Nos anos em que morei em Paris, um amigo latino-americano que nunca pensou em se atirar no Sena, como no filme Boudu sauvé des eaux, de Jean Renoir, telefonava-me de vez em quando com a única motivação de me convidar para esvaziarmos algumas garrafas de um bom borgonha. O encontro seria no mesmo café de que gostávamos.
“À nous les vins!” – bradou em um francês cujo sotaque denunciava a sua origem de hermano.
Sempre telefonava para conversar sobre o estranho, os sentidos errantes, as formas sem nome, o mundo em desequilíbrio, fazendo o convite antes de encerrar a ligação. Nessas ocasiões, eu já preparava o meu espírito para andar pelos labirintos – o vinho como passe-partout. Telefonar para ele, na verdade, era sempre combinar um vinho.
Oh, senhores, não sejamos porém brutos e insensíveis – nós bebíamos principalmente pelos mundos aniquilados e incompreendidos e ainda pela necessidade absurda que tínhamos de procurar doçura em todas as coisas, numa época em que os países de onde vínhamos invocavam mutilação e ruína. Tínhamos uma história comum na América que não camuflava a sordidez.
No século 16, a Europa e o Novo Mundo; nos meus felizes anos de Paris, os exilados de toda parte e as ditaduras impiedosas.
Ele morava em Denfer Rochereaud, e o seu nome era Juan. Exilado do Chile, sobrevivia com pequena ajuda financeira que recebia da família e do que ganhava nos trabalhos temporários que arranjava. Ele estudava na Sorbonne e escrevia um romance sobre o qual às vezes trocávamos ideias.
Nesses encontros, dizia que as pessoas que bebem juntas formam uma irmandade desprezível, uma vez que acreditam em algum tipo de igualdade. Não importa de qual região seja o homem ou a língua que fala – só o vinho é capaz de surpreender se a uva indicar o elemento da terra que a faz renascer mais esplêndida. Se não havia igualdade nessa camaradagem – coisa de que duvidava –, havia pelo menos o fato de conversarmos à vontade sobre assuntos imediatos, outros permanentes. Ele não se cansava de debochar:
“Nous sommes des frères parce que nous aimons du vin” – sentenciava, rindo em seguida de suas elocubrações, às vezes inventivas, às vezes provocantes. Como um vinagre corrosivo, o seu humor era o das personagens cínicas, anarquistas, blasfemas, arrogantes.
Nas suas teorizações, o vinho vale mais do que os grãos e, se for então um grand cru, pode fazer até um gato sorrir, se esse felino tiver visitado, pelo menos em sonhos, o país de Alice. Quem nunca leu uma página da grande literatura francesa, dizia, tem a alma pendurada no gancho do açougue – e sacava o aforisma:
“O vinho é o outro nome de Proust.”
Todas as vezes que o enigma dos aliens caía no verbete das suas paixões, os meus encontros com Juan aumentavam a sensação de que era eu quem devia misturar tarja preta com álcool.
Aí, sem perder a pose, sorria, acendia outro cigarro, pedia mais uma garrafa e passávamos para outro tema, o que estava na fila.
Essa história está lá atrás, mascada como um chiclete, em diversas versões, conforme eu vá me lembrando dela. Assim, eu a conto mais ou menos. Se admiro as luzes da Torre Eiffel que mantêm acesa a glória de uma cidade e se recordo as alegrias que tive no Quartier Latin, sempre penso nos dias em que cada garrafa valeu a pena. Paris continua flertando com os que a adoram.
Antes de fazer o caminho de volta, fui despedir-me dele. Trocamos endereços e telefones e nos demos um abraço. E, surpresa, presenteou-me com uma garrafa de borgonha, dizendo-me de modo gentil:
“Para no olvidar nuestras conversaciones.”
Há algum tempo, depois de muitos anos, Juan escreveu-me. Ele não deixou de se referir aos borgonhas, nem de abordar alguns assuntos que causaram discórdias, nem das sutilezas da bebida, uma das quais, segundo ele, a mais importante, a que só existe para nos desorientar.
Ao final da correspondência, fez uma pergunta sobre um filme de Glauber Rocha a que tínhamos assistido na Cinémathèque. Nesse dia, num final de tarde, o cinza parisiense, imenso sobre as nossas cabeças, desbaratava a nossa capacidade de comentar o filme. A pergunta era simples e continha um desafio:
“Qual é mesmo o segredo de Deus e o Diabo na Terra do Sol?”