[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Lugar para pensar
Gosto de pensar no escuro
fumando
olhando os polvos no aquário
do restaurante chinês
ou com a cabeça encostada no vidro do ônibus.
Gosto de pensar com as mãos na água
de óculos escuros
na escada rolante
vendo a cidade fugir
pelo espelho retrovisor.
Gosto de tentar adivinhar
o pensamento das pessoas
gosto de pensar que o pensamento
é um inquilino incendiário.
Uma coisa que nunca entendi é por que
em geral se acredita que o poema
não é lugar para pensar.
A vida submarina (2009)
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[2]
Uma caminhada noturna
Os animais existem durante a noite
ou durante o dia
eles têm modos próprios de existir
há um modo cão de existir no dia
um modo águia ou cavalo ou búfalo
e um pássaro está tão à vontade
na noite quanto na floresta
mas nós podemos trocar
a noite pelo dia
e andar sem destino sob as luzes da rua
e a lua alta
e todos os soníferos todos os venenos
todos os banhos quentes e as massagens
e os cremes e os chás não nos darão
uma noite de arminho ou de serpente
há insônias planejadas e noites que se estendem
como uma luva longa
penso em tudo o que existe
e no pouco que sabemos sobre tudo
mas penso sobretudo
em seu sexo
e seu sexo resplandece
sobre o pensamento de tudo
amo em você principalmente o gesto útil
as mãos cheias de sal
seu jeito de dirigir um automóvel austero
sua casa que não é um amontoado de tijolos
sua casa em que as coisas encontram
incandescentes
seus lugares
a mesa e as cadeiras e as cortinas
enquanto os espelhos pensam
a si mesmos
mas eu
desperto tarde demais e afogada na cama
como entre lençóis de água
e quando estou com você é como se estivesse
em uma escada alta
penso que o seu corpo imita a praia luminosa
da sua infância
e penso que nunca poderei conhecer você
quando criança
e queria beber em seus lábios
a sua sede de então
penso
com os prédios à direita
e o mar à esquerda
que um dia o amor terminará
e penso que isso não é triste
para o mar
penso que o mar não escolhe
entre a nau e o naufrágio
como para a primavera é indiferente
o mel ou as abelhas
como as mulheres que foram amadas
em duas línguas
os pássaros enlouquecem em pleno voo
o desejo é imenso e no entanto
penso
também não durará
O livro das semelhanças (2015)
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[3]
Alba
É dia
e daí?
Relógios e amantes
acordam em desacordo.
Por que levantar agora?
A noite não foi cheia de afazeres,
como um dia de escritório?
Não é também labor
uma noite de amor?
Como o corpo desses livros
que lemos no leito
o seu não guardou as marcas
do meu manuseio lento?
Mais vale adiar o dia.
O alarme do celular:
que triste cotovia.
Risque esta palavra (2021)
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[4]
Parte alguma
Não te enganes: viajar é aborrecido.
Num ponto, ao menos, todos os lugares
se parecem: neles já se passou
algo terrível.
As viagens cansam
e são tristes.
Viajando apenas constatamos
a repetição tediosa do que existe.
Pois para onde quer que compremos passagem
levamos a nós mesmos na bagagem.
Viajar é conduzir o corpo
– esse comboio imundo –
a um estéril atrito com o mundo
e depois passar o dia inteiro
usando a língua como quem usa dinheiro.
Nem a página em branco dos desertos
nem as savanas e sua promessa de aventura
substituem uma hora de leitura.
Mesmo as longas praias e as montanhas
mesmo os sítios inflacionados de história
mesmo as pirâmides os oráculos a arte
e o lugar preciso para se ver
do melhor ângulo
o sol se pôr como se põe em toda parte
serão depois riscados da memória.
Mais vale afinal ficar em casa
se é que se tem uma
e enviar-te este postal
de parte alguma.
Risque esta palavra (2021)
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[5]
Silêncio
Língua das coisas
Mas também: língua de se falar
com as coisas
e com as próprias palavras
O nome das coisas
quando não falamos delas
Único modo que têm os mortos
de cantar
O que há entre uma xícara e outra xícara
entre uma pedra e uma rosa
entre Vênus e uma cadeira
O modo como soa
uma palavra
riscada
Toda fala nasce com a cicatriz do silêncio,
que foi quebrado
Não há palavra que não seja marcada pelo silêncio
como camisas que secaram
presas ao varal
Por outro lado, frequentemente o silêncio
vem manchado por uma palavra
como um espelho sujo
A forma mais próxima do silêncio é o círculo:
forma geométrica da espera
O rastro que deixou
o animal que não passou
É este o meu nome
quando não me chamas
Risque esta palavra (2021)
Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte (MG). Com graduação em Letras, escreveu uma dissertação de mestrado sobre João Gilberto Noll e concluiu seu doutorado em literatura comparada na UFMG. Publicou os seguintes livros: A vida submarina (2009), Da arte das armadilhas (2011, Prêmio Biblioteca Nacional em 2012), O livro das semelhanças (2015, Prêmio Oceanos em 2016), Duas janelas, com Marcos Ciscar (2016), Como se fosse a casa (uma correspondência), com Eduardo Jorge (2017), O livro dos jardins (2019) e Risque esta palavra (2021). Maria Esther Maciel, professora da UFMG e crítica literária, em depoimento a Carlos Macedo, considera a autora “uma poeta admirável, com uma dicção inconfundível, que alia elegância, frescor, simplicidade e cuidado com a linguagem para capturar o que se esconde (e se revela) nas dobras da vida cotidiana. Além disso, reinventa, por vias imprevistas, o legado de poetas de diferentes gerações e nacionalidades. Cada poema que escreve é uma surpresa para quem o lê” (O Estado de Minas, 25.06.2021).