[Coautor: Vital Alves, professor de filosofia e colaborador de Ermira Cultura]
“Que tempos são estes, em que precisamos defender o óbvio?” A frase de Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão, nunca fez tanto sentido entre aqueles que insistem em preservar a calma e a lucidez. Convenhamos o quanto ultimamente se tornou difícil tratar dessa tal obviedade, esforçando-nos em recriminar mesmo nos ambientes inesperados a descarada estupidez exposta sem vergonha alguma nas conversas sobre intervenção militar, terraplanismo ou a chegada de discos voadores prontos para resgatar os eleitos, localizados dentro dos quartéis militares.
Hamlet enxergava o mundo fora do eixo e, diante disso, precisou reavaliar sua impotência perante o destino a ponto de fingir estar louco. Quem sabe a forma de escaparmos das sombras seja vez ou outra imitá-lo, acolhendo e embalando uma falsa insanidade na proteção do saber artístico. A propósito, ai de nós se não fosse a arte para enfrentarmos a dureza daqueles quatro longos anos. Afinal, chegamos a ver um presidente eleito pelo uso de declarações assumidamente misóginas, racistas e homofóbicas. No curso daqueles quatro anos testemunhamos amigos, parentes e conhecidos juntando-se às centenas de milhares de mortos pela Covid-19, algo que, segundo aquele governo, poderia ter sido resolvido sob a prescrição de cloroquina, vermífugos ou outros métodos afrontosos à ciência.
Mas a duras penas resistimos, embora essa resistência civil, infelizmente, escape dos moldes daquela “vontade geral” dita por Rousseau em O contrato social. Sim, aquela vontade capaz de nos colocar conscientemente em consonância com os nossos concidadãos e direcionada para a realização do interesse comum. E, então, contrário a isso, sem nenhuma justificativa plausível, vimos estarrecidos o direito à cidadania banalizado por aqueles mesmos que antes o detinham. Estranhos personagens quando no fatídico “8 de janeiro de 2023”, nada diferente da imaginação de Ionesco, passaram a agir feito rinocerontes desembestados rumo a Praça dos Três Poderes. Seres cuja ferocidade, típica das bestas raivosas, destruíam tudo ao redor, não distinguindo sequer As mulatas, de Di Cavalcanti, da tampa arrancada de um vaso sanitário.
Todavia, a ignorância dessa gente jamais nos pareceu ser o maior golpe contra a democracia brasileira. Ora, podemos ter o azar de convivermos ao lado de gente estúpida em qualquer tempo e lugar, sendo inclusive esta a razão para existir o Estado de Direito. Logo, o ferimento à República que acompanhamos no 8 de janeiro deriva não apenas da depredação provocada por terroristas vestidos com as cores da pátria, mas principalmente da traição política de homens públicos e a omissão de vários agentes de segurança pública.
As cenas abomináveis assistidas naquele “8 de janeiro” representam a culminância de todo um processo ideológico que vinha sendo instigado contra a democracia brasileira e suas instituições. Processo não só deflagrado como protagonizado pelo ex-presidente durante o seu mandato, tendo também como auxiliares seus seguidores e a máquina do Estado.
É possível afirmar que o enredo desse processo, em linhas gerais, foi sendo constituído pelos seguintes atos: estímulo ao armamento da população, exaltação a golpes de Estado e a torturadores, disseminação de uma enxurrada de falácias referentes à liberdade de expressão como se essa conquista fosse uma espécie de “direito” ao insulto a opositores e a propagação vertiginosa de fake news.
A ideologia política personificada pelo agora “inelegível” também ressuscitou o anacrônico recurso do “fantasma do comunismo” na sociedade brasileira. Fantasma que já havia sido empregado no período do golpe militar de 1964 (que no ano corrente completa 60 anos) e, que, infelizmente, naquela conjuntura obteve êxito. Ademais, o emprego estratégico e constante dessa ideologia fundamentada na violência política resgatou dos porões mais sombrios da nossa sociedade personagens e discursos extremamente autoritários e nocivos para a democracia.
A partir de um olhar abrangente, é notório que atualmente vivemos um momento de crise mundial em relação ao regime democrático, no qual seu sistema representativo e suas instituições vêm sendo questionadas e igualmente perdendo a credibilidade. Esse momento de descrença tem propiciado, por um lado, a abertura de um amplo campo para a atuação de figuras políticas autoritárias e lhes proporcionado evidência e, por outro, fornecido também espaço para o surgimento de outsiders que apresentam fórmulas simplórias para solucionar problemas complexos. Nesse sentido, o Brasil parece ter servido como uma espécie de laboratório no qual se promoveu uma experiência política nefasta que felizmente não prosperou no poder, pelo menos no âmbito do Executivo, mas que se mantém representativa no Poder Legislativo e viva como mentalidade dominante em várias células da sociedade brasileira.
Enfim, o fortalecimento da democracia, além da saudável condução institucional, depende invariavelmente da manifestação da igualdade e da liberdade do povo em geral. Diante do assombro de Brecht e do recurso da representação da loucura encenada por Hamlet, uma pergunta acerca do fatídico episódio de “8 de janeiro de 2023” passa inquietantemente por nós: que lição a democracia brasileira pode extrair desse episódio? A responsabilidade dessa resposta não cabe somente às instituições políticas e, tampouco, à segurança pública. Muito menos aceitarmos o raso entendimento de que essa data faça única alusão a um dia a ser registrado na história do país como triste recordação para que episódios parecidos não voltem a acontecer. Assim, a melhor resposta deve sempre partir dos princípios do esclarecimento, da decência e da solidariedade, alcançados mediante a incessante busca e valorização da educação, da ciência e da cultura.