[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
A filosofia e as ciências humanas passam, atualmente, por uma crise que está ligada ao desprestígio direcionado a áreas teóricas (consideradas sem valor) e à desconfiança no que diz respeito à objetividade das pesquisas em ciências humanas. Em parte, esse problema se dá porque as ciências humanas são compostas por diferentes campos, como história, psicologia, filosofia e sociologia, sem uma organização em torno de um princípio ou método único. Segundo o filósofo brasileiro Ivan Domingues (2022), as ciências humanas são um produto recente da cultura, a área surgiu no final do século 19, portanto, no contexto contemporâneo, em que diversas áreas do conhecimento foram reunidas sob o nome de Ciências Humanas, havendo uma profusão de métodos distintos, ainda que todos façam parte de um mesmo campo.
Quanto ao tema da crise, o filósofo estadunidense Thomas Kuhn (1922–1996) afirma que, quando novas ciências surgem, instalam-se paradigmas que contribuem para o avanço científico, porém, em dado momento, o paradigma vigente é questionado, quando não consegue atender às necessidades de seu período histórico, e a partir disso a crise é instaurada.
Nesse sentido, a crise epistemológica contemporânea é consequência da falta de um princípio ou um método único. Para resolver esse problema, é preciso pensar em um método que unifique as ciências humanas, no entanto, existem limites para essa unificação, pois não podemos correr o risco do dogmatismo e, com isso, sufocar a valiosíssima variedade epistêmica tão característica das ciências humanas. O ponto é: para superar essa crise e atingir um equilíbrio, é preciso uma unificação por meio de um princípio/método que preserve a variedade. Domingues argumenta, em seu artigo “Filosofia, humanidades clássicas e ciências humanas e sociais: atualidade de uma agenda no Brasil de hoje” (2022), que precisa haver uma união das ciências humanas e sociais e designa o filósofo como responsável por pensar essa difícil reunião.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788–1860) pode contribuir para a solução dessa crise contemporânea. No início do século 19, Schopenhauer defende sua tese de doutorado intitulada Sobre a quadrúplice raiz do Princípio de Razão Suficiente (1813). Nessa obra, o filósofo apresenta o princípio de razão como fundamento do conhecimento científico, princípio que expressa a ideia de que tudo que é possui uma razão suficiente para ser de um modo e não de outro. Nessa perspectiva, todos os objetos da realidade são determinados por uma regra de sucessão, logo, existe uma conexão necessária entre os objetos, sendo o princípio da razão a expressão dessa ligação.
Portanto, caso ocorra a alteração de um estado de matéria como, por exemplo, um pedaço de madeira que entra em combustão, há de existir uma razão suficiente para a ocorrência desse fenômeno. A ciência se ocupa com modificações dessa natureza, ela é um tipo de conhecimento que é fundamentado pelo princípio de razão, já que busca uma conexão racional para a modificação dos objetos no mundo. A ciência possibilita previsibilidade e controle, dado que ela viabiliza o reconhecimento da ordem de sucessão dos diferentes estados dos objetos. Isto significa que não existe nada solto ou separado, os objetos do mundo estão em uma relação relativa entre si, eles se modificam e se sobredeterminam reciprocamente.
O que nos permite perguntar o “porquê” de algo ocorrer é o princípio de razão suficiente, ele expressa a ligação entre as causas e consequências dos objetos da realidade. Evidentemente, cada ciência tem um objeto de análise distinto, por exemplo, a psicologia tem por objeto a motivação humana, que é observável externamente a partir de ações. Já a física tem por objeto causas mecânicas, que também são mensuráveis. Mesmo que a psicologia e a física disponham de objetos de análise distintos, o princípio de razão suficiente é o mesmo em ambas as ciências, logo, o princípio apresenta uma universalidade abstrata que se adapta à diversidade de objetos do conhecimento. A depender do objeto de análise, o princípio se expressa de modo diferente; no entanto, permanece sendo o ponto em comum dos diferentes objetos investigados.
A crise das ciências humanas é consequência da falta de um modelo epistemológico que integre a sua enorme variedade de campos sobre um mesmo método. É preciso um meio de unir a pluralidade sem se deixar guiar pelo dogmatismo epistemológico. Schopenhauer, ao formular o princípio de razão suficiente, apresenta um modelo no qual um mesmo princípio aparece de modo diverso nos variados objetos do conhecimento, sem que a objetividade se perca. Portanto, a partir do princípio de razão schopenhaueriano, podemos pensar um modelo epistemológico para o problema contemporâneo das ciências humanas e elaborar para estas uma fundamentação metodológica.
A obra Quadrúplice raiz do Princípio de Razão Suficiente foi escrita no início do século 19 com o objetivo de combater o dogmatismo do realismo e do idealismo epistemológicos. O realismo advoga a existência do mundo independentemente do sujeito e o idealismo defende que o mundo está na cabeça do sujeito. Schopenhauer desenvolve uma filosofia crítica sobre essas duas perspectivas dogmáticas. O filósofo alemão defende que sujeito e objeto são metades inseparáveis e, dessa forma, devem-se evitar posições extremas que consideram o objeto como causa do sujeito ou o sujeito como causa do objeto.
