De La Rochelle (França) – Ele é francês, fala fluentemente o português e sabe tudo sobre o Brasil, e também sobre Goiás. Foi até professor convidado da Universidade Federal de Goiás. Está antenado com o que acontece atualmente no Brasil. Trata-se do historiador e professor Laurent Vidal. Ele concedeu um Dedinho de Prosa para ERMIRA em uma tarde fria, bem no começo do verão no Hemisfério Norte. Foi uma conversa que durou mais de 40 minutos em sua sala no prédio da Faculté des Lettres, Langues, Arts et Sciences Humaines da Université de La Rochelle, agradável cidade de 80 mil habitantes, distante 408 quilômetros de Paris e localizada no litoral atlântico da França, a meio caminho entre o País Basco (Espanha) e a Ilha do Norte.
Vidal já estava entrando no clima de férias, vestido com uma camisa florida, típica de turista, quando nos atendeu antes de conversar com a catarinense Carina Sartori, sua orientanda de doutorado, que acompanhou a entrevista. A conversa girou sobre o seu amor pelo Brasil, a imprensa de cá e de lá, o complexo de vira-lata do brasileiro, a crise política do País e também sobre Goiás.
Por que seu interesse pelo Brasil?
Meu interesse pelo Brasil não foi científico e nem nada. Não sabia nada de português. Eu tinha uns 15 ou 16 anos quando comecei a me apaixonar pela música brasileira ouvindo bossa nova e um pouco pela literatura brasileira, em especial Jorge Amado. Mas, como morava distante das grandes cidades, não tinha acesso às boas livrarias e bibliotecas.
Em qual cidade?
(Risos) Eu não quero nem falar, ninguém nem ouviu falar dessa petite ville (risos). Um vilarejo. Na época não tinha internet e eu consegui acesso a um jornalzinho semanário que era ligado à Teologia da Libertação (tendência da Igreja Católica de orientação de esquerda muito atuante no Brasil nas décadas de 1960/70/80). Assim eu podia conhecer um pouco do Brasil. Eu que não sabia nada de português, tinha aprendido um pouco de espanhol no ensino médio e aos poucos aprendi português. Nunca entrei em uma sala de aula para aprender português.
Pesquisa
Praticamente toda a pesquisa acadêmica de Vidal envolve o Brasil ou a América Latina. Alguns desses trabalhos viraram livro. É o caso de Lágrimas do Rio (Ed. Martins Fontes), que narra os últimos momentos do Rio de Janeiro como capital federal.
A construção de Brasília ajudou a fomentar a corrupção no sistema político brasileiro?
Não! (risos). Brasília não inventou a corrupção. O próprio Vargas (presidente da República de 1930 a 1945 e de 1950 a 1954) falava sobre a corrupção e ele foi vítima dela. A corrupção já existia na época da Corte Imperial. Brasília nasceu dentro de um sistema no qual a corrupção já era grande. Brasília não fez nada para acentuar a corrupção e o brasileiro tem de parar de achar que Brasília fez nascer todos os problemas. E eu acho que Brasília é muito importante para o desenvolvimento do País.
Principalmente para os goianos, né?
(Risos) Isso mesmo.
E o Brasil é o país do futuro ou não?
(Risos) Espero! Mas por enquanto é um pouco difícil.
Está pessimista? Você falou com a voz sumindo!
É um pouco difícil, estou vendo esta multiplicidade de crises que estão chegando e a crise econômica é uma coisa muito complicada. O Brasil está em crise econômica e também vive uma crise de identidade muito forte. Eu acho que o Brasil estará por muito tempo com dificuldades, assim como outros países.
Há o raciocínio que no Brasil nós vivemos 20 e poucos anos de sonho. Estabilidade política, econômica, ganhos socais, etc. Hoje a ficha caiu. Não somos uma potência como muitos pensávamos. Você concorda com esta linha de raciocínio?
Eu acho que o Brasil é uma potência e como todas as potencias passa e vai passar por momentos complicados. Toda a dificuldade no Brasil é a questão da identidade. Então deve se perguntar: o que somos?
