldar pelo desejo ou a uma dada condição.
O conto que me interessa neste momento é exatamente desses que podem ser jogados na roda do tempo presente para discutir certas tendências da existência humana, “A matéria do sonho”, que fala da relação de um jovem com bonecas infláveis.
Ele está no livro Lúcia McCartney, antologia que não se cansa de falar da mulher e suas correlações. Parece que alguém só veio a perceber isso em cima da hora, porque sua primeira edição foi preliminarmente intitulada (talvez pelo próprio Fonseca) Ficção e não, segundo Sérgio Augusto, no posfácio “Às sombras dos Beatles”, da edição de 2009 pela Editora Agir.
Aliás, se fôssemos concentrar as temáticas do autor num só nome, talvez a palavra-chave não fosse “violência”, mas “mulher”, um substantivo que encerra quase tudo na obra de Rubem Fonseca, como se dela saíssem o desejo e a motivação de escrever.
“Lúcia McCartney” é o conto sobre uma prostituta cujo nome de guerra é o do título. Ela tem 18 anos e gosta dos Beatles. Ela mesma narra sua vida, teatralizando entre o ocorrido e o imaginado, colocando em paralelo as duas ações, sobre o drama de ter-se apaixonado por um cliente chamado José Roberto, com o dobro de sua idade.
Embora haja um desfecho desolador, “Lúcia McCartney” é uma história fofa, como se diz hoje, mas na época surgiu como um vendaval de novidades, “o relato mais inventivo” do livro homônimo, de acordo com Sérgio Augusto, que coordenou a reedição da obra do autor pela Agir.
Ao narrar sua própria história, a personagem a entrecorta “por diálogos de verdade e diálogos inventados (mas possíveis), sonhos autênticos e imaginados, impressões subjetivas, cartas, telefonemas, num jogo fascinante de truques e opções formais. Para Sérgio Sant’Anna, ‘nunca um conto foi tão representativo de uma época e nunca o famigerado duelo forma-conteúdo conheceu equilíbrio semelhante’”, diz Sérgio Augusto.
Entre o desejo e o poder
Mas “A matéria do sonho” envelheceu melhor ainda que “Lúcia McCartney”. Trata-se de uma história intrigante sobre uma série de questões que envolvem desejo e tecnologia, prazer e ciência, solidão e poder, além de outras coisas que sondam a alma humana, ao mesmo tempo em que rondam a narrativa, sem necessariamente se expressarem com palavras, mas pelas lacunas ou pelo silêncio.
A trama parece banal. Um rapaz solitário e desempregado arranjou um emprego na casa de dona Julieta e seu Alberto, para cuidar deste, dando-lhe banho, comida, e colocando-o na cadeira de rodas para passear com ele.
Dona Julieta incentivou o cuidador a ler, e lhe emprestava os livros do filho dela, o doutor R.. Ele leu muito, de Alexandre Dumas a Dostoiévski, de Thomas Hardy a Sartre. Trabalhou dois anos naquela casa e leu centenas de livros (aliás, de fato, são citados mais de cem títulos de livros neste conto), depois pediu as contas. Sua vida começa a mudar aí.
Ao ficar desempregado, não saía do quarto onde morava, e, já debilitado, recebeu a visita do doutor R., que conversou com ele, fez perguntas. O conto começa a ficar interessante pelo modo como esse cara é moldado por dentro em relação ao desejo e suas inclinações sexuais.
Iniciou-se sexualmente pela zoofilia, e cresceu assim. Nunca teve relação sexual com uma mulher. “Quando era garotinho, eu comia galinhas. As galinhas eram quentinhas, eu gozava. Depois cresci e passei a comer bichos maiores; cabras e éguas.”
O doutor R., então, oferece emprego no escritório dele para o ex-cuidador, compra-lhe roupas, paga-lhe um salário bom o suficiente para ele gastar com livros, discos, gastronomia, e vai ilustrando-o, aplicando o verniz da erudição, do gosto e da sofisticação.
O ex-cuidador, agora um rapaz de escritório, mudou de endereço, foi morar no quarto alugado do apartamento de uma viúva. Doutor R. viajou e, ao retornar, entregou-lhe uma boneca inflável chamada Gretchen, objeto de desejo (como são as mulheres para os homens, no universo machista ou antissocial), o mais próximo que o rapaz jamais esteve ao lado de uma figura feminina.
A partir daí, o conto se envolve numa espiral soturna de eventos. O rapaz, que é o narrador do conto e nunca diz seu nome, não sabe bem o que fazer com Gretchen, a princípio. Mas, aos poucos, vai criando intimidade, dorme abraçado com ela. Trabalha, lê, pensa nela e fica “doido pra voltar pra casa”.
Barulhos estranhos
Ao se tornar íntimo da criatura formidável, o rapaz já sabe o que fazer. “Quando cheguei em casa disse para Gretchen hoje vou te chamar de Mônica. Mônica. Beijei-a dizendo: Mônica, Mônica. E gozei dizendo Mônica. Mônica era muito melhor do que uma galinha. Quer dizer, Gretchen era muito melhor. Evidentemente Gretchen não reclamava de eu chamá-la de outros nomes. Kátia. Roxane. Anamaria. Regina. Cabrinha.”
Neste momento, já sabemos que ele foi construído pelo torvelinho do desejo. Sua frágil subjetividade foi soprada pelo projeto do doutor R., que foi moldando a alma do rapaz. Para fora, projetam-se o trabalho, os livros, a ilustração dos saberes e dos prazeres visíveis, como tomar vinho, comer um bom prato. Por dentro, o desejo como lastro e pilastra. É assim que se constrói um homem no estaleiro do patriarcado e na cultura do individualismo.
