Pelos traços de Bob Kane e Bill Finger, Batman aparece pela primeira vez no nº 7 da revista Detective Comics, de 1939, nos EUA. A partir daí, ganhou muitos cartunistas que dariam contornos à personagem. Nas décadas seguintes, sem muitas variações, a sua mitografia seria moldada da forma como a conhecemos hoje: um inimigo implacável (Coringa), um coadjuvante (Robin) e, entre tantos, um artista consagrado – o melhor de todos.
Frank Miller, depois de vários antecessores, inventou o seu Batman.
Nas histórias em quadrinhos, nunca deixou de imprimir ao gênero o seu talento gráfico, criando obras-primas (Sin City, Ronin, Os 300 de Esparta). Para os admiradores de Batman, não me refiro a O Cavaleiro das Trevas, nas suas várias versões. Com entusiasmo de leitor, sem nunca de deixar de relê-lo, eu cito Batman – Ano Um, história de 1988, que foi produzida com desenhos de David Mazzucchelli e coloração de Richmond Lewis, lançada no Brasil há mais de 30 anos pela editora Abril. Em 2005, a editora Panini publicou uma edição em capa dura.
Eu não saberia apontar outra história sobre essa personagem que seja mais complexa, melhor desenhada e que tenha, por fim, uma imaginação visual tão próxima do desbunde gráfico. Além, é claro, do roteiro e dos diálogos nada tediosos. E de citações a Edward Hopper, finíssimas e sutis, que ampliam a imaginação. O intertexto visual. A combinação de imagem e texto, enfim, é quase sem redundância, o que não é pouco.
Ele criou a gênese, a nossa Bat-Bíblia. Qualquer outra variação sobre o herói corre o risco de se tornar um rascunho. Frank Miller é o deus de Batman. E inventou-o pela razão mais primitiva, que nos reduz: ele é a nossa humanidade ultrajada, aquela que nos povoa de sofrimentos incompreensíveis. A família, por exemplo, no gibi, é uma história de luto. Na literatura dita “séria”, como em Eugénie Grandet, Balzac trata do mesmo tema com outra competência. A dor da perda não tem gênero próprio para se expressar.
Batman previa a sua maldição noturna: vigiar, do alto dos edifícios, os malfeitores que tramavam delitos em becos escuros; entrar em ação no momento oportuno para neutralizar os bandidos; sanear a vida urbana de suas ervas daninhas. Aliás, sempre desconfiara do seu destino: a sensação de metamorfose que seria consumada mais tarde o acompanhava como um pressentimento indelével. Os anos de tormento, que forjaram a sua dupla identidade, infernizavam-no por causa de duas palavras: justiça ou vingança, as quais, no cipoal semântico e no desdobramento da narrativa, podem significar a mesma coisa, dependendo de como esse conflito pode ser interpretado.
Ele tinha razão de sobra, pois esse sentimento vinha de uma dor que martirizava a sua alma. Assim, a transformação que sofreria depois remetia-o a uma noite em que assistira ao assassinato de seus pais. O infeliz órfão. Aos 25 anos de idade, procurava agora um sentido para sua vida. Os traumas, nós sabemos com Freud, produzem monstros.
Muitos anos depois dessa tragédia familiar, quando se preparou para a luta contra os delinquentes, o milionário Bruce Wane volta a Gotham City na mesma ocasião em que James Gordon assume o posto de tenente no departamento de polícia. A cidade sem esperança, os policiais corruptos, os políticos mafiosos, as quadrilhas organizadas – o de sempre, nas HQs e na vida. Mas o herói conhecia o Mal e estava decidido a combatê-lo. Ele farejava a três quadrinhos a canalhice.
Não há dúvida de que, sob muitos aspectos, Batman é um herói inconformado, generoso e justo, com muitos recursos de atuação. No meio da escória, durante uma ação, escolhia às vezes aliados surpreendentes. No futuro, será Gordon outro aliado, quando se tornará comissário de polícia. O super-herói intui quem tem salvação. O olhar, que tudo corrige, ou seja, o olhar bat, e, evidente, a sua noção de justiça. Uma moral, a das HQs. A do justiceiro.
Apesar das armas improváveis, que sempre seriam decisivas em inúmeras situações de combate ao crime, Batman nunca teve ajuda de extraterrestres ou de forças paramilitares. A sua indumentária no gibi é resultado de vidros estilhaçados ao acaso.
Vocês se lembram?
Um morcego, em voo cego, rompe inesperadamente a vidraça do seu estúdio e desaba aos seus pés. Nesse momento, ele percebe tudo. A personagem nasce daí, dessa epifania grotesca que lhe aponta um caminho para aterrorizar os meliantes. Do medo infantil surge a dupla identidade. O milionário benemérito e o vigilante. A resposta à sua aflição muitos anos depois. O homem-morcego, um herói pop do nosso tempo.
Finalmente, alguém nos ensinou a ler Batman.