Para ele, um golpe
Vida é colaborador do jornal Le Monde. Este ano escreveu dois artigos sobre o momento atual do Brasil, um publicado em julho afirmando que o Brasil vive um golpe de Estado, contrariando inclusive um editorial do jornal publicado em maio em que afirmava que a queda de Dilma não fora um golpe. Na oportunidade, Vidal afirmou que, para resolver seus problemas, o Brasil precisa também se livrar de seus demônios do passado.
Como você acompanhou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff?
Fiquei no Brasil do final de fevereiro até o início de junho e acompanhei todo esse processo do impeachment. Impeachment entre aspas, ressalto. Entre aspas porque para chegar ao impeachment é necessário todo um processo. Presenciei o debate na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. E o que eu vi foi tampa de uma panela de pressão aberta. Vi uma sociedade com pessoas que finalmente admitem dizer que não aceitam a distribuição de direitos para os mais pobres. Elas preferem atribuir favores. Isso é mais fácil, pois direitos você cobra, favores você aceita. [No vídeo abaixo, ele faz outros comentários sobre o Brasil que o fascinou e o Brasil que vê hoje]
Isso é esmola?
É esmola! Mas eu devo dizer que isso não é só no Brasil. É a versão brasileira de um processo pelo menos ocidental. Na França, a extrema-direita hoje chega na casa de 30 por cento da intenção de votos. E no Brasil parece que não é tão diferente. Essa coisa do Brexit na Inglaterra (que definiu, em consulta popular, a saída da Grã-Bretanha do bloco da União Europeia). As pessoas podem querer sair da União Europeia, não tem problema, mas essa não é a questão. O motivo é: “não queremos mais imigrantes!” No mundo ocidental a gente está assistindo a uma redefinição do que é a cidadania, do que é a identidade nacional, estamos vivendo um surto de nacionalismo. Então, o que está acontecendo no Brasil é similar ao que acontece na Inglaterra, na França e em muitas outras partes.
Cada um com as suas idiossincrasias?
Exatamente! No caso brasileiro é uma volta aos traumas do passado, como a escravidão, com essas relações socais que não são organizadas em termos de igualdade social, mas em termos de dominação.
Nós brasileiros estamos mais atrasados do que vocês em termos de igualdades?
Eu acho que no dia em que o brasileiro parar de usar essa palavra, “atraso”, já vai fazer um progresso (risos).
Então nós (brasileiros) temos um complexo de inferioridade?
Com certeza! Ao invés de olhar o Brasil simplesmente dentro dos limites do Brasil, vocês devem comparar o país com a situação atual do mundo. Veja o que está acontecendo agora nos Estados Unidos (refere-se à candidatura presidencial de Donald Trump). Evidentemente a história dos EUA não é a mesma do Brasil, ou da França, mas devemos colocar em perspectiva todos esses acontecimentos que mostram uma crispação identitária e é um momento, para mim, muito preocupante.
Há muitas acusações de que falta pluralidade de ideias na imprensa brasileira. Qual é o paralelo que você faz entre essa crítica e o que vivencia como colaborador do Le Monde, um dos maiores jornais franceses?
O Le Monde surgiu no pós-guerra, herdando na realidade outro jornal, chamado Le Temps. Nasceu como vespertino, um jornal de análises. É claro que historicamente no Brasil podemos encontrar exemplos assim ao longo da história. Não podemos esquecer que o jornal O Estado de S. Paulo impulsionou a fundação da USP e os maiores intelectuais nos anos de 1930, 1940 escreveram no Estadão. Depois, a Folha de S. Paulo também teve esse papel até os anos de 1980, 1990, no máximo. Só que o Le Monde continua sendo um jornal aberto ao debate, tanto à esquerda e quanto à direita. Essa é a diferença. Hoje, no quadro da imprensa do Brasil, é difícil encontrar um jornal aberto para a troca de ideias diferentes.
O brasileiro tem uma autoestima baixa, principalmente por valorizar mais o que é de fora, o que vem de Miami, Nova York ou Paris?
