Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estão na Região Centro-Oeste, fazem fronteira uns aos outros e sediam a maior parte do Cerrado brasileiro. Mas nem a vizinhança, o Cerrado ou fato de, juntos, produzirem quase 50% da produção de grãos do País aproximaram os três vizinhos. Os goianos sabem e conhecem bem mais sobre Minas Gerais, São Paulo e Bahia do que sobre os Estados de sua região.
A distância física, cultural, gastronômica e social de Goiás com os dois Mato Grossos encontra explicação na história de seus povoamentos, na distância entre suas principais cidades (Goiânia, Campo Grande e Cuiabá), na interferência das populações ribeirinhas e indígenas na culinária e cultura regional dos dois Estados vizinhos, entre outros motivos.
A distância entre Goiânia, Cuiabá e Campo Grande (as capitais de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) é praticamente a mesma entre Goiânia, São Paulo e Belo Horizonte, aproximadamente 900 quilômetros de estrada. Como a relação econômica e cultural dos goianos é maior com os Estados do Sudeste, a distância física acabou sendo um empecilho menor a ser vencido em relação a estes Estados do que em relação aos vizinhos do Centro-Oeste.
Como boa parte dos goianos, eu me surpreendi com muitas descobertas em minha primeira viagem pelo Mato Grosso (até então conhecia apenas Barra do Garças e Cocalinho, por serem banhadas pelo Rio Araguaia). A primeira surpresa é com a transformação do Cerrado em extensas lavouras de grãos ou em pastagens, muito parecido com o que aconteceu no Sudoeste goiano. A abertura de novas fronteiras agrícolas por gaúchos, em especial, mudou o Mato Grosso e o transformou numa potência agrícola superior a Goiás.
As reservas indígenas na BR-070 são praticamente as únicas áreas de mata nos 450 quilômetros que separam Barra do Garças da Chapada dos Guimarães. Passadas as reservas, avistam-se lavouras de algodão e milho a perder de vista.
Mato Grosso produz 56% do algodão brasileiro. Em julho e agosto, os produtores colhem a safrinha. Encontra-se algodão em vários estágios de maturação: em longos campos brancos, como se fossem neve cobrindo a terra vermelha; em enormes colheitadeiras cortando-o e embalando-o; em fardos de algodão, de aproximadamente 1,5 metro de diâmetro por 1,5 metro de comprimento, embalados em plásticos amarelos, à espera do ponto de colheita.
Às margens da BR-070, Primavera do Leste espelha a pujança agrícola da região: desorganização de um município em rápida expansão física e econômica. Centenas de caminhões, gigantes armazéns graneleiros, rodovia que se mistura ao trânsito da cidade, obras por toda a parte formam a paisagem da área urbana conturbada com lavouras de milho e algodão e às fazendas de criação de gado.
A viagem pela BR-070 torna-se monótona diante da interminável paisagem de lavouras. Quase nada resta do Cerrado, a não ser pequenas áreas de matas ciliares. A mudança ocorre na Chapada dos Guimarães. O Cerrado reaparece, parcialmente para quem chega à noite, pois neblina e chuvas finas constantes cobrem a região. O município de Chapada dos Guimarães é chamado pela população local de “Campos do Jordão de Mato Grosso”.
A apenas 60 quilômetros de Cuiabá – esta com temperaturas máximas sempre superiores a 30° durante o ano e alta umidade do ar, o que aumenta a sensação de calor –, a Chapada registra temperaturas médias de 23°. O município preserva o Cerrado devastado nas áreas de lavouras e a luz do sol ilumina essa paisagem que a neblina esconde à noite. Lá encontra-se todo tipo de Cerrado, campos limpo e sujo, Cerradão, Cerrado stricto sensu e florestas de galeria. Os enormes paredões, vales, penhascos e cachoeiras completam as atrações da cidade, ponto turístico importante no Mato Grosso.
“Um bocó de fivela está de catcho com um grocotchó”
A frase acima está escrita em português, mas português cuiabano. Significa que uma pessoa boba tem um relacionamento amoroso com outra desanimada, mole. Na Chapada dos Guimarães, a mais de 500 quilômetros de distância da divisa com Goiás, o turista goiano começa a conhecer a cultura, a culinária, a linguagem e o sotaque típicos do Estado. Há algumas expressões comuns entre o regionalismo goiano e o mato-grossense, como arroz de festa (aquele que não perde uma festa), bom demás e berrano (gritando). Mas há muitas expressões em cuiabanês.
Tão usado quanto o “vice” pernambucano, “vote” indica rejeição (Deus me livre!). “Caínha” é o nosso pão-duro e “catcho”, uma paquera, namorada ou amante. O mesmo sentido do cacho, expressão antiga utilizada no interior de Goiás. Chamam a atenção ainda “catchorro” (expressão de espanto, negação), “cêpo” (bom ótimo), “pá terra” (cair), “negatófi” (não, nunca), entre tantas outras.
O sotaque cuiabano também é facilmente percebido. O forte som do “r”, mas diferente do “r” goiano e um “t” antes de algumas consoantes fazem o diferencial. Poeta e professor da Universidade Federal do Mato Grosso, Aclyse de Mattos lançou no ano passado o livro Festa, que brinca com o sotaque e o regionalismo da linguagem de seu Estado em versos como:
“Eu fui num tchá, tchá coa Iaiá/ Txa tia djá djá me tchamô/ Tchamo na tchincha o tchata tchá/ Foi a Iaiá que me sarvô/ Dizendo:/ _Vamos tchacoaiá, tchacoaiá, tchacoaiá/ tchacoaiá e tchacoaiá”.
