É improvável, bem improvável mesmo, que Neide volte logo para casa. No dia em que foi embora, não houve escândalo, a não ser um impulso pouco nobre do meu pai: chutou o cachorro, na falta de outro alvo mais em conta. O bichinho azulou ganindo. Minha mãe foi chorar no banheiro, sem fechar completamente a porta, deixando-se ver que enxugava as lágrimas no avental. Como eu não estava desesperado, nem com vontade de viver aquele drama familiar, fui dar uma volta.
À noite, houve reza com parentes e amigos próximos pela salvação da irmãzinha. As pessoas chegavam aos poucos com cara de consternação.
A década era a de 1970. Vocês ainda se lembram daqueles anos rancorosos e com cheiro de chifre queimado? Naquela época, muita gente era alienada e manipulada; outros eram fascistas mesmo. O Brasil respirava milico por todos os poros. Várias vezes durante o dia, Don e Ravel tocava no rádio uma música patrioteira que hoje, felizmente, foi esquecida. Tudo passa, cantou Nelson Ned.
Ao lembrar esse tempo medonho, não posso deixar de incluir um vizinho desagradável, intolerante e metido a galã, o tenente Freitas, o caretão do Exército, que morava na vizinhança. De vez em quando, ele se intrometia nos assuntos domésticos, abelhudo, insinuante, provocador:
“Cuidado, seu Juca, essa sua filha, num sei não, é comunista, muito perigosa. Ela conspira contra a pátria, a família e a segurança nacional.”
“Essa sua filha” era Neide, a irmãzinha. Não sei se é preciso dizer, mas eu a admirava como um crente adora a sua bíblia. Ela influenciava todos nós com as suas ideias libertárias e contestadoras. As suas convicções não eram menores do que a sua doçura.
É claro, tão evidente quanto dois mais dois somam quatro, que o tenente estava de olho na irmãzinha. Vocês já devem ter adivinhado para onde se dirigia o seu interesse: para o corpinho soviético dela – não para as suas ideias incendiárias. Pouco tempo depois, sem mais nem menos, o tenente sumiu do mapa: deve ter ido torturar preso político no quartel de Abrantes – e assediar mocinhas esquerdistas.
No dia da pátria, o nosso ufanista Sete de Setembro, ela me falou:
“Se eu não voltar até as duas horas, o pai deve ligar para este número.”
Guardei o papel no bolso – e a vi sair de casa.
Não foi preciso pedir nada para o nosso pai, porque ela chegou antes, arrumou a sua mala e, como era hora do almoço, quando estávamos reunidos, conseguiu despedir-se de cada um de nós, a sua família. Depois que me abraçou com força, eu sentei ao lado do cachorro e pus a mão em sua cabecinha, acariciando suas orelhas.
Mais tarde, uma viatura do Dops brecou na porta de casa, de onde saíram três agentes que fizeram a maior confusão nos cômodos: revistaram todos os lugares, jogando os conteúdos das gavetas no chão, apreenderam livros e papéis considerados suspeitos e, o pior de tudo, conduziram os meus pais para interrogatório. O pai levou muitas cacetadas, além da tortura sobre a qual nunca quis comentar, enquanto a mãe, coitada, quase virou santa. Após semanas de prisão, foram soltos, humilhados e revoltados. A minha mãe nunca mais conseguiu sorrir, amuada e sem ânimo.
Anos depois, com a Lei da Anistia, reencontrei a irmãzinha num dia feliz. Os tempos eram outros, menos embrutecidos e mais esperançosos. A redução da maldade permitiu que houvesse confraternização e discurso antimilitar, quando no final a irmãzinha, por ser homenageada, fez um depoimento comovente sobre o seu desterro forçado. Muita gente chorou. Nessa ocasião, a minha mãe voltou a sorrir.
O exílio não domestica o bom combatente.
Quando decido pensar algumas vezes sobre esse episódio da minha infância, sempre me pergunto:
“Por que o pai chutou o pobre cãozinho se ele não tinha nada a ver com a história?”
Aqueles anos, sem tirar nem pôr, foram mesmo os mais grotescos da ditadura.
Querido amigo,
Memórias marcantes de um tempo de merda que uns merdas de nosso tempo querem de novo deixar como sua marca.
Isso Luis, não deixe de denunciar poeticamente e com seu humor característico aqueles anos sofridos que tanta vida nos roubou.