Ganhador do Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2023 por seu tocante Folhas de Outono, o diretor finlandês Aki Kaurismäki criou uma obra singular, ao mesmo tempo melancólica e irreverente e marcada por um olhar humanista, sensível às pequenas tragédias da vida ordinária. Como um Chaplin nórdico, o cineasta elege como protagonistas dos seus filmes aqueles que normalmente são invisibilizados e silenciados pela sociedade capitalista, homens e mulheres trabalhadores cuja identidade é reduzida a um uniforme, submetidos a empregos precários, a um passo de cair na miséria. Porém, em meio a esse cenário de exploração e desesperança presente nas suas histórias, não é a revolta, mas o amor que surge como um elemento de rebeldia – uma força transformadora que, se não conduz à ação política, ao menos leva essas pessoas a abandonar a sua apatia e a lutar contra a sua desumanização.
Em um ensaio sobre a paixão, Gérard Lebrun lembra que os estoicos a condenavam por considerar que ela conduz os indivíduos para fora deles mesmos, fazendo com que percam o autocontrole. Nessa perspectiva, a paixão é pensada de maneira genérica, compreendendo não só o amor, mas outros afetos, como a cólera ou o medo. Entretanto, essa capacidade da paixão amorosa de nos lançar para fora de nós mesmos também pode ser concebida de modo positivo, no sentido contrário do que pregava a corrente estoica, justamente pelo fato de proporcionar uma experiência de alteridade – exatamente o que ocorre com os personagens de Kaurismäki ao serem atingidos pelo páthos do amor e se libertarem do ensimesmamento que os aprisiona, estabelecendo um vínculo com a pessoa amada. E essa experiência também os impele a uma outra percepção de si próprios, despertando neles um anseio por dignidade que também se constitui como uma forma de resistência ao que os ameaça como sendo o destino inexorável dos que compõem a força do trabalho no mundo contemporâneo: converterem-se em meras commodities, intercambiáveis e substituíveis.
Essa celebração da potência transformadora do amor tão frequente nos pequenos dramas cotidianos de Kaurismäki não se realiza, no entanto, apelando-se ao sentimentalismo e muito menos ao romantismo, mas com uma grande economia de recursos dramáticos, a marca do cinema minimalista do diretor. Assim é que é narrado, por exemplo, no premiado Folhas de Outono (2023), o romance entre Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen). Ansa trabalha como repositora de mercadorias em um supermercado e é demitida sob a acusação de furto de alimentos vencidos – e que seriam descartados de todo modo. Holappa é um operário da construção civil que também acaba perdendo o emprego por conta do alcoolismo. Quando essas duas almas solitárias se encontram por acaso em um bar de karaokê, uma simples e tímida troca de olhares é suficiente para que eles se apaixonem um pelo outro. E é essa ligação amorosa, construída quase em silêncio, com um mínimo de gestos e palavras – e que terá de enfrentar uma série de desencontros e percalços para se concretizar –, que os salvará da ruína.
Na famosa “Trilogia do Proletariado” de Kaurismäki, composta pelos filmes Sombras no Paraíso (1986), Ariel (1988) e A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforo (1990), é também sempre o amor que surge como um elemento transgressor, em meio a um ambiente de desalento e degradação, ainda que por vezes possa conduzir a uma tragédia. No primeiro, Matti Pellonpää interpreta Nikander, um catador de lixo cujas esperanças de ter uma vida melhor se desvanecem quando o seu colega de trabalho, com quem planejava abrir um negócio próprio no ramo da limpeza urbana, morre repentinamente de um ataque cardíaco. Depressivo e sem rumo, Nikander encontra uma nova perspectiva quando conhece Llona (Kati Outinen), uma introvertida caixa de supermercado. Em Ariel, um carvoeiro vivido por Turo Pajala decide deixar para trás a inércia e a falta de oportunidades econômicas da sua cidade natal para tentar ganhar a vida na metrópole. Mas tudo o que encontra é a violência, a pobreza e a prisão. Ele só vai conseguir escapar dessa trajetória miserável quando inicia um improvável romance com uma guarda de trânsito (Susanna Haavisto). Mesmo no filme que encerra a trilogia, A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforo, é o despertar da paixão, ainda que não correspondida, que fará com que a protagonista Iris (Kati Outinen), a operária do título, abandone a sua letargia e reaja contra as humilhações a que é submetida, nesse caso, da forma mais brutal e surpreendente possível.
A lista poderia continuar com O Homem sem Passado (2002), em que um operário (Markku Peltola) que perde a memória após ser cruelmente espancado por marginais tem a chance de recomeçar do zero ao se relacionar com uma voluntária do Exército de Salvação (Kati Outinen). Ou com Contratei um Matador Profissional (1990), no qual um funcionário de escritório vivido por Jean-Pierre Léaud decide se matar depois que é despedido, mas é tomado subitamente por um grande desejo de viver intensamente ao conhecer uma vendedora de flores (Margi Clarke). E ainda com A Vida Boêmia (1992), em que o amor serve como refúgio para dois imigrantes (Matti Pellonpää e Evelyne Didi) em condição ilegal e vivendo quase como indigentes em Paris.
As histórias do diretor têm como cenário recorrente Helsinque. Mas tanto na capital finlandesa, quanto em outras cidades europeias que servem de locação para os filmes do cineasta – como Paris, Londres e Lisboa –, a câmara de Kourismäki evita as paisagens de cartão postal e prefere se mover pelos ambientes da periferia ou pelos espaços do trabalho – fábricas, galpões, supermercados, cozinhas de restaurantes, canteiros de obra etc. Entretanto, essa ambientação nada glamourosa e o jeito taciturno dos personagens (interpretados por um elenco talentosíssimo de atores finlandeses, que se revezam nas produções do diretor), parcimoniosos em gestos, sorrisos e palavras, não resultam de forma alguma em dramas frios e pouco envolventes. Esses elementos são suavizados pela beleza da fotografia (muitas vezes pontuada por uma explosão de cores primárias), pelo cuidado rigoroso com os enquadramentos e pela trilha sonora sempre excepcional. E, sobretudo, pela maneira delicada, temperada com um humor ácido, com que Kaurismäki narra suas tragicomédias da classe trabalhadora.
Obs.: Uma excelente seleção de filmes do diretor finlandês, incluindo o mais recente Folhas de Outono (2023), está disponível no canal de streaming Mubi.