A influência indígena e dos ribeirinhos explica muitas dessas expressões e o sotaque cuiabano. Ambos também influenciaram a culinária local. Como em Goiás, o arroz com pequi e a Maria Isabel (arroz com carne-seca) são destaque na culinária local, mas as semelhanças param por aí. Nas regiões ribeirinhas, o peixe predomina em pratos típicos como o pacu assado e peixe com mandioca. Os mais apreciados na região são pintado, cachara, pacupeva, além do pacu, encontrados em rios como Cuiabá, Paraguai, Xingu e Juruena. O peixe destaca-se na região pantaneira, que começa no município de Poconé e se estende pelo Mato Grosso do Sul.
O maior produtor de gado do País (foram abatidas 1,105 milhão de cabeças em 2015) não poderia deixar a carne fora de sua culinária. Um prato típico é a carne-seca com banana verde (feita como o quibebe de carne e mandioca em Goiás). A farofa de banana-da-terra e a mesma banana assada no forno são também muito comuns nas mesas do Estado.
Ecossistema diversificado e deslumbrante
Mato Grosso é o terceiro maior Estado Brasileiro em extensão territorial, com 903,3 mil km2, quase o triplo da área de Goiás. Tem um ecossistema mais diversificado que o goiano, basicamente coberto apenas pelo Cerrado. Além desse bioma, que cobre quase a metade do território, o Estado tem uma enorme faixa de transição do Cerrado para a Mata Amazônica, a própria Mata Amazônica, ao norte, e o exuberante Pantanal, a maior planície inundável do planeta. O passeio por esses diferentes ecossistemas é um diferencial do Mato Grosso. Primeiro o Cerrado, com suas árvores retorcidas ou sua destruição por lavouras ou pelo fogo, comum neste período do ano.
A água que falta no Cerrado sobra no Pantanal, mesmo na seca. Aguapé, planta aquática típica deste bioma, enormes tuiuiús, que podem chegar a ter 1,5 metro de comprimento por 2,2 de envergadura, garças de várias espécies, inclusive a garça solitária; mergulhões, capivaras e muitos, muitos jacarés podem ser vistos em apenas um passeio pelo Rio Cuiabá.
Apesar desse amplo território e de sua diversidade ambiental, Mato Grosso tem uma população de apenas 3,2 milhões de habitantes, contra 6,523 milhões da população goiana. Com baixa densidade populacional (3,36 habitantes por km2 ao passo que Goiás tem 7,96), sobra ao Estado grandes extensões territoriais para a produção agropecuária.
Mato Grosso é um dos líderes na produção de soja, milho e algodão, contribuindo para que a Região Centro-Oeste responda atualmente por quase 50% da produção nacional de grãos. Na safra 2014/2015, liderou o ranking nacional do valor bruto da produção agropecuária, com R$ 62,37 bilhões, à frente de São Paulo, que teve um faturamento total de R$ 61,21 bilhões.
População indígena
As reservas indígenas ocupam 12% do território do Mato Grosso, segundo dados do IBGE de 2010, e estão em 55 de seus 141 municípios. Quando todas as áreas em processo de regularização estiverem aprovadas, as reservas ocuparão 18% do território mato-grossense para abrigar uma população de 42,5 mil índios, a sexta maior do País.
O vizinho Mato Grosso do Sul tem 73,2 mil índios, atrás apenas da população indígena do Amazonas (168,8 mil), e registra conflitos entre indígenas e fazendeiros pela posse da terra em pelo menos 10 municípios. Depois da criação do Tocantins, restaram a Goiás apenas 8,5 mil índios. Esses números reforçam as diferenças na formação populacional dos três Estados do Centro-Oeste.
O povoamento da região ocorreu principalmente depois da Marcha para o Oeste, política de ocupação do interior brasileiro do governo de Getúlio Vargas, na década de 50. Segundo dados do IBGE, aproximadamente 25% da população de Goiás é composta por imigrantes, vindos principalmente de Minas Gerais, São Paulo, Maranhão, Bahia, Piauí, como também do Distrito Federal.
A população de Mato Grosso do Sul (2,5 milhões de habitantes) formou-se com imigrantes do Sul e do Sudeste do País e também de europeus e dos vizinhos Paraguai e Bolívia. É grande o número de ameríndios, imigrantes paraguaios e índios guaranis, povoamento semelhante ao ocorrido no Mato Grosso. A coincidência da localização geográfica de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul foi, como se vê, insuficiente para nos aproximar de nossos desconhecidos vizinhos.
Getúlio Vargas estimulou a marcha para o interior brasileiro há mais de meio século. Já está na hora de os goianos fazerem sua marcha para o Oeste e conhecer nossos vizinhos. Só temos a ganhar com essa aproximação.
Olá! Seu texto é muito bem escrito e ótimo de ler, parabéns! Sou gaúcho radicado em Goiânia, e tenho notado que existe uma certa “rivalidade” entre mato grossenses e goianos. Principalmente da parte de nossos vizinhos do MT. Você percebeu um pouco disso em sua viagem? Obrigado!
Espero q vc faça uma viagem a MS para conhecer nossa cultura. Na materia acima vc so falou de MT.
Parabéns! Achei seu texto muito interessante, e despertou em mim uma vontade enorme de conhecer melhor meus vizinhos!
Muito bom, gostei!! Estava procurando algo sobre alimento e encontrei esse assunto.