No período em que a Quadrúplice raiz foi escrita, as ciências humanas ainda não haviam se consolidado. Elas surgiram como campo disciplinar somente no fim do século 19, logo, é evidente que Schopenhauer não escreveu a Quadrúplice raiz pensando no problema epistemológico das ciências humanas, mas a nossa hipótese é a de que, ainda que a sua filosofia esteja inserida em um contexto histórico diferente do nosso, sua epistemologia pode nos ajudar a pensar na solução do problema epistemológico contemporâneo.
[Revisão de Natasha Garcia e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Quadrúplice raiz do Princípio de Razão Suficiente. Tradução de Oswaldo Giacoia Junior e Gabriel Valladão Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019.
DOMINGUES, Ivan. Filosofia, humanidades clássicas e ciências humanas e sociais: atualidade de uma agenda no Brasil de hoje. Discurso, v. 52, n. 1, p. 46-64, 2022. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/200492. Acesso em: 31 jul. 2023.
[1] Pós-doutorando em Filosofia (CNPq/FAPERJ) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor, mestre e graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o 21º texto e encerra esta sexta edição do Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Um enredo entre arte e filosofia, entrevista de Natasha Garcia com o filósofo e artista Thiago Moura, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/08/26/um-enredo-entre-arte-e-filosofia/.
- A situação da filosofia no mundo contemporâneo, segundo Badiou, de Luiggi de Barros Cestari e Pedro H. C. Silva, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/02/__trashed/.
- Amor, na falta e como negatividade, de Gabriel Pinheiro e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/09/amor-na-falta-e-como-negatividade/
- A filosofia experimental e a teologia na gênese da química moderna, de Lucas Mateus Barreiro Goes, David Monteiro de Souza Júnior e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/16/a-filosofia-experimental-e-a-teologia-na-genese-da-quimica-moderna/.
- O deslocamento da contemporaneidade, de Davi Molina e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/09/23/o-deslocamento-da-contemporaneidade/.
- Freud explica a influência da psicanálise no Brasil?, de Camila Polese de Oliveira, Lucas Giovani Novato Hernandez e Jonathan Postaue Marques, disponível em: http://ermiracultura.com.br/2023/09/30/freud-explica-a-influencia-da-psicanalise-no-brasil/.
- A marcha da filosofia e o contemporâneo, de Raphael Vicente da Rosa, Vinicius de Matos Meneguzzi e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/07/a-marcha-da-filosofia-e-o-contemporaneo/.
- Filosofia da psicanálise: um efeito da interlocução entre a filosofia e a psicanálise, de Cecília Castro Gomes e Pedro H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/14/filosofia-da-psicanalise-um-efeito-da-interlocucao-entre-a-filosofia-e-a-psicanalise/.
- Reflexão sobre o romantismo na atualidade, Maria Clara de Freitas Barcelos e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/21/reflexao-sobre-o-romantismo-na-atualidade/.
- Afinal, o que é essa tal de psicanálise?, de Bruno Marques Ibanes e Weiny César de Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/10/28/afinal-o-que-e-essa-tal-de-psicanalise/
- A participação feminina na filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/04/a-participacao-feminina-na-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Repensar a pesquisa e a pós-graduação brasileiras, de Rafael Lopes Batista, Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/11/repensar-a-pesquisa-e-a-pos-graduacao-brasileiras/.
- Hip-hop, breaking e a filosofia, de Bergkamp Pereira Magalhães e Alberto Mesaque Martins, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/18/hip-hop-breaking-e-a-filosofia/.
- O romance familiar mitológico de Otto Rank, de Ana Tércia Rosa Alves e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/11/25/o-romance-familiar-mitologico-de-otto-rank/.
- A questão da tirania em La Boétie, de Lucas de Miranda Aguilar e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/02/a-questao-da-tirania-em-la-boetie/.
- Psicanálise, velhice, tempo e luto, de Matheus Garcia Nunes, Weiny César Freitas Pinto e Pedro H.C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/09/psicanalise-velhice-tempo-e-luto/.
- Somos efetivamente livres?, de Natasha Garcia Coelho, Maíra de Souza Borba e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/16/somos-efetivamente-livres/.
- Música e pessimismo na filosofia de Arthur Schopenhauer, de Bárbara Walters e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/23/musica-e-pessimismo-na-filosofia-de-arthur-schopenhauer/.
- Filosofia e trabalho na sociedade, de Amanda Carvalho Padilha e Pedro. H. C. Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/12/30/filosofia-e-trabalho-na-sociedade/.
- A filosofia de Henri Bergson: pensamento, imagem e ação, de João Pedro da Silva e Jonathan Postaue Marques, disponível em https://ermiracultura.com.br/2024/01/13/a-filosofia-de-henri-bergson-pensamento-imagem-e-acao/.