As elites francesas não são tão diferentes das elites brasileiras. Você fala sobre a baixa autoestima das elites brasileiras, mas ocorre a mesma coisa aqui na França. Tudo que é melhor está fora. Eu me refiro às elites econômica e financeira, que estão no poder e não sobre as elites culturais. Aquelas elites consideram que a França não é um bom país para se investir, pois aqui há uma proteção social melhor do que em outros lugares. Afinal acabam sendo la même chose, só que evidentemente o ponto inicial é diferente, o raciocínio começa diferente (pausa). Do lado brasileiro existe uma leitura tão caricatural sobre o Primeiro Mundo. Na França tem Primeiro Mundo, Segundo Mundo, Terceiro Mundo, Quarto Mundo. Por exemplo, eu já convivi com pessoas do Primeiro Mundo no Brasil (elites econômica e financeira) e nunca convivi com pessoas do Primeiro Mundo na França. Certa vez, no Rio de Janeiro, fui convidado para uma festa e cheguei assim (ou seja, mal vestido para os padrões da elite brasileira) e me fizeram entrar pelo elevador de serviço. “Ah! Vai por aí”, disseram. Cheguei na cozinha. Uau!!! (risos).
Mesmo sendo caucasiano?
Sim, não resolveu. E mais, eu fui parado em blitz em Goiânia (risos).
A retirada de Dilma do poder, em sua opinião, é um golpe de Estado? O senhor tem tratado do tema em seus textos.
Inicialmente fiquei muito cético quanto a essa citação de golpe de Estado porque a gente tem um imaginário sobre o golpe. Fiquei preocupado de ver que muitas pessoas pelas quais eu tenho grande intimidade intelectual falavam sobre golpe de Estado. Então eu decidi ir ao dicionário para saber quando esta palavra surgiu pela primeira vez e me dei conta que foi no século 17. Na realidade eu acabo de escrever para o Le Monde sobre essa questão, mostrando que foi um golpe moderno, pós-moderno. [No vídeo abaixo, o professor expõe mais argumentos que o levam a crer que o Brasil vive, em usa opinião, um golpe de estado].
“Eu me lembro que estava assistindo – e depois parei de assistir – a Globo News quando o juiz Sérgio Moro deixou vazar três horas depois os diálogos entre Lula e Dilma. Isso não se faz. Não é uma coisa democrática. Foi um apelo à justiça, entre aspas, ‘popular’, à justiça das ruas. Recentemente eu li um livro de um sociólogo da USP cujo nome não me lembro, que mostra que nunca houve tanto linchamento no Brasil como agora. Isso significa que as pessoas preferem confiar na justiça das ruas do que na justiça do Estado.”
Essa falta de confiança na justiça do Estado é um sinal da falência deste mesmo Estado, no caso, o brasileiro?
Não existe nenhuma falência. O Estado brasileiro funciona, tem tudo para funcionar, o problema são as pessoas que estão dentro dele. Acho estranho como o Supremo Tribunal Federal se comporta. Ao invés de retirar-se para julgar, se expõe. Na França uma pessoa que participa do Conselho Constitucional (equivalente ao STF) não pode mais falar em público e as sessões não são públicas. Antes, aqui era um circo midiático. As pessoas interpretavam a lei em função do que a mídia ou a rua queriam ouvir. E assim ocorre atualmente no Brasil. Para mim a questão não é o Estado, mas sim os integrantes do Estado. Agora tem uma coisa: eu prefiro pagar imposto na França do que no Brasil. Eu sou um professor universitário e pago impostos aqui na França, mas eu tenho direito a educação gratuita para a minha filha, tenho direito a hospital público que funciona. Aí sim! Aí sim o Estado funciona muito melhor. Eu tenho a certeza de que o sistema político no Brasil está em falência, mas não o Estado em si.
Depois de 40 minutos de entrevista o professor Laurent Vidal dá um depoimento sobre a experiência dele em Goiás como professor convidado da UFG. Ele falou do preconceito de brasilienses para com os goianos, garotos de programa, pequi, duplas sertanejas, art déco, carrões e se despede em francês. Assista:
Meus agradecimentos à professora de francês da Universidade de La Rochelle, Corinne Nitharum, que foi o meu contato com Laurent Vidal.
Merci Corinne!