[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Tarde no Recife
Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Maxime,
Cais do Abacaxi. Gameleiras.
Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.
Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um camelô gritando: – alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.
Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
[holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas
[do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do rio.
Poemas (1947)
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[2]
O relógio
Quem é que sobe as escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo compasso
Com uma perna de pau?
Quem é que tosse baixinho
Na penumbra da antessala?
Por que resmunga sozinho?
Por que não cospe e não fala?
Por que dois vermes sombrios
Passando na face morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela porta?
Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e tenras
Nascendo do solo frio.
Um punhal feriu o espaço…
E o alvo sangue a gotejar,
Deste sangue os meus cabelos
Pela vida hão de sangrar.
Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo passa
Com sua capa vazia.
O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que arpejam
Na aresta do seu cristal.
No tempo pulverizado
Há cinza também da morte:
Estão serrando no escuro
As tábuas da minha sorte.
Poemas (1947)
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[3]
O salto tripartido
Havia um arco projetado no solo
Para ser recomposto em três curvas aéreas,
Havia um voo abandonado no chão
À espera das asas de um pássaro;
Havia três pontos incertos na pista
Que seriam contatos de pés instantâneos.
Três jatos de fonte, contudo, ainda secos,
Três impulsos plantados querendo nascer.
Era tudo assim expectativo e plano
Tudo além somente perspectivo e inerte;
Quando Ademar Ferreira, com perfeição olímpica,
Executou, em relevo, o mais alto
– Em notas de arpejo
– Em ritmo iâmbico
O tripartido salto.
Signo estrelado (1960)
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[4]
Filho pródigo
Minha mãe! Aqui estou.
Velho, doente, já bem próximo da morte.
À espera de um trapo de terra, de um molambo de lama
Para cobrir o meu corpo contra o frio do vento,
Que, feito em chuva, penetrar na terra de minha última carne.
E tu, Minha Mãe! se estiveres n’algum lugar
De tua grande ilusão, não chores.
Cada vivo morre uma parte da morte de cada próximo.
E o seu fim total terá quando morrerem todos os seus mortos;
E o morto? Morre também em cada um dos vivos que morre.
Minha Mãe, aqui não estou para te chamar
Mamãe, e para te pedir que venhas me perdoar;
Estou aqui para te dizer que sempre estive em ti
E que fui uma parte das muitas que tiveste:
A parte mais humilde, mais simples, mais amarga… mais triste
E, ao mesmo tempo, a mais severa, mais dura, mais firme e resoluta.
Minha mãe, dentro de mim, comigo, morrerás de novo.
Mundos paralelos (1970)
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[5]
Soneto somente
Nasci na várzea do Capibaribe
De terra escura, de macio turvo,
De luz dourada no horizonte curvo
E onde, a água doce, o massapê proíbe.
Sua presença para mim se exibe
No seu ar sereno que inda hoje absorvo,
E nas noites, com negridão de corvo,
Antes que ao porto do seu céu arribe
A lua. Assim só tenho essa planície…
Pois tudo quanto fiz foi superfície
De inúteis coisas vãs, humanamente.
De glórias e de alturas e universos
Não tenho o que dizer nestes meus versos:
– Nessa várzea nasci, nasci somente.
Mundos paralelos (1970)
Perfil
Joaquim Maria Moreira Cardozo nasceu em Recife no dia 26 de agosto de 1897 e morreu em Olinda em 4 de novembro de 1978. Engenheiro estrutural, integrou a equipe de Oscar Niemeyer na construção de Brasília e no conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Foi ainda poeta, contista, dramaturgo, professor universitário, tradutor, desenhista, caricaturista e editor de revistas de arte e arquitetura. Seus primeiros poemas datam de 1924, mas sua produção poética começa a aparecer em livro em 1947. Escreveu 11 livros, entre os quais se destacam: Poemas (1947), Signo estrelado (1960), O coronel de Macambira: bumba meu boi, em dois quadros (1963), Trivium (1952-1970), Mundos paralelos (1970), Poesias completas (1971), Os anjos e os demônios de Deus (1973), O interior da matéria e o capataz de Salema (1975). Em 2009, a Editora Aguilar publicou Poesia completa e prosa. Desfrutou de longa convivência com os modernistas e com os intelectuais de seu tempo. Às vezes de caráter melancólico e experimentalista, a sua poesia tem a cidade de Recife e o Nordeste como referência temática.