[Coautores: Ilker Luiz Alves Batista[1] e Jonathan Postaue Marques[2]]
Edmund Husserl (1859-1938), no texto A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental (1954), inicia sua argumentação constatando que a filosofia “se vê ameaçada em nosso presente de sucumbir ao ceticismo, ao irracionalismo e ao misticismo” (HUSSERL, 2012, p. 1). Husserl faz esse comentário na década de 30 do séc. XX, apresentando três posturas metodológicas que ameaçavam a filosofia: i) impossibilidade do conhecimento (ceticismo), ii) crítica à razão mediante a valoração da vontade ou da sensação (irracionalismo) e iii) espírito de erudição obscura (misticismo). Porém, no nosso mundo contemporâneo – século XXI –, o problema é outro: a “sobrevivência” da filosofia está relacionada com transformações nas esferas da ciência e da política.
Concentremo-nos apenas nas implicações do âmbito científico. Como a filosofia deve proceder diante de descobertas científicas? Como lidar filosoficamente com críticas sem racionalidade? Seria a interdisciplinaridade e a cientificidade alternativas para a tarefa da filosofia? A filosofia no contemporâneo é potencialmente engajada, mas não está efetivamente em crise? Para responder a essas questões, apontaremos dois desafios científicos que a filosofia enfrenta no contemporâneo, e a partir desses desafios apresentaremos duas alternativas para a tarefa filosófica, uma para a articulação epistemológica e outra para a resolução metodológica.
Giorgio Agamben (1942), filósofo italiano, citando as considerações de Nietzsche (1844-1900), conjecturadas por Roland Barthes (1915-1980), diz que “o contemporâneo é o intempestivo” (AGAMBEN, 2009, p. 58), ou seja, o inesperado. Segundo o filósofo italiano, o contemporâneo “é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Logo, a filosofia no contemporâneo pode ser entendida como uma relação temporal interpretativa, mediante a compreensão assintótica e a dissociação reflexiva. Compreensão assintótica é caracterizada por uma aproximação progressiva, mas nunca realizada totalmente, do fenômeno (presente) com o objetivo de interpretá-lo. Dissociação reflexiva alude a uma reflexão sobre o fenômeno (presente), mantendo distância dessa dimensão temporal para resolvê-la. O filósofo no contemporâneo, por sua vez, é o pensador inoportuno que, pela compreensão, aproxima-se do presente, sem jamais alcançá-lo, para interpretá-lo e, mediante a reflexão, distancia-se no presente para resolvê-lo. Suas atitudes são caracterizadas por um deslocamento existencial da reflexão e pela inatualidade temporal da compreensão.
Porém, seguindo o raciocínio de Agamben, é somente no instante que o contemporâneo (presente) pode ser interpretado, recebendo as trevas linearmente manifestas do “hoje” e percebendo a distante luz difusa do “ontem”. É na situação de “um ‘já’, que é também um ‘ainda não’” (AGAMBEN, 2009, p. 66), que o “instante” do intempestivo presente revela o contemporâneo. Desse modo, entre a crise efetiva e o engajamento potencial, a filosofia no contemporâneo deve estar à espreita do instante, tendo uma postura de suspeita anexada ao presente e dissociada no presente, para então interpretá-lo e possivelmente compreendê-lo.
Tendo apontado as características necessárias para a interpretação filosófica do contemporâneo, listaremos agora dois desafios científicos que a filosofia enfrenta no contemporâneo: 1º) os desafios da ciência para a filosofia, em seu âmbito disciplinar externo, e 2º) os desafios à cientificidade na filosofia, em seu âmbito disciplinar interno.
1º) A filosofia, em seu âmbito disciplinar externo, para rejeitar ou acolher os avanços e as descobertas das ciências, precisa examiná-los filosoficamente mediante um “entendimento arqueológico”, isto é, entender os fundamentos e os métodos da ciência em sua gênese – à maneira da fenomenologia husserliana[3]. A ciência é constituída de observação factual, formulação de hipóteses, verificação empírica, fundamentação teórica e resolução prática. As descobertas na física, por exemplo, sobre partículas elementares microscópicas e fenômenos espaciais macroscópicos, criam desafios da ciência para a filosofia nos campos da metafísica e da epistemologia. Porém, atualmente, o avanço das “tecnociências” é considerado um dos grandes desafios contemporâneos, segundo Ivan Domingues: “o império das tecno-ciências leva ao destronamento da ciência pela tecnologia ou das ciências básicas pelas ciências aplicadas”, de modo que haja até mesmo “a fusão da engenharia e da genética” pelas biotecnologias (DOMINGUES, 2006, p. 11). Assim sendo, para que a filosofia possa rejeitar ou acolher os desafios tecnocientíficos, tanto no campo da ética quanto no campo da epistemologia e da filosofia da tecnologia, é preciso investigar arqueologicamente os avanços e as descobertas das tecnociências em suas dimensões da industrialização empírica, do tecnicismo aplicado e até mesmo do transhumanismo. Para realizarmos uma possível articulação interdisciplinar, nossa alternativa epistemológica inicial é aplicar à pesquisa filosófica o entendimento arqueológico de cada área científica particular.
