[Coautor: Jonathan Postaue Marques[1]]
Arthur Schopenhauer (1788-1860) nasceu em Danzig, na Prússia, e é conhecido pelo seu pessimismo, talvez muito marcado por suas experiências pessoais. Filho de um comerciante e de uma escritora, Schopenhauer desde muito novo foi preparado para a vida dos negócios. Sua concepção de mundo é marcada pela primeira viagem que fez à França aos nove anos de idade, lá ficou espantado com a miséria humana, com o caos e a pobreza. Ali, ele encontrou um mundo rodeado de dor, doença e morte. Sua visão pessimista influenciou diversos filósofos ao longo da história da filosofia, dentre eles, Nietzsche, que, em uma passagem famosa acerca do pessimismo schopenhaueriano, afirma:
Um pessimista, um negador de Deus e do mundo, que se detém diante da moral, que diz “sim” à moral do laede neminem (não faça mal a ninguém) e toca flauta: como? Este é verdadeiramente um pessimista? (F. Nietzsche, Além de bem e mal, 2001, p.186).
Em tom irônico, Nietzsche se refere a Schopenhauer e questiona seu status de pessimista, pois o “pai do pessimismo”, além de defender que não se deve fazer mal a ninguém, ainda toca flauta. Contudo, a provocação de Nietzsche levanta indiretamente uma questão: qual a relação entre a música e o pessimismo? Vejamos.
A filosofia schopenhaueriana é comumente conhecida por seu pessimismo, que tem como fundamento ordenador uma teoria da vontade, na qual a vontade é a força motriz da vida e do universo. Sendo a vontade o fundamento da realidade, emerge daí uma perspectiva profundamente intrigante sobre a condição humana. A assertiva é de que nenhuma satisfação no mundo pode ser suficiente para acalmar nossos desejos e preencher o abismo sem fim do nosso coração, isto é, temos uma insaciabilidade que parece inerente à nossa existência (SCHOPENHAUER, 2015, p. 683).
Não obstante, em suas reflexões sobre a metafísica do belo, Schopenhauer elege a música como a maior das artes, estimando-a como a prática artística que mais se aproxima da linguagem da vontade. Música e mundo ganham uma relação de identidade ou de analogia na filosofia schopenhaueriana (SCHOPENHAUER, 2005, p. 296), na medida em que a música, segundo o pensador, seria capaz de expressar a própria vontade como o em-si do mundo. A música, em comparação com outras artes, ocupa um lugar privilegiado, pois ela possibilita uma suspensão do querer e da própria vontade que são fontes geradoras de sofrimento.
Schopenhauer e sua metafísica da música têm uma grande relevância histórica, sobretudo no século XIX, tanto herdando o romantismo e influenciando Richard Wagner (1813-1883) e Nietzsche, em seus respectivos estudos sobre a estética musical, quanto no debate estético-musical desde o século XIX até a contemporaneidade. Wagner foi um maestro, compositor, diretor de teatro e ensaísta alemão, conhecido principalmente por suas óperas, que tiveram forte influência de Schopenhauer, uma vez que Wagner se utilizou da filosofia de Schopenhauer para elaborar não apenas seu conceito de drama, mas igualmente a sua concepção de música como essência. Nesse contexto, podemos afirmar que um tipo específico de valorização da música surge na passagem do século XVIII para o XIX com o advento do romantismo. A noção corrente no romantismo de que a música é a linguagem do indescritível se funda na concepção kantiana de ideia estética e também na filosofia da arte de Schopenhauer, que reserva à música não só a mais alta posição na hierarquia das artes, mas também sérias implicações metafísicas.
É sabido que, em outros tempos, houve estudos voltados à metafísica do belo ou da música, tais como os trabalhos de Pitágoras no período clássico ou no período renascentista com a evolução das artes. Contudo, em Schopenhauer, podemos ver a elaboração de uma metafísica da música particular, herdeira do romantismo e que tem uma ligação com a questão existencial dos seres humanos, uma vez que a música revela a vontade, ou seja, manifesta a própria essência do mundo.
A música, nesse contexto, poderia contrapor o pessimismo de Schopenhauer? Como conciliar o fato de que a música é a própria vontade, a própria essência do mundo (ou seja, sofrimento) e ao mesmo tempo a arte mais elevada, aquela que é capaz de suspender o desprazer?
Para Schopenhauer, a música transcende a mera manifestação artística, revelando-se como um reservatório de significados profundos. Esse entendimento reverberou não somente em sua obra, mas também ecoou nos sentimentos de leitores subsequentes, a exemplo de Hesse, que absorveu as ideias schopenhaurianas. Nas palavras do próprio, “O simples fato de a música existir e de permitir que a alma humana seja ocasionalmente tocada até o âmago por alguns compassos, imergindo-a em harmonias inefáveis, sempre representou para mim um consolo profundo e uma validação da existência” (HESSE, 1971, p. 2). Com isso, Hesse capta a essência da percepção schopenhauriana da música como um veículo de expressão que transcende os limites da linguagem e das abstrações intelectuais, tocando diretamente a essência da experiência humana.
A afinidade de Hesse com a visão schopenhauriana da música como um refúgio transcendente não apenas reforça a universalidade do poder da música, mas também atesta a capacidade singular da arte musical de conferir um significado profundo à vida. A música, como apreendida por Hesse, revela-se como um canal pelo qual a complexidade da existência humana pode ser entendida, celebrada e reconciliada. Portanto, a leitura de Hesse nos recorda que a música não é apenas um arranjo harmonioso de sons, mas sim uma via através da qual a própria existência encontra ressonância e sentido.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tomo II. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2015.
CACCIOLA, Maria Lúcia. Contemplação estética: Schopenhauer e Mondrian. Dois Pontos (UFPR), Curitiba-São Carlos, v. 11, 2014, p. 91-103.
DEBONA, Vilmar. Pessimismo e eudemonologia: Schopenhauer entre pessimismo metafísico e pessimismo pragmático. Kriterion, Belo Horizonte, vol. 57, n. 135, Sept./Dec. 2016, p. 781 802.
HESSE, Hermann. Gertrud. Tradução de Mário da Silva. Editora: Civilização Brasileira, 1971.
GÜNTER, Zöller. A música como vontade e representação. Trad. Mário Videira. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo. no16 – p. 55-80. dez. 2010.
INVERNIZZI, Giuseppe. Il pessimismo tedesco dell’Ottocento: Schopenhauer, Hartmann, Bahnsen e Mainländer e i loro avversari. Firenze: La Nuova Italia, 1994.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. A música e o inefável. Tradução Clovis Salgado Gontijo. São Paulo, Perspectiva, 2019.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução: Márcio Pugliesi. Universidade de São Paulo. 2001.
VIDEIRA, M. A linguagem do inefável: Música e Autonomia Estética no Romantismo Alemão. Tese de Doutorado (Catálogo USP) São Paulo, 2009.
[1] Professor de Filosofia da SED/MS – Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: jonathan.postaue@ufms.br
O artigo é o 18º texto da sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.
- Psicanálise, velhice, tempo e luto, de Matheus Garcia Nunes, Weiny César Freitas Pinto e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/09/psicanalise-velhice-tempo-e-luto/.
- Somos efetivamente livres?, de Natasha Garcia Coelho, Maíra de Souza Borba e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/16/somos-efetivamente-livres/.