Era uma sexta-feira, dia de Exu cobrar marafo na encruza.
Lá no Paulu’s Dancing, uma casa excomungada pelos evangélicos, o leão de chácara não fritava bolinhos em quermesse. Com fama de ex-lutador de karatê, Montanha de Aço impunha a sua presença ostensiva na entrada. Nesse ambiente, entre tantos tipos urbanos, havia um arruaceiro, o Zeca Navalha, que tentava inutilmente entrar na boate.
Uma mãozona, entretanto, empurrava sempre o seu esqueleto.
“Não, cara! Ocê tá fora. Aqui, ocê não entra!”
Já com os chifres entornados de álcool, Zeca Navalha desafiava o outro para uma briga de macho. Mas a provocação era ignorada todas as vezes. Brandindo a navalha como um florete de esgrimista, na realidade ele só demonstrava valentia quando encontrava os fracos e os covardes.
As raquíticas letras de neon na fachada irradiavam uma luz enfermiça na calçada onde se aglomeravam bêbedos, travestis, putas, drogados e tiras manjados. Nos fins de semana, o lugar chacoalhava.
Os mutantes da noite. Um conglomerado de pessoas expondo os seus adornos, segredos, infortúnios e risos.
Pelo ressentimento de ter ficado de fora mais uma vez da boate, Zeca Navalha construiu uma teoria segundo a qual o caos estava contido em sua arma: os cortes com a mão direita tinham mais ferocidade do que os desferidos com a esquerda, que eram mais abrutalhados e sem estilo, mas ambos dilaceravam a carne do mesmo modo.
Logo mais, pela primeira vez, tentaria colocar em prática essa teoria, seccionando artérias, expondo ossos e separando nervos. Tantos anos depois, entendeu enfim o valor da arma que carregava.
Após essa exegese confusa, Zeca Navalha sentiu-se preparado. Por isso, resolveu humilhar o bobo, já que tinha sido excluído mais uma vez de forma humilhante dos vagalhões de corpos que sacolejavam na pista de dança.
Os maus elementos, os rufiões e os bandidos de subúrbio não eram os únicos caras conhecidos do pedaço – o setor suportava também outras estranhezas da vida urbana. Comportava, inclusive, uma casa na qual vivia precariamente um bobo amarrado a uma corda longa atada a um pé de abacate. Todos os dias, por causa do muro baixo, ele ouvia os insultos mais nefandos. Esse bobo, como todos os outros, não tinha nenhuma firmeza de ideia: achava que as ofensas eram saudações, e sorria de gratidão – um sorriso de gárgula vigiando as noites da Idade Média.
Não se sabe como, ele encontrou naquela noite uma foice largada no quintal. Imaginando-se o anjo que vira passar em cima de um andor em frente ao muro, empunhando uma espada, teve rara lucidez: a foice era irmã do machado, pois o vira uma vez ser desferido repetidamente contra um tronco. Mas o gesto lembrava também a ação de uma espada – e foi por isso que cortou a corda que o prendia à argola.
No momento em que Zeca Navalha viu o bobo carregando a foice, ele pensou, formulando a hipótese de que alguém o instruíra finalmente a cortar capim. Quando estavam face a face, compreendeu que uma ameaça pesava sobre a sua vida: assim, teria primeiro de livrar-se do bobo, num treino preliminar, para depois retalhar Montanha de Aço.
Foi só aí, nesse instante definitivo, que experimentou a fúria dos golpes incisivos, desenhados no ar de modo grotesco, antes de causarem sucessivas lacerações e borrifos de vermelho.
Dizem que Exu, nas encruzilhadas, atende aos pedidos dos aflitos; contudo, naquela noite, desdenhou a luta inconciliável entre a navalha que imprecava e a foice que gemia.
Se não bebeu marafo nem ganhou ebó, Exu viu pelo menos, sem nenhum interesse, o orvalho da madrugada misturar-se calmamente ao sangue que empapava a terra.