2º) No âmbito disciplinar interno, isto é, dos desafios à cientificidade na filosofia, encontramos o problema do identitarismo filosófico, caracterizado pelo acolhimento e pela reprodução acrítica e irrestrita de determinado filósofo ou escola, levando o pesquisador a se tornar um proselitista do pensamento de seu autor ou da perspectiva adotada. Logo, o identitarismo revela um reducionismo epistemológico, uma vez que desconsidera e até censura outras abordagens filosóficas ao supervalorizar sua própria perspectiva, que geralmente é dominada pelo afeto. Uma alternativa de solução a tal desafio é trabalhar com imparcialidade analítica, ou seja, desenvolver uma pesquisa com objetividade explicativa e validade lógica, sem a pretensão de confirmar convicções pessoais. “Isso é impossível”, dirá o leitor contemporâneo. Será mesmo que a imparcialidade analítica é impraticável, uma vez que a pesquisa filosófica/científica tem como objetivo o conhecimento e não os desejos individuais? Para realizarmos qualquer análise, efetuar toda crítica e apontar algumas soluções, nossa alternativa de resolução metodológica é conduzir a pesquisa filosófica partindo da imparcialidade analítica.
Portanto, entre o engajamento potencial e a crise efetiva, a filosofia contemporânea deve, retomando Agamben, receber a distante luz difusa do “ontem”, para que então possa perceber as trevas linearmente manifestas do “hoje”. Todavia, para acolher os avanços das ciências e não adotar uma postura tecnofóbica – rejeição desproporcional e insegurança ilimitada em relação à técnica –, a filosofia precisa se aproximar mais e compreender melhor a esfera científica. Para desenvolver pesquisas consistentes e distanciar-se do proselitismo, a filosofia precisa da objetividade explicativa e da argumentação válida. Desse modo, a tarefa da filosofia no contemporâneo, assintoticamente compreensiva e reflexivamente dissociável, deve ser a do entendimento arqueológico, para a articulação interdisciplinar (como resposta aos desafios da ciência), e a da imparcialidade analítica, para a resolução metodológica (como resposta aos desafios à cientificidade).
[Revisão de Pedro Silva e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó – SC: Argos, 2009.
DOMINGUES, Ivan. Desafios da filosofia no século XXI: ciência e sabedoria. Kriterion, Belo Horizonte, nº 113, Jun/2006, p. 9-25. Disponível em: https://www.scielo.br/j/kr/a/x5q3wt77vpYpMzCrqtVWvYK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 3 jan. 2023.
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Editado por Walter Biemel. Tradução: Diogo Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
[1] Estudante do curso de Filosofia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). E-mail: ilkerluiz@gmail.com
[2] Estudante do curso de Filosofia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
[3] p. 42. Cf. HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência de rigor. Revista de Estudos Universitários – REU, Sorocaba, SP, v. 1, n. 1, 2021. Disponível em: https://periodicos.uniso.br/reu/article/view/4585. Acesso em: 3 fev. 2023.
O artigo é o sexto da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.
- Culpa e consciências limitantes, de Luiz Augusto Flamia e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/18/culpa-e-consciencias-limitantes/.
- Monzani e a filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues, Paula Entrudo e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/25/monzani-e-a-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Como abordar textos filosóficos?, de Natasha Garcia Coelho e Paula Entrudo, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/01/como-abordar-textos-filosoficos/.
Ótimo texto para se debater alguns pontos do pensamento contemporâneo a partir da abordagem científica e filosófica. O ponto 2, da abordagem disciplinar, ao meu ver, é culpa das academias e das várias zonas de conforto do debate filosófico que se constroem pelos mestres e doutores de alguns “ísmos” (Aristótelel ismo, kantian ismo, modern ismo e etc.). A filosofia tem sua história dentro da própria história e sua lógica nesta relação de busca pela episteme. Ao meu ver não cabe a filosofia buscar engajamento científico a partir das práticas científicas, tecnológicas e das tecno-ciências. Mas sim, manter-se atentas às influências reais no campo epistemológico e ético. Isso nada mais é do que o processo filosófico de busca, assim como ocorreu na revolução científica do século XVI, assim como poderá ocorrer a qualquer momento. A busca pelo “entendimento arqueológico” não é um peso, mas a essência da própria filosofia desde de Sócrates. Se não for para buscar os por quês, os como e os para quê é melhor nem começar ou se importar com os acontecimentos. Saíamos das opiniões e caminhemos para a luz da episteme, mesmo que cause cegueira e desconforto, a busca pelo conhecimento e suas recompensas será maior que qualquer possibilidade de escravidão, mesmo que essa seja tecno-científicas.