Chovia, e muito, naquela noite.
E, se chovia, era porque havia nuvens no alto, ameaçadoras, sobre a sua cabeça – nuvens que despejavam o seu excesso como as cachoeiras arremetem a sua energia ao longo das corredeiras.
Por todos os deuses, ele não previu em nenhum momento a chuva – águas que encharcavam o seu lombo, pingos que desciam estrelando-se como fogos de artifício. Na verdade, pelo jeito que desabou sobre os montes e os arredores da cidade, essa precipitação era um fenômeno incomum.
Fazia um bom pedaço de tempo que estava ali, posicionado como atirador profissional – as árvores, as ramagens, os galhos e as folhas davam-lhe cobertura, mas a chuva perturbava-o, como se as gotas que caíam sobre a capa improvisada retirassem a sua concentração. Ela ecoava em seu ouvido o zunzum de um inseto desesperado e os gritos de folhas arrancadas.
Apesar de todos os inconvenientes da situação, da algazarra do verde e do vento açoitante, ele sempre fora um atirador meticuloso, considerado e solicitado para atos de vingança ou de outra estirpe.
Um dos melhores matadores, conforme o épico que floreava o seu nome.
A espera levou-o a lembrar-se da razão pela qual estava ali aguardando o momento do disparo.
Segundo os murmúrios que envolviam a sua fama, era um homem solitário, bruto e impiedoso, que, nas cotações de crime, vendia por um preço alto o seu gatilho. Não dava certificado de competência, mas até hoje nenhum cliente tinha reclamado de sua eficácia. Nos últimos anos, as almas que havia despachado para o Além sumiam de vista.
Almas sem dono, almas sem peso, almas vadias, almas ricas ou medonhas – todas eram iguais quando estavam sob a sua mira.
Para ele, qualquer contrato envolvendo morte por dinheiro era bom negócio. Como recebia em moeda estrangeira, 5 mil dólares era o começo da conversa, dependendo, é claro, do naipe do freguês.
“Eu mato porque não sei fazer coisa mais decente e estou muito velho pra começar outros ofícios.”
E o assassino pensou porque viu semanas antes a foto do homem, aquele que deveria ser abatido. Numa ligeira impressão, a imagem lembrava a de um indivíduo bondoso e exemplar. No entanto, longe disso, sabia que era um político nefasto, com denúncias de envolvimento em negociatas e contumaz no jogo dos mafiosos, que sempre escapam dos tribunais. Alguém também muito poderoso não gostava dele e queria afastá-lo de vez do seu caminho. Quando terminou de examinar a foto do figurão em sua panca enganadora, ninguém diria que se tratava de uma subcelebridade descartável.
No meio das folhagens, o pistoleiro analisou com a máxima atenção os pormenores que envolviam o seu alvo. Olhou tanto para o lado esquerdo quanto para o direito da mansão, de onde sobressaíam janelas portentosas com entalhes na moldura de madeira. A porta por onde deveria sair era fortificada com metal, precedendo um pórtico enfileirando degraus. Um enorme jardim formado de sebes baixas esparramava-se ao redor da casa. Após observar todos esses detalhes, muitos dos quais com a finalidade de situá-lo no local, teve um raro instante de lucidez – e começou a perguntar-se, num autoexame de perguntas banais:
“O que faço aqui, Senhor? Há algum sentido nisso tudo? Matar também é um destino? Afinal, quem eu sou? Um homem no fundo do poço?”
Ele pensou como um indigente da Filosofia. E pensou porque é bom pensar. Porque pensar não só lubrifica as sinapses como provoca uma estranheza no espírito.
Sem prestar atenção agora à intempérie, estes foram pensamentos que passaram em velocidade de Fórmula 1 – e depois cessaram.
Talvez nessa noite a sua mente tivesse furos por onde escapavam as incertezas da vida – as incertezas que até um assassino deve ter de vez em quando.
Naquela chuva, entretanto, havia mais água que um homem pode suportar. E era tanta água – que nenhum açude consegue beber, que nenhum náufrago é capaz de abarcar – que, pela cegueira líquida que o atingia, mal viu o seu alvo saindo da mansão. O homem entrou logo no carro. Os capangas formaram uma muralha à sua volta.
Assim, ele observou pela luneta do rifle o cara partir, e não lamentou mais a chuva. Uma das folhas acumulou água e, depois, com o peso, dobrou-se e derramou-a delicadamente sobre o seu rosto.
Quando o carro saiu da mansão e fez a curva, ele viu nitidamente a cabeça exposta como uma melancia. Pensou em todas as raivas acumuladas que tinha por aquele tipo de gente, despertando o ódio que iria logo destravar o seu dedo. Pensou uma, duas, três vezes – mas não desistiu de puxar o gatilho quando pensou a quarta vez.
Na sequência, ainda viu o veículo com as luzes traseiras desaparecendo aos poucos sob a cortina do aguaceiro. Subitamente, o carro parou e ouviu o barulho de portas sendo abertas e gritos afobados de pânico. Em um rito de despedida de seu métier, blasfemou baixinho. Em seguida, como último ato de sua redenção, furtivo igual a um camundongo, evadiu-se do local à procura da rota de fuga previamente estudada, sentindo a alma lavada em águas puras.
Grande, Luis!!