A viúva ouvia barulhos estranhos no quarto do inquilino. Um dia, ela lhe perguntou se ele estava sonhando, pelos sons que produzia. O rapaz então comenta com seu mentor sobre isso, e ele lhe diz: “Nós somos a matéria de que os sonhos são feitos, e nossa pequena vida está envolta pelo sono, e acrescento, eu acrescento, continuou o doutor R., envolta pelo sonho.”
Dá para acrescentar um ponto neste conto. Somos feitos de desejos, e os desejos fazem os sonhos que produzem nossa realidade, os sonhos que se realizam. Dependendo de como esses desejos são alimentados, nos tornamos o avesso daquilo que gostaríamos de ser. Tornamo-nos monstros devoradores de nós mesmos.
O rapaz era um indivíduo com baixa socialização. O único valor socialmente afetivo eram os velhinhos com os quais conviveu durante dois anos. O resto eram compensações. “Amei Gretchen todas as noites falando no seu ouvido para a viúva não ouvir, mordendo sua orelha, seu peito, o bico do seu peito, ah, Gretchen, submissa. Li. Visitei os velhinhos.”
Era assim que ele vivia. “Um dia aconteceu uma desgraça que até tirou a minha vontade de ler. Não sei como pude, com apenas uma ou duas dentadas, fazer aquilo com Gretchen. Não podia nem olhar para ela, disforme sobre a cama.” Ele ficou triste, até o doutor R. trazer outra boneca, que se chamava Cláudia.
A figura da mulher como objeto descartável está implícita no conto, como fruto de projetos calcados no desejo sem alteridade. Gretchen, Cláudia, e todos os nomes que desfilam na cartografia de desejo do personagem são metáforas de uma realidade brutal contra as mulheres.
Quantas delas na vida real tiveram o mesmo fim que Gretchen, substituídas por Cláudia, que terá o mesmo fim que Gretchen? Rubem Fonseca mostra mais do que uma mulher de plástico como alternativa para aplacar a solidão; mostra o quanto somos moldáveis.
Neste sentido, “A matéria do sonho” é um conto pós-moderno feito na década de 1960, que traz o horror líquido da vida, horror feito de um material há muito tempo utilizado pelo homem para se construir como homem, sempre desejando a mulher ideal, que não passa de objeto. Precisamos pensar sobre isso, porque todos nós, homens, de uma maneira ou de outra, com menor ou maior grau, podemos nos enxergar nesse espelho.
Gozar sendo pleno
Esse desejo – esse sonho – está presente em todas as narrativas que nos constituem como seres históricos. O mito hebraico diz que nós, do sexo masculino, fomos moldados no barro (um claro empréstimo do mito poético de Gilgamesh).
“Então, formou o SENHOR Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gênesis, 2:7 – tradução de João Ferreira de Almeida). Este primeiro homem seria chamado de Adão.
Já a mulher, segundo a tradição bíblica, foi feita de um material mais sofisticado, trabalhado no oxigênio, no sopro poderoso de Deus, a partir de um tecido orgânico de Adão.
Deus, então, fez Adão dormir e “tomou uma das suas costelas e fechou o lugar com carne. E a costela que o SENHOR Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher e lha trouxe” (Gênesis, 2:21-22).
O mais interessante disso é que Adão, naquele momento, já se sentia autor da mulher, dando-lhe o nome de Eva, e dizendo “esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gênesis 2:23).
Se há um sonho ancestral que nos molda o tempo inteiro é este, o sonho de poder criar e dominar a vida criada. Se pudéssemos, construiríamos a mulher dos nossos sonhos. E o mais aterrador disso tudo é que no estojo de cada sonho há sempre desejos terríveis, além das paletas comuns de dominação, apreciação, gozo, violência e, não raro, abandono ou desprezo.
Olhando para o conto de Fonseca, as primeiras questões ígneas são estas. Que sonho é esse? De onde ele vem? Seria um sonho de controle? E a matéria desse sonho? Onde ela está na tessitura da narrativa? Está na carne, no corpo inteiro, na vida, no mundo sendo criado para o rapaz, pelo doutor R..
Está nos objetos constituintes da mulher inflável, plasmados no desejo secreto masculino e nas suas inclinações, mas está também na sensação de poder. O sonho é o sonho do gozo absoluto. Gozar sendo pleno, sem máscaras civilizatórias. Gozar como um animal, com todas as forças da natureza, ou mais, gozar como um deus, onipotente e sem limites.
Em todo caso, nossa origem é o chão. Isso iguala as narrativas bíblica e mitológica à científica, segundo a qual somos frutos de uma sequência milenar de voltas evolutivas em torno de um material erguido do solo, feito ensopado de química, um guisado de argila, a chamada sopa primordial, um melechete de barro opariniano.
Quando morrermos, nossa matéria se fossilizará, como fossilizaram os seres que viveram e morreram há milhões de anos, criando uma viscosidade orgânica que um dia seria chamada de petróleo. Do petróleo surgiu uma força avassaladora do mundo, que propôs oferecer comodidade à vida em troca da liberação da morte que há na sua essência.
Do petróleo faz-se o plástico, do plástico cria-se quase tudo, inclusive o material das sex dolls atuais (mistura de borracha, veludo, silicone e polímero termoplástico). Do petróleo, cria-se um tipo de riqueza e de dominação sem precedentes.
O que está em jogo na narrativa de “A matéria do sonho” é, portanto, o sonho de domínio que traz prazer e afasta a sensação de solidão, momentaneamente. O cerne da misoginia talvez esteja aí.