[Coautora: Amanda Malerba[1]]
Desde que foi estabelecida a Constituição Federal de 1988, em que a população brasileira alcançou a tão sonhada liberdade de expressão sem que fosse julgada ou atacada pelas autoridades, o conceito de tolerância também tomou novos rumos, pois, anterior a isso, o cenário era de amplo domínio da intolerância por parte da ditadura militar. Após a abolição da censura, a tolerância tornou-se juridicamente uma virtude ética fundamental para a sociedade e sua importância é inegável.
O filósofo francês Paul Ricoeur (1913–2005) propõe a existência de níveis de tolerância, concebendo-os mediante uma hierarquia por intensidades, pautada pelas categorias de um a cinco, na qual a primeira: “tolerar pouco”, e a quinta: “tolerar muito”.
Com efeito, a categoria ideal em meio a esses níveis de tolerância é a terceira na hierarquização, segundo a qual: “eu desaprovo sua maneira de viver, mas eu respeito nela sua liberdade de viver como quiser e reconheço seu direito de manifestá-la publicamente” (RICOEUR, 1996, p. 191, apud ALBERTINI; PEREIRA, 2020, p. 22). Nesse caso, mesmo que haja repulsa da maneira como o outro se expressa, há a consciência de que vivemos em democracia, e cada um pode pensar e agir como quiser, entendendo que existe limite nessa liberdade, pois o direito de um acaba quando o direito do outro começa.
O quinto nível da hierarquização trata de tolerar toda e qualquer tipo de opinião e modo de viver de outrem, desde que não prejudique a terceiros (RICOEUR, 1996, apud ALBERTINI; PEREIRA, 2020, p. 22). Esse nível é delicado e costuma gerar confusões. Poderíamos indagar: nesse caso, até mesmo os intolerantes têm direito de expressar os seus pontos de vista? Essa ideia, a de que a intolerância tem direito a voz, é mesmo uma espécie de resistência à censura?
Imagine um cenário em que todos podem expressar suas opiniões abertamente, incluindo opiniões racistas, homofóbicas, neonazistas e todo tipo de posição que não tolera a existência de um grupo específico de pessoas. Mesmo que isso não ultrapasse o campo da opinião, seria caótico, não? Uma ameaça à própria democracia. É possível relacionar tal situação com o paradoxo da tolerância de Karl Popper, uma vez que “a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância” (POPPER, 1974, p. 289). Quando os tolerantes arriscam tolerar os intolerantes, ficam sujeitos a sua própria destruição, pois a concepção do intolerante consiste em não aceitar quem pensa diferente, utilizando da força física ou até mesmo de armamento bélico, em casos extremos, para sustentar seus princípios e defrontar oposições. Dessa forma, Popper demonstra o perigo em apoiar e aceitar discursos intolerantes.
Para fins de ilustração, há pouco tempo pudemos observar um fato ocorrido durante a transmissão ao vivo de um vídeo no Youtube, em que o ex-apresentador do Flow Podcast, Bruno Aiub (conhecido popularmente como Monark), expressou livremente sua opinião ao defender a possibilidade da existência de um partido nazista reconhecido por lei. É evidente que Monark ultrapassa o limite do quinto nível de tolerância, segundo a hierarquização de Ricoeur. Muitos buscaram compreender o contexto da opinião polêmica do youtuber buscando comparar sua posição com posições defendidas em vídeos anteriores, e puderam concluir que ele é um defensor fervoroso da liberdade de expressão sem limites, e não necessariamente um adepto ao nazismo.
Todavia, e este é o ponto que mais nos interessa aqui: a “liberdade ilimitada de expressão” praticada por Monark produziu objetivamente um discurso de ódio – aos judeus – e, devido à alta audiência do programa, sua repercussão foi bem vasta. Muitos consideraram que houve apologia ao nazismo, manchando assim a reputação do programa e fazendo com que diversos patrocinadores desfizessem seus contratos. Além disso, “o feitiço virou contra o feiticeiro”, pois Monark também foi vítima de intolerância, uma vez que, após o ocorrido, o youtuber relatou ter recebido mensagens de ódio, por exemplo, sugerindo-lhe que ele deveria suicidar-se depois de ter transmitido tal ideia em rede nacional, o que, ironicamente, pode ser interpretado como se Monark sentisse na pele o que é ter alguém, em razão da prática de sua liberdade ilimitada de expressão, manifestando o desejo de sua inexistência.
Esse é um entre vários exemplos do mal que a falta do estabelecimento de limites para a expressão e para a tolerância pode acarretar. É necessário ter consciência de que nem tudo se expressa, nem tudo se tolera. Mas até que ponto tolerar? A questão é complexa, mas a resposta pode ser simples: basta que olhemos para a situação posta e reflitamos se tem base inclusiva, caso não tenha, se trata de intolerância, e para a intolerância, como já vimos, não deve haver tolerância. Como sociedade democrática, nossa tarefa ética maior é combater convicções intolerantes.
Referências
AQUI SE FALA. A liberdade de expressão: sua compreensão e seus limites. Entrevistado: Lenio Streck. Entrevistador: Plínio Melgaré. Rio Grande do Sul: PUCRS, 10 mar. 2022. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/3i13WPaEEzul0QhBWqARwi. Acesso em: 15 jun. 2022.
ALBERTINI ZANATA, R; PEREIRA BORGES AUGUSTO, R. Pensar a tolerância com Ricoeur: alcance e limite de um conceito. In: A filosofia de Paul Ricoeur em diálogo. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. pp. 16-31.
FLOW PODCAST. “MONARK – Flow #42”. Youtube, 29 abr. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lE3YmkSCq8o&t=1476. Acesso em: 13 jul. 2022
POPPER KARL, R. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução: Milton, A. Vol. 2. Belo Horizonte: Universidade de São Paulo, 1974, p. 289
TV REBORN. “Monark fora do flow”. Youtube, 8 fev. 2022. Disponível em: https://youtu.be/iCXGi8jLuY4. Acesso em: 13 jul. 2022.
[1] Mestra em Filosofia (Unifesp). E-mail: unifesp.amanda@gmail.com
O artigo é o 12º da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
- Resistência à intolerância em grupos polarizados, de Luiz Augusto Flamia e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/01/resistencia-a-intolerancia-em-grupos-polarizados/.
- Saúde, substâncias psicoativas e ideologia, de Jaine Aparecida Colecta Galhardo e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/08/saude-substancias-psicoativas-e-ideologia/.
- O padrão da propaganda fascista, de Paula Mariana Rech, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/10/15/o-padrao-da-propaganda